26 de fevereiro de 2017 – 8º Domingo, Ano A

 

1ª Leitura: Is 49,14-15

Quaresma 4ª semana 4ª feira

Leitura: Is 49,8-15

A 1ª leitura foi escolhida em vista do evangelho de hoje que fala da providência e solicitude do Pai celeste para com suas criaturas.

No exílio na Babilônia, cerca de 550 a.C., um profeta anônima retoma e atualiza a mensagem de esperança de Isaías Os biblistas o chama de Segundo Isaías (Deutero-Isaías: Is 40-55) Ele consola seu povo desterrado que se acha abandonado. Deus castigou os pecados do povo, principalmente da sua elite que praticava injustiça e idolatria. Os babilônios vieram, destruíram a cidade, incendiaram o templo e levaram boa parte do povo para Babilônia (586 a.C.).

Ainda que o povo de Deus sofresse no cativeiro da Babilônia e o profeta carregasse uma barra pesada, não só como judeu, mas como “servo” de Deus (cf. vv. 3.6; cf. 42,1; 52,13; 53,11), ele ouviu uma resposta consoladora (cf. 40,1s) e a proclama como palavra de Deus: Deus perdoa e os exilados vão voltar à pátria como num novo êxodo.

Disse Sião: “O Senhor abandonou-me, o Senhor esqueceu-se de mim!” Acaso pode a mulher esquecer-se do filho pequeno, a ponto de não ter pena do fruto de seu ventre? Se ela se esquecer, eu, porém, não me esquecerei de ti (vv. 14-15).

Os exilados chegarão de todas as partes a Jerusalém, antes destruída e abandonada.  Mas a comunidade judaica simbolizada por “Sião”, o nome do morro em Jerusalém, onde estava o templo, ainda lamenta o abandono do Senhor (cf. v. 14). O templo e a cidade estão em ruínas.

Mas o profeta dá ânimo, afirmando que o amor de Deus é mais forte do que o amor de uma mãe. É um dos poucos textos na Bíblia em que se expressa o amor de Deus em termos femininos (mãe) numa cultura empregada pelo machismo. É fato que uma mãe abandona menos um filho (e a família) do que um homem, porque ela está ligada com um sentimento mais profundo (desde o seu ventre) à criança.

A palavra “misericórdia” em hebraico rahamim, está ligada ao “útero”, significa sentir “compaixão” nas estranhas. Nosso Deus é um pai todo-poderoso (onipotente), mas também misericordioso (como uma mãe). O ser humano é imagem de Deus como homem e como mulher também (cf. Gn 1,27).

 

2ª Leitura: 1Cor 4,1-5

22ª semana 6ª feira

Leitura: 1Cor 4,1-5

As divisões na comunidade de Corinto podem ter origem na crítica de alguns cristãos a respeito do próprio Paulo. Nesta leitura de hoje, Paulo coloca seu ponto de vista.

Que todo o mundo nos considere como servidores de Cristo e administradores dos mistérios de Deus. A este respeito, o que se exige dos administradores é que sejam fiéis (vv. 1-2).

Os títulos são contrastantes: os apóstolos, “servidores de Cristo” (única vez em que Paulo usa o termo grego hypêrétai, que designa, nos evangelhos, servos de ínfima categoria) são, no entanto, os “administradores (gerentes) dos mistérios de Deus”. No mundo helenístico, às vezes, confiavam-se grandes responsabilidades também a servos de origem humilde. Os “mistérios de Deus” devem ser equilibrados às “profundezas de Deus” (2,10) e aos “dons da graça” (2,12) revelados a Paulo para que os dê a conhecer. “Mistério de Deus” não é segredo oculto, mas o plano de salvação, ou seja, aquele projeto proposto por Deus e realizado por Jesus Cristo, agora divulgado por Paulo aos pagãos (2,1-16; Rm 16,25; Ef 3,5; Cl 2,2-3). O termo ocorre com frequência nos textos dos essênios de Qumran.

O critério é a fidelidade no exercício do encargo (cf.  Moisés, criticado por seus irmãos Miriam/Maria e Aarão e resposta de Deus em Nm 12,7). Nos evangelhos sinóticos, as parábolas dos servos (in)fiéis (Mc 13,34; Mt 24,45-51; 25,14-30; Lc 12,37.41-48; 19,12-26) se referem todas à parusia (volta de Cristo no fim dos tempos).

Quanto a mim, pouco me importa ser julgado por vós ou por algum tribunal humano. Nem eu me julgo a mim mesmo (v. 3).

Talvez insinue que a comunidade ou uma facção dela tentava submeter Paulo a julgamento. (sobre julgar por aparências ou antes do tempo, cf. Eclo 11,1-9).

“Tribunal”, lit. “dia”. Paulo usa de ironia falando de um tribunal (dia) humano que se julgaria autorizado a pronunciar um julgamento que é da competência única do “Dia do Senhor” (1,8), isto é, do juízo final na parusia.

É verdade que a minha consciência não me acusa de nada. Mas não é por isso que eu posso ser considerado justo (v. 4).

A respeito da “consciência”, a Bíblia de Jerusalém (p. 2151) comenta: A palavra “syneidesis” (cf. 1Sm 25,31; Sb 12,10) exprime, nas cartas paulinas, valores propriamente cristãos. Quaisquer que sejam as normas exteriores, o comportamento do homem depende apenas do julgamento dele (At 23,1; 24,16; Rm 2,14-15; 9,1; 13,5; 2Cor 1,12), mas esse julgamento está sujeito ao julgamento de Deus (cf. aqui; 8,7-12; 10,25-29; 2Cor 4,2 e 1Pd 2,19). A consciência é boa e pura se inspirada pela fé e pelo amor (1Tm 1,5.19, etc.; 1Pd 3,16.21) e purificada pelo sangue de Cristo (Hb 9,14; 10,22). 

Quem me julga é o Senhor. Portanto, não queirais julgar antes do tempo. Aguardai que o Senhor venha. Ele iluminará o que estiver escondido nas trevas e manifestará os projetos dos corações. Então, cada um receberá de Deus o louvor que tiver merecido (v. 5).

Estando a serviço imediato de Deus, Paulo e seus colaboradores não estão submetidos ao julgamento meramente humano. Embora o julgamento da consciência seja favorável, Paulo se submete ao julgamento supremo e final de Deus (Sl 7,10; 17,3; Pr 15,11; 16,2; 21,2), cf. “não julgueis“ (Mt 7,1-5; cf. Lc 6,37-42; Rm 2,1s; 14,13; Jo 8,7).

Refere-se à parusia: “Aguardai que o Senhor venha. Ele iluminará o que estiver escondido nas trevas e manifestará os projetos dos corações” (cf. 1,7s; 2Ts 1,7-10); cf. Rm 2,16: “no dia em que Deus julgará por Cristo Jesus, as ações ocultas dos homens”; cf. o “tribunal de Cristo” em 2Cor 5,10s (cf. Rm 14,10; Mt 16,27; 25,31-46; etc.).

A Nova Bíblia Pastoral (p. 1390s) comenta: Do apóstolo se exige fidelidade à vocação do serviço ao Senhor. A prestação de contas só se deve a Deus. Por isso, o julgamento cabe tão somente a Deus (Mt 7,1). A comunidade de Corinto, movida por interesses diversos, emitia opiniões, e talvez quisesse constituir um tribunal para julgar os apóstolos. Porém o tribunal da consciência é maior, mas não supera o tribunal divino, que é absoluto e reconhece as intenções da cada pessoa.

 

Evangelho: Mt 6,24-34

Estamos acompanhando o sermão da montanha. Nos domingos passados ouvimos o cap. 5, a nova interpretação da Lei por Jesus, mais radical na ética, na consciência e no amor. Nossa liturgia pula agora uma boa parte do cap. 6 que será lida na quarta-feira de Cinzas (6,1-18, com exceção do Pai-Nosso em vv. 9-15).

Neste sermão, Jesus se dirige ao povo e aos discípulos (cf. 5,1s; 7,28), e no evangelho de hoje, fala sobre os bens materiais e a preocupação certa. O evangelista Mt juntou material de uma coleção catequética chamada Q, que se perdeu na história, mas deixa-se restaurar, porque Lc também a usou (cf. Lc 16,13; 12,22-31).

Ninguém pode servir a dois senhores: pois, ou odiará um e amará o outro, ou será fiel a um e desprezará o outro. Vós não podeis servir a Deus e ao dinheiro (v. 24).

A experiência mostra que é difícil servir a dois senhores sem entrar em conflito. O dinheiro aqui é personificado e seu serviço torna-se idolatria (cf. Ex 20,3-5: não servir a outros deuses).  Mt escreve em grego, mas usa aqui uma palavra aramaica: mamon. Este termo pode ter provindo da ideia de um deposito confiado, abastecimento, propriedade e depois significar o Dinheiro como uma potência que escraviza o mundo a si (cf. Lc 16,9.11.13), o deus do dinheiro, da cobiça: rival inconciliável do Deus verdadeiro que é doador e generoso (Sl 21,5; 37,4; 136,25 etc.) e ensina a dar. “A cobiça é idolatria”, diz Cl 3,5. O cobiçoso não possui, mas é possuído por seus bens e suas ânsias.

Depois desta sentença, Jesus ensina no estilo sapiencial (cf. Ecl) sobre a preocupação certa (o Reino de Deus, v. 33) e a errada/exagerada:

Por isso eu vos digo: não vos preocupeis com a vossa vida, com o que havereis de comer ou beber; nem com o vosso corpo, com o que havereis de vestir. Afinal, a vida não vale mais do que o alimento, e o corpo, mais do que a roupa? (v. 25).

Exatamente para viver é preciso de alimentos e roupas, mas a preocupação exagerada e consumista faz esquecer o mais essencial (vida, corpo). Já Ben Sirac denunciava essa preocupação “que acaba com a saúde” (Eclo 31,1-2; cf. Lc 12,16-21).  

Olhai os pássaros dos céus: eles não semeiam, não colhem, nem ajuntam em armazéns. No entanto, vosso Pai que está nos céus os alimenta. Vós não valeis mais do que os pássaros? Quem de vós pode prolongar a duração da própria vida, só pelo fato de se preocupar com isso? (vv. 26-27).

Jesus justifica sua despreocupação material com a observação da natureza: Os pássaros não são exemplos a imitar, mas testemunham a providência de Deus. A palavra grega em v. 27 pode significa “duração de vida” ou “altura do corpo”. No judaísmo, acreditava-se que a altura de Adão foi diminuída pelo pecado original. Ao desejo de ser o maior entre os discípulos, Jesus opôs uma criança (cf. Mc 9,33-37p). Nenhum homem pode mudar a medida, o limite que Deus lhe determinou. O pessimismo deste v. 27 contrasta com o otimismo da comparação com pássaros e lírios.

E por que ficais preocupados com a roupa? Olhai como crescem os lírios do campo: eles não trabalham nem fiam. Porém, eu vos digo: nem o rei Salomão, em toda a sua glória, jamais se vestiu como um deles. Ora, se Deus veste assim a erva do campo, que hoje existe e amanhã é queimada no forno, não fará ele muito mais por vós, gente de pouca fé? (vv. 28-30).

A palavra grega para lírios (cf. Os 14,6) designava também várias flores do campo: margarida, asfódelo etc.; as imagens tiradas da natureza, embora a serviço do ensinamento, revelam algo da sensibilidade contemplativa de Jesus que prolonga textos do AT (p. ex. Sl 36,7; 104,27-28; sobre Salomão, cf. 1Rs 10). A erva e a flor do campo são símbolos de que a vida humana é passageira, enquanto “a palavra de nosso Deus subsiste para sempre” (Is 6,6-8; citado por 1Pd 1,24s; cf. Tg 1,10s; Is 51,12; Sl 37,2; 90,5; 103,15s).

Portanto, não vos preocupeis, dizendo: O que vamos comer? O que vamos beber? Como vamos nos vestir? Os pagãos é que procuram essas coisas. Vosso Pai, que está nos céus, sabe que precisais de tudo isso (vv. 31-32).

É típico de uma mentalidade pagã (v. 32) um afã excessivo de segurança e a falta de confiança em Deus: “gente de pouca fé” (expressão predileta do evangelista: 8,26; 14,31; 16,8; 17,20; cf. Lc 12,28).

Jesus não faz um apelo à incúria, mas à confiança que se exprime na oração (no Pai-nosso pelo pão de cada dia: 6,11; cf. 7,7-11; Fl 4,6), dirigida a Deus Pai celeste, que livra das preocupações exageradas (16,5-12; cf. 1Pd 5,7; Mc 13,15).

Pelo contrário, buscai em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão dadas por acréscimo (v. 33).

Em vez de se perder em preocupações superficiais e banais, Jesus recomenda a concentração nos valores do reino e a confiança em Deus Pai. Os dois correlativos devem ser entendidos ligados, para não excluir a previsão econômica razoável. “O reinado de Deus e sua justiça” buscam também uma ordem justa entre os homens, a busca pelo reino não é só esperar passivamente, mas praticar a justiça como o sermão da montanha ensina (cf. 3,14; 4,17; 5,20). O reino e a justiça correspondem ao segundo e terceiro pedido do Pai-Nosso (6,10) e às ações de Deus e do homem. Deus estabelecerá seu reino e desde já, quase “por acréscimo”, dará alimento e roupa aos seus filhos (discípulos). A aquisição de bens necessários para viver se torna ansiedade contínua e pesada, se não for precedida pela busca da justiça do reino, isto é, a promoção de relações de partilha e fraternidade. O necessário para a vida virá junto com essa justiça, como fruto natural de uma árvore boa (em acréscimo).

O texto é paradoxal: Sob uma superfície agradável circula uma exigência dramática. Jesus não ensina a despreocupar-se com nada, mas a mudar o objeto da preocupação. De fato, se o afã humano buscasse o autêntico reinado de Deus, seguir-se-ia um tranquilo e simples bem-estar. Ideal que não poucos cristãos viveram.

Portanto, não vos preocupeis com o dia de amanhã, pois o dia de amanhã terá suas preocupações! Para cada dia, bastam seus próprios problemas (v. 34).

O que foi traduzido “dia de amanhã” pode significar também o futuro em geral (cf. Gn 30,33; Ex 13,14; Js 4,6). Os “problemas” designam também maldades, mas em geral dificuldades e fadigas.  Pode se escolher entre uma interpretação otimista e pessimista: a otimista quer incentivar o viver plenamente no tempo presente (carpe diem – aproveite o dia); a pessimista corresponde ao final do v. 34 dizendo que todo planejamento humano é em vão, porque o ser humano mal consegue carregar o fardo de cada dia (cf. 11,28; Tg 4,13-14). Entre os primeiros cristãos, a esperança escatológica (reino de Deus) e uma crítica realista e pessimista do mundo podiam andar juntos.

Na recepção do texto na história da Igreja alternam-se interpretações do texto que o relacionam aos discípulos decididos ou ao povo todo em geral. Interessa a questão da propriedade e do trabalho. Outros textos como Gn 3,17-19; 2Ts 3,10-12 e o exemplo do apóstolo Paulo (cf. At 18,3; 1Cor 9 etc.) influenciaram para que o trabalho ganhasse um destaque positivo também entre os monges, p. ex. nas regras de S. Basílio, de S. Bento (ora et labora – reze e trabalhe) e de S. Francisco. Stº. Agostinho polemizou contra monges preguiçosos, mas defendeu a isenção do clero de trabalhos comuns. O conselho ao jovem rico (Mt 19,16-22) contribuiu para entender o texto como conselho evangélico para os mais perfeitos, não como ordem para todos. Assim permite-se a propriedade, mas depende do seu uso (obrigação social, dar esmolas). Distingue-se entre preocupação lícita e ilícita (cf. v. 34): preocupar-se com o tempo presente é permitido, mas “amanhã” existe só no tempo; nós devemo-nos preocupar com a eternidade. Preocupar-se por amor é lícito, também a preocupação do rei, do pai de família, do funcionário pelo pessoal confiado é lícita, mas não a preocupação egoísta, exagerada e medrosa.

A exigência de Jesus pode se esvaziar com a justificação perpétua da propriedade e da ética protestante do trabalho (cf. M. Weber sobre as raízes do capitalismo). Mas a vida alternativa que Jesus propõe também não é um estilo de vida entusiasta moderna (p. ex. a boêmia, os hippies), mas o serviço do reino de Deus e sua justiça.

O filósofo Kierkegaard (1813-1855) diz que, através deste evangelho, o homem vê “na dispersão dos pássaros outra coisa do que sua preocupação; poderia contemplar como é maravilhoso poder trabalhar e ser humano. E se ele se esquecer disso durante o trabalho, então o pássaro pode lembrá-lo do esquecido.” Kierkegaard conta também a história de um candidato luterano à teologia, L. Fromm (palavra alemã que significa “piedoso”).  “Primeiro”, ele busca um emprego real como pastor, por isso faz as provas e os exames “primeiro”, depois faz o noivado “primeiro”, e antes de começar seu ofício precisa negociar “primeiro” um bom salário. Finalmente, num domingo, está no púlpito para proferir sua primeira homilia, que é justamente sobre o evangelho: “Buscai primeiro o reino de Deus” (v. 33). O bispo se mostra impressionado com esta pregação com tanta doutrina salvífica e autêntica, principalmente como o candidato enfatizou a parte do “primeiro”. – “Mas V. Reverendíssima acha que aqui está a coerência de pregação e vida?” questiona Kierkegaard.

O site da CNBB comenta: A vida moderna é cada vez mais marcada pela satisfação de necessidades urgentes criadas pela sociedade e pela cultura. A busca da satisfação dessas necessidades nos ocupa praticamente o tempo todo e nunca obtém pleno sucesso, pois sempre fica faltando alguma coisa. Por que acontece isso? É porque a pessoa contemporânea deixou de lado o Deus verdadeiro para se colocar ao serviço dos deuses que marcam o paganismo moderno, como o dinheiro, o prazer e o poder, e esses deuses nunca estão satisfeitos e nem trazem satisfação para o coração humano. É claro que não devemos nos alienar, nos afastar do mundo como se ele fosse uma coisa má, mas não-distanciamento não pode significar servidão aos deuses e mitos da modernidade.

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