26 de dezembro de 2017 – Terça-feira, dia de Santo Estêvão

Ontem comemoramos o nascimento, hoje a morte? Ontem o nascimento de Jesus, hoje a morte do primeiro mártir cristão! À primeira vista, logo após a festa do nascimento de Jesus, pode nos surpreender a leitura de hoje falando da morte do diácono Estêvão. Mas a Igreja acredita que seus mártires, aqueles que são mortos pela fé em Jesus Cristo, são acolhidos imediatamente no céu. O dia da morte do santo torna-se assim o dia do nascimento para o céu! Deste modo realizou-se o primeiro “comércio admirável” de Natal, ou seja, a troca de bens entre céu e terra: Jesus assumiu nossa carne mortal para que nós mortais recebêssemos a vida eterna. Ele nasceu na terra e morreu por nós para que nós pudéssemos “nascer” para uma vida eterna no céu.

Leitura: At 6,8-10; 7,54-59

O autor dos At, Lucas, nos conta que havia um conflito entre dois grupos: entre os “hebreus” (nativos da Palestina, por ex. os apóstolos) e “helenistas” (judeus vindos de outros países) na primeira comunidade cristã em Jerusalém. Este conflito foi resolvido pela escolha e ordenação dos sete diáconos para atenderem e liderarem a comunidade helenista; entre eles, em primeiro lugar, Estêvão (6,1-7).

Estêvão, cheio de graça e poder, fazia prodígios e grandes sinais entre o povo (6,8).

A leitura de hoje mostra que os diáconos não só serviam as mesas, mas atuavam como os apóstolos (cf. 4,35; 5,12). O poder de Cristo ressuscitado se expande para além do círculo restrito dos Doze. Estevão é um dos “sete homens de boa reputação e cheios do Espírito Santo” (6,5).

Mas alguns membros da chamada Sinagoga dos Libertos, junto com cirenenses e alexandrinos, e alguns da Cilícia e da Ásia, começaram a discutir com Estêvão (6,9).

Enquanto os apóstolos foram salvos da perseguição pelos saduceus através do conselho de Gamaliel (5,34-40), começa um novo conflito: não mais no templo com os sumos sacerdotes, mas nas sinagogas, entre os helenistas cristãos e os helenistas não convertidos. Os diáconos devem ter pregado nas sinagogas dos helenistas, de origem africana (Alexandria no Egito, Cirene na Líbia, cf. Mc 15,21), ou da Ásia (atual Turquia). Os “Libertos” podem ser descendentes dos judeus que o general romano Pompeu levou a Roma (depois de ocupar Palestina em 63 a.C.). Vendeu-os como escravos, mas depois eles conseguiram a liberdade. Sacrifícios (de animais) só podiam ser oferecidos no templo de Jerusalém através dos sacerdotes, mas nas sinagogas no mundo inteiro (até hoje) celebram-se cultos da Palavra, cantos e orações, com a interpretação da Escritura de maneira mais democrática.

Porém não conseguiam resistir à sabedoria e ao Espírito com que ele falava (6,10).

A respeito de futuras perseguições, Jesus havia prometido a seus discípulos: “Eu vos darei eloquência e sabedoria, às quais nenhum de vossos adversários poderá resistir, nem contradizer” (Lc 21,15). Aquilo que seus rivais não conseguem raciocinando e discutindo, procuram obtê-lo com uma campanha de difamação para desacreditá-lo diante do povo e dos fariseus letrados. Assim conseguem mobilizar o povo: dado novo que muda a situação. Não param até conduzi-lo perante o conselho (o “sinédrio”, v. 12). A acusação é de “blasfêmias contra Moisés e contra Deus” (v. 11), como no processo de Jesus de Nazaré (cf. Mc 2,6; 15,63). Igualmente, falsas testemunhas se erguem contra Estevão, dizendo: “Este homem não cessa de falar contra este lugar santo e contra a lei. E nós o ouvimos afirmar que Jesus de Nazaré ia destruir este lugar e ia mudar os costumes que Moisés nos transmitiu” (vv. 13s; cf. Mc 15,55-59 e as mesmas acusações contra Paulo em At 21,21.28, 25,8; 28,17). De fato, Jesus de Nazaré queria outro tipo de templo, um modo novo de se relacionar com Deus. Não estava satisfeito com os sacrifícios dos animais e criticou o comércio em volta com palavras e gestos (cf. Lc 19,14-46p), mas não ia destruir com violência o templo (os romanos farão em 70 d.C.), mas substitu­í-lo por seu “Corpo” (cf. Jo 2,19-22: a Eucaristia substitui o sacrifício de animais).

A cena se passa diante das pessoas que ficam admiradas com a profundidade de Estevão e “tinham os olhos fixos sobre Estêvão” (v. 15; cf. Jesus em Nazaré: Lc 4,20; Hb 12,2). Estêvão faz um sermão (o mais longo dos Atos, omitido pela liturgia de hoje: 7,1-53).

Neste discurso diante do Sinédrio, o diácono Estêvão menciona exemplos do AT (Antigo Testamento): Abraão ouviu a palavra do Senhor e se colocou a caminho; José ouviu a palavra e tornou-se salvador do seu povo no Egito; Moisés ouviu a palavra e virou libertador. Com esses exemplos, os ouvintes devem aprender ouvir e aderir a Jesus. Estêvão recorda que, em todos os tempos, a relação do povo de Israel com Deus acontece sob o peso constante da infidelidade à aliança. Como os israelitas desobedeceram a Moisés, agora não acolheram Jesus.

Ao ouvir essas palavras, eles ficaram enfurecidos e rangeram os dentes contra Estêvão (7,54).

Ao final do seu discurso, Estêvão sendo réu, faz acusações muito pesadas e diretas aos seus ouvintes: “Homens de cabeça dura, insensíveis e incircuncisos de coração e ouvidos! Vós sempre resististes ao Espírito Santo e, como vossos pais agiram, assim fazeis vós!” (v. 51; cf. Ex 32,9; Lv 26,41; Dt 9,6; Is 63,10; Jr 7,26; 9,25; Ne 9,16). “A qual dos profetas vossos pais não perseguiram? Eles mataram aqueles que anunciavam a vinda do Justo, do qual agora, vós vos tornastes traidores e assassinos” (v. 52; cf. Is 8,11; 30,10s; 50,6; Jeremias; Ez 2,6; Am 2,7; 2Cr 36,16). Jesus é o “Justo” (Lc 23,27) por excelência, para ele convergem todas as perseguições de justos e inocentes do AT (cf. Lc 13,33-35). “Vós recebestes a lei por meio de anjos e não a observastes” (v. 52). A lei era um sinal evidente do amor de Deus e não foi acolhida, respeitada, seguida; foi mal interpretada para matar o justo Jesus.

Estêvão, cheio do Espírito Santo, olhou para o céu e viu a glória de Deus e Jesus, de pé, à direita de Deus. E disse: “Estou vendo o céu aberto, e o Filho do Homem, de pé, à direita de Deus” (7,55-56).

O rosto de Estêvão parecia “como o rosto de um anjo” (6,15); ele “cheio do Espírito Santo” (6,3.10; cf. 4,8.31; 9,17; 13,9; Lc 1,15.41.67; 2,25-27), “olhou para o céu e viu a glória de Deus” (cf. Ex 24,16) “e Jesus, de pé, a direita de Deus” (cf. 2,33; Jó 42,5; uma visão daquela que Jesus tinha anunciado diante do sinédrio em Mc 14,62p; cf. Dn 7,13; Sl 110,1). Ele está de pé, como ressuscitado (cf. Ap 5,6; 11,11; cf. Ez 37,10), ou para pronunciar uma sentença (o verdadeiro juiz é ele) ou para auxiliar (cf. Sl 3,8; 10,12; 12,6; 35,2; 76,10; Is 2,19).

Mas eles, dando grandes gritos e, tapando os ouvidos, avançaram todos juntos contra Estêvão; arrastaram-no para fora da cidade e começaram a apedrejá-lo (7,57-58a).

Para os ouvintes é o cúmulo (cf. Caifás diante de Jesus, Mc 15,61-64p). Quando Estêvão comunica sua visão, eles dispensam formalidades e passam à ação violenta (cf. Sl 35,16; Jó 16,9-10), “arrastaram-no para fora da cidade” (cf. Nm 15,35; 1Rs 21,13s; Hb 13,12), “e começaram a apedrejá-lo”. A lapidação era a pena do blasfemo (Lv 24,14-16).

As testemunhas deixaram suas vestes aos pés de um jovem, chamado Saulo (7,58b).

As testemunhas são falsas (6,13). O jovem, chamado “Saulo” (nome hebraico, cf. o primeiro rei de Israel em 1Sm 8-31; Saulo era da mesma tribo de Benjamim, cf. Fl 3,5) é chamado depois de “Paulo” (apelido em latim), o futuro apóstolo e missionário, aqui antes da sua conversão. Vindo de Tarso (na atual Turquia; 22,3) fazia parte dos adversários helenistas. Em Jerusalém formou-se mestre da lei (22,3), mas não aderiu ao conselho do seu mestre Gamaliel (5,38s; 22,2), era um dos que aprovaram a execução de Estêvão (8,1; cf. 22,20; 26,10). Mas a maneira como Estêvão morre, pode ter deixado uma marca no inconsciente de Saulo que contribui posteriormente para sua conversão (9,3-5).

Enquanto o apedrejavam, Estêvão clamou dizendo: “Senhor Jesus, acolhe o meu espírito” (7,59).

Estêvão morre com a mesma atitude de Jesus, perdoando seus algozes: “Senhor, não os condene por este pecado” (v. 60; cf. Lc 23,34) e confiando em Deus: “Senhor Jesus, acolhe o meu espírito” (v. 59; cf. Lc 23,46; Sl 31,6). Lucas, o autor dos Atos, descreve a morte de Estêvão como exemplo de um discípulo que segue e imita Jesus na vida e na morte.

Estevão é o primeiro mártir cristão, o primeiro que deu sua vida por Jesus Cristo. Ele não é apenas “protomártir”, mas também protótipo do cristão possuído pelo Espírito e testemunha até a morte. Em grego, a palavra “mártir” significa “testemunha”. Estêvão era grande nos milagres, na dialética, nos discursos, nas visões. É o primeiro na terra que morre pela fé em Cristo, é o primeiro que recebe a vida no céu por Cristo ressuscitado.

Para os cristãos, um “mártir” é uma pessoa que testemunha sua fé sacrificando sua vida, mas não reagindo com violência. Os muçulmanos chamam de mártires também os que morrem lutando por sua fé na guerra. Os extremistas do islamismo consideram também os terroristas suicidas como mártires, mas a maioria dos muçulmanos não concordam com isso.

 

Evangelho: Mt 10,17-22

O evangelho escolhido para o dia do primeiro mártir cristão é tirado do segundo sermão de Jesus em Mt (o primeiro é o da montanha, caps. 5-7; o segundo sobre a missão dos discípulos): No cap. 10, Jesus escolhe seus doze apóstolos (vv. 1-4) e dá recomendações para a missão. Num estilo de vida simples e despojado, eles devem atuar como o mestre, curando as pessoas e anunciando a mensagem do reino nas casas e cidades de Israel (vv. 5-13), nem sempre serão bem acolhidos (vv. 14-15), mas enfrentarão perseguições (vv. 16-39).

O conteúdo seguinte antecipa parte do discurso escatológico (Mc 13,9-13, copiado em Mt 24,9-14; cf. Lc 21,12-19). Os ensinamentos dos vv. 17-39 ultrapassam evidentemente o horizonte dessa primeira missão dos doze e devem ter sido pronunciados mais tarde (cf. o lugar que ocupam em Mc e Lc). Mt os reuniu aqui a fim de compor um breviário completo do missionário.

Cuidado com os homens, porque eles vos entregarão aos tribunais e vos açoitarão nas suas sinagogas. Vós sereis levados diante de governadores e reis, por minha causa, para dar testemunho diante deles e das nações (vv. 17-18).

As perseguições serão internas, “sinagogas”, e externas, “reis”. Depois, Mt afirma a perseguição, pelos judeus nas sinagogas em 23,34 (discurso contra os fariseus) e pelos pagãos em 24,9-14.

Os tribunais são os pequenos sinédrios de província e o grande sinédrio de Jerusalém (cf. 5,21-22). Os açoites são 39 golpes, executados pelo servo da sinagoga como pena por grave violação da lei (cf. 2Cor 11,24). A palavra “entregarão” lembra os leitores da paixão de Cristo que foi entregue ao sinédrio (tribunal supremo dos judeus), açoitado e levado ao governador Pilatos (cf. também as diversas perseguições de Pedro, João, Tiago e Paulo nos Atos dos Apóstolos).

A palavra grega martírion traduzida por “testemunho” toma nas gerações seguintes o sentido de “martírio”. O Apocalipse chama Jesus de “testemunha fiel” e a sua mensagem de “testemunho” (Ap 1,2-5; 19,10; 22,20).

Quando vos entregarem, não fiqueis preocupados como falar ou o que dizer. Então naquele momento vos será indicado o que deveis dizer. Com efeito, não sereis vós que havereis de falar, mas sim o Espírito do vosso Pai é que falará através de vós (vv. 19-20).

Em Israel (vv. 5-6), como depois diante dos pagãos, os discípulos comparecerão como acusados (v. 18), mas atuarão como testemunhas (p. ex. Jeremias, cf. Jr 26; Pedro e Paulo, cf. At 4,1-22; 5,17-42; 23,11; 25,13-26,32). Por isso seu testemunho se compara (vv. 19-20) à palavra profética (cf. 5,11s; Ap 11,3.6.10; 19,10) inspirada pelo Espírito; daí a veneração primitiva aos mártires e a conservação devota das atas de martírio.

Mesmo “diante dos tribunais”, os discípulos triunfarão através do testemunho (martírio). Nas situações mais complicadas, contamos sempre com a ajuda do Senhor. O Espírito Santo é mais importante do que os nossos recursos e motivações.

Nos processos da época não havia advogados, mas peritos jurídicos que aconselhavam o réu. Jesus promete sua assistência (cf. o paráclito em Jo 14,18-21; 15,26). O Espírito “do vosso Pai” sublinha o amor divino. Mt fala pouco do Espírito (geralmente relacionado a Jesus, cf. 1,18.20; 3,16; 4,1; 12,18.28). Só aqui, nesta situação específica e na fórmula batismal (28,19; cf. 3,11) fala do dom do Espírito aos fiéis; Mt prefere mais destacar a presença de Jesus no meio da comunidade (18,20; 28,20).

O irmão entregará à morte o próprio irmão; o pai entregará o filho; os filhos se levantarão contra seus pais, e os matarão (v. 21).

Até os próprios parentes podem tornar-se adversários (cf. Mq 7,6), o que é mais doloroso (cf. Jr 12,6: “Também teus irmãos e tua família são desleais para contigo”; ou Sl 55,13-15: “… Mas eras tu, meu camarada, meu amigo e confidente, a quem me unia doce intimidade… ”; cf. Sl 69,9; Jó 19).

Vós sereis odiados por todos, por causa do meu nome. Mas quem perseverar até o fim, esse será salvo (v. 22).

Mt repetirá isso em 24,9.13. O ódio do mundo (cf. Jo 15,18s) é herança da origem judia (os judeus eram odiados por sua negação de outros deuses). O motivo agora é “por causa do meu nome”, mas o exemplo do mestre (vv. 24-25) os fortalecerão, até a parusia (vinda de Cristo no fim do mundo, v. 23).

Neste horizonte eclesial e escatológico, a “perseverança” é virtude fundamental. Este termo designa a resistência aos perigos que ameaçam a palavra (cf. nas cartas de Paulo: 1Ts 1,3; 2Cor 1,6; 6,4; 12,12; Rm 2,7; 5,3-4; 8,25; 15,4-5; Cl 1,11).

O site da CNBB comenta: Todo aquele que quer ser discípulo de Jesus deve estar pronto para enfrentar os problemas decorrentes do discipulado. Ser discípulo de Jesus significa não aceitar os contravalores que estão presentes no mundo e que não permitem que haja vida e vida em abundância, mas denunciar esses contravalores como causa de sofrimento e, ao mesmo tempo, anunciar os valores do Evangelho. Ser discípulos de Jesus significa ser profeta da Nova Aliança e arcar com todas as consequências do agir profético, ou seja, a perseguição, o sofrimento e até mesmo a morte. A história da Igreja está repleta de mártires, profetas da Nova Aliança que, por acreditarem nos valores do Evangelho, foram perseguidos e derramaram seu sangue como o Cristo.

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