26 de Janeiro de 2020, Domingo: Jesus começou a pregar dizendo: “Convertei-vos, porque o Reino dos Céus está próximo” (v. 17).

3º Domingo do Tempo Comum 

 1ª Leitura: Is 8,23b-9,3

A 1ª leitura foi escolhida porque é citada pelo evangelho de hoje (Mt 4,15s cita Is 8,23b-9,1). Nós já ouvimos esta leitura na noite de Natal, mas sem o primeiro versículo (8,23) que é exatamente aquele que é citado por Mt a respeito do aparecimento do messias Jesus na Galileia.

No tempo passado o Senhor humilhou a terra de Zabulon e a terra de Neftali; mas recentemente cobriu de glória o caminho do mar, do além-Jordão e da Galileia das nações (8,23b).

Na época do profeta Isaias, as campanhas militares dos assírios humilharam o povo de Israel (cf. 8,23b). O rei assírio Teglat-Falasar III invadiu a Galileia em 733 a.C. e deportou seus habitantes para Assíria (2Rs 15,29). Isaías anuncia uma reviravolta, alegria em vez de desespero.

No oráculo que segue, Isaias anuncia um “dia do Senhor (Javé)” que trará a libertação aos deportados; ele anuncia ao mesmo tempo o reinado pacífico de um menino de estirpe real (v. 5s omitido hoje, mas lido na noite de Natal), o “Emanuel” de 7,14. Talvez o oráculo tenha sido pronunciado na entronização do jovem rei Ezequias em Jerusalém, para dar esperança as regiões do norte que foram devastadas pela Assíria, em 724-722 a.C. (2Rs 17).

É o território das tribos Natali e Zabulon, ou seja, a Galileia, “o distrito das nações” (8,23b). Galileia significa distrito (hebr. galil), mas longe de Jerusalém era considerada quase pagã (cf. Jo 7,41.52 e Mt 4,12-16, onde Jesus escolhe esta região para morar).

O povo, que andava na escuridão, viu uma grande luz; para os que habitavam nas sombras da morte, uma luz resplandeceu (9,1).

“Na escuridão”, símbolo do caos e da morte e do paganismo, surge de repente uma “grande luz” como uma nova criação (cf. Gn 1,3; Mt 28,1p). Lc alude a esta frase no cântico de Zacarias (Lc 1,78s) e na aparição luminosa do anjo aos pastores durante a noite do nascimento de Jesus (Lc 2,8s).

Fizeste crescer a alegria e aumentaste a felicidade; todos se regozijam em tua presença, como alegres ceifeiros na colheita, ou como exaltados guerreiros ao dividirem os despojos (v. 2).

São três os motivos de alegria: glória depois da humilhação (8,23b), luz nas trevas (9,1), alegria realizada (v. 2). A volta do exílio é alegria e fim da guerra. Se o plantio foi duro e sofrido, a alegria da colheita compensa muito (Sl 126,5s).

Pois o jugo que oprimia o povo, – a carga sobre os ombros, o orgulho dos fiscais – tu os abateste como na jornada de Madiã (v. 3).

A opressão pelos assírios, exploração e trabalhos forçados acabam como num dia de Madiã, quando, na vitória do juiz Gedeão, as tochas brilharam a noite espantando o inimigo (cf. Jz 7). Para mostrar que era Javé que lutava por Israel, Gedeão venceu com um pequeno grupo de combatentes o poderoso exército dos madianitas que “oprimia o povo”. Jesus também vai começar com um pequeno grupo de discípulos (cf. sua vocação no evangelho de hoje).

Nossa liturgia omite os vv. seguintes que apresenta a paz que um menino da descendência de Davi trará (que combinam com Natal, não mais com o Tempo Comum).

 

 

2ª Leitura: 1Cor 1,10-13.17

A segunda leitura no Tempo Comum não é escolhida por afinidade ao evangelho (ou à 1ª leitura), mas é uma leitura contínua (trechos escolhidos por vários domingos) de uma carta de um apóstolo. Continuamos hoje na primeira carta aos Coríntios (cf. a introdução no domingo passado). Depois da saudação e ação de graças, Paulo toca no assunto: a divisão da comunidade em facções.

A Bíblia do Peregrino (p. 2738) comenta: Um judeu que esperasse um Messias segundo a Escritura podia sentir o problema da unidade. Pois uma das tarefas do descendente de Davi seria refazer a unidade das tribos rompida no trágico cisma (cf. Is 7,17; 37,15-28). Pois bem, quando o messias chega a chama também os pagãos juntos aos judeus, parece complicar a situação (como se viu no Concílio de Jerusalém, At 15). Dentro do judaísmo, Paulo conheceu seitas bem diferentes e mesmo rivais: poderíamos aceitar o mesmo na igreja?

Irmãos, eu vos exorto, pelo nome do Senhor nosso, Jesus Cristo, a que sejais todos concordes uns com os outros e não admitais divisões entre vós. Pelo contrário, sede bem unidos e concordes no pensar e no falar (v. 10).

A exortação de Paulo é solene e enérgica: “Eu vos exorto” (lit. “rogo”, em grego parakolô, da mesma raiz que “chamar”), pelo nome de Jesus e apelando a seus títulos de Cristo (Messias) e Senhor. Todos os fiéis reconhecem Jesus como Messias e o “invocam” como Senhor (v. 2). Não deve ter divisões apesar de os cristãos Corinto são de procedência muito heterogênea. A “consagração” (v. 2) deve pesar mais do que as diferenças de origem.

Contra as divisões que rompem a unidade e a favor da concórdia (entre irmãos, cf. Sl 133), lit.: “dizei todos a mesma coisa”.

Com efeito, pessoas da família de Cloé informaram-me a vosso respeito, meus irmãos, que está havendo contendas entre vós (v. 11).

Segundo uma hipótese atraente, Cloé era uma comerciante, cujo pessoal empreendia frequentes viagens entre Corinto e Éfeso (lugar onde Paulo estava ao escrever esta carta por volta de 56 d.C.).

Digo isto, porque cada um de vós afirma: “Eu sou de Paulo”; ou: “Eu sou de Apolo”; ou: “Eu sou de Cefas”; ou: “Eu sou de Cristo”! Será que Cristo está dividido? Acaso Paulo é que foi crucificado por amor de vós? Ou é no nome de Paulo que fostes batizados? (vv. 12-13).

“Eu sou de Paulo… Apolo, … Cefas”. Cefas é palavra aramaica por Pedro (Jo 1,42; cf. 1Cor 9,4; 15,5; Gl 1,18; 2,7-14). Apolo foi um orador talentoso de Alexandria (cf. 3,4-6; At 17,24-19,1; Tt 3,13). Lutero o considera como possível autor da carta aos Hebreus (Hb).

A Bíblia do Peregrino (p. 2738s) comenta: Peça central da mensagem/evangelho de Paulo é que o Messias prometido aos judeus é enviado a todos os homens. É absurdo fazer dele a bandeira de um bando contra outros, cirando facções em Corinto. O Messias não está dividido nem é monopólio de um grupo. Pelo vista, haviam se formado em Corinto vários partidos: o de Paulo, fundador desta igreja; o de Pedro, pro um tempo líder da igreja em Jerusalém, dedicado mais aos judeus, porém, pioneiro da abertura aos pagãos (At 10-11); o de Apolo, judeu helenista da Alexandria, muita versado na Escritura e relacionado com o movimento do Batista (At 18,25); e o do Messias, legítimo em si, mas deformado por atitudes polêmicas, intransigentes.

Em 3,22s, Paulo cita novamente estes três nomes, mas conclui: “Vós sois de Cristo, e Cristo é de Deus” A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2209) comenta: Não responde o apóstolo, é o contrário: vós não pertenceis a esses homens, eles é que são vossos servidores. Eles, como todo o resto da criação, estão a vosso serviço para que vós mesmos estejais a serviço de Cristo e, pelo Cristo, a serviço de Deus.

“Eu sou de Cristo! Será que Cristo está dividido?” Entre os judeus uns esperavam um Messias rei, outros um Messias sacerdote, outros (os essênios de Qumrã), inspirados talvez em Zc 3-4, esperavam dois, um messias rei, outro sacerdote. Mas Paulo não admite só um, o “crucificado” (vv. 18-25), ao qual o batizado se consagra. “No nome de Paulo que fostes batizados?” No rito batismal se invoca o nome daquele a quem seria consagrado o batizado (At 2,38; 8,16). Diante da consagração/dedicação, pouco importa quem administra o rito. Nossa liturgia Saltou vv. 14-16 em que Paulo se lembra de alguns poucos que ele mesmo batizou, como exceção.

De fato, Cristo não me enviou para batizar, mas para pregar a boa nova da salvação, sem me valer dos recursos da oratória, para não privar a cruz de Cristo da sua força própria (v. 17).

Os “recursos da oratória” (lit. “sabedoria do palavra”, ou seja, as especulações do pensamento e os artifícios da retórica) podem se opor à sabedoria de Deus (v. 24 e 2,6s). A arte oratória era muito apreciada entre os gregos e obedecia a regras precisas. Paulo não quer ser valer disso, “para não privar a cruz de Cristo da sua força própria”, lit.: “para a cruz de Cristo não ficar esvaziada” (do seu conteúdo). Ele desenvolve este ponto em 2,1-5 (cf. 5º Domingo).

A Bíblia do Peregrino (p. 2738) comenta:

Não se trata de valor comparativo, e sim de divisão de trabalho; não se rebaixa o sacramento em favor da palavra. O que Paulo pensa sobre o batismo está explicado em Rm 6 e outros lugares. Ademais, o evangelho tem por tema a pessoa e a obra de Jesus Cristo, e o batismo expressa a dedicação total a essa pessoa: ver, a título de exemplo, o episódio de Filipe e o eunuco (At 8).

A segunda parte do v. serve de transição, para anunciar o próximo tema. À cruz do Messias contrapõem “a sabedoria (ou destreza) da palavra (ou razão)”. A eloquência convence pela habilidade do orador, não extrai sua força da cruz do Messias; Paulo podia recordar seu fracasso em Atenas antes de chegar sem forças a Corinto.

Evangelho: Mt 4,12-23

No evangelho deste domingo, Mt introduz a pregação de Jesus na Galileia e o chamado dos primeiros discípulos, conforme encontrou no evangelho mais antigo de Mc (cf. Mc 1,14-20). No meio, porém, Mt insere mais uma das suas citações da Escritura do AT (vv. 13-16).

Ao saber que João tinha sido preso, Jesus voltou para a Galileia (v. 12).

Jesus começa sua atividade na Galileia, região distante de Jerusalém, que era o centro político e religioso de seu país. A esperança da salvação se mostra justamente de numa região da qual nada se espera (cf. Jo 1,46; 7,41.52), região desprezada onde terroristas (zelotas) iniciaram revoltas (At 7,37).

“João tinha sido preso” lit. foi entregue. A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 1861) comenta: Isto é, preso, aprisionado (cf. Lc 3,20), como é dito igualmente de Jesus (17,22; 26,2; 27,2; 18,26). A escolha do termo e a forma do verbo no passivo sugerem que, embora os atores do drama sejam homens, quem o dirige segundo seus próprios desígnios é Deus (cf. At 4,28).

“Voltou”, lit. retirou-se: Mt usa este verbo para indicar um recuo diante de um perigo (2,12.13.14.22; 12,15; 14,13; 15,21). Mas Herodes Antipas que mandou prender João, também governa na Galileia. Para Mt, Jesus volta a Galileia porque corresponde ao plano divino para cumprir a profecia (vv. 14-16).

Jesus não começou pregar enquanto João ainda atuava na beira do rio Jordão. Será por coincidência ou por respeito? Em Jo 1, Jesus, Pedro e André já eram discípulos no âmbito de João Batista. Quando o Batista foi preso no Jordão, o grupo se desintegrou e voltou a sua pátria Galileia (cf. 1,9; Jo 1,43s). Como o menino Jesus obedeceu a seus pais (Lc 2,51), Jesus poderia ter respeitado seu mestre João (apesar de ser superior a ele, cf. Mt 3,14s; Jo 1,30), antes de começar sua pregação. A menção da prisão do Batista traz a expectativa de que Jesus anuncie uma mensagem de esperança e libertação.

Deixou Nazaré e foi morar em Cafarnaum, que fica às margens do mar da Galileia, no território de Zabulon e Neftali, para se cumprir o que foi dito pelo profeta Isaías: “Terra de Zabulon, terra de Neftali, caminho do mar, região do outro lado do rio Jordão, Galileia dos pagãos! O povo que vivia nas trevas viu uma grande luz e para os que viviam na região escura da morte brilhou uma luz” (vv. 13-16).

“Deixou Nazaré” lit. Nazara, forma muito rara, mas atestada pelo paralelo Lc 4,16 (da fonte Q ou segunda edição de Mc, Deuteromarcos?) e por excelentes autoridades (B Z Orígenes k; a imensa maioria dos documentos voltou a forma comum de Nazaré). A família de Jesus havia se instalado neste lugar (2,23). O “profeta Jesus, o de Nazaré” (21,11) “deixa” (abandona) sua pátria, como deixa seus inimigos (16,4) ou Jerusalém (21,17).

O “mar da Galileia” (cf. Mc 1,16), na verdade é o lago de Genesaré (cf. Lc 5,1; 8,22). Jesus “foi morar em Cafarnaum” (cf. Mc 1,21) que será “sua cidade” (9,1; em Jo 2,12 “apenas alguns dias”). O lugar é localizado comumente a noroeste do lago, hoje Tell Hum.

“Para se cumprir o que foi dito pelo profeta Isaías”. Mt aproveita a menção da Galileia para inserir mais uma citação bíblica do Antigo Testamento (cf. 1,2ss; 2,5s.15.17s.23; 3,3; etc.). O oraculo é de Is 8,23-9,1, mas Mt modificou o texto do AT: cortou os verbos de Is 8,23 e trocou em Is 9,1 o verbo resplandecer por brilhar (anateilen, talvez lembrando a estrela de Nm 24,17; cf. Mt 2,2.9; Lc 1,78s; Is 58,10).

“Galileia dos pagãos”, lit. das nações (para judeus, “nações” significa sempre “pagãos”). Esta região paganizada pelos assírios será cenário da revelação luminosa pela presença do messias, menino dos títulos sublimes de Is 9,5s que Mt omite aqui, mas subentende (cf. 1ª leitura de hoje e da noite de Natal). Não quer dizer que Galileia estava povoado por pagãos (havia gregos e romanos no meio), mas pertence a Israel. Para Mt, a citação tem significado simbólico: Jesus é o messias de Israel, mas sua meta (segundo o desígnio de Deus) será a evangelização das nações (cf. 21,43; 28,16-20); “a grande luz” não será mais a Lei de Moisés, mas o Evangelho (Origenes).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 1862) comenta: Para precisar não somente o lugar, mas o significado profético do ministério de Jesus desde o início, Mt é o único que cita Is 8,23-9,1, modificando-lhe, aliás, profundamente o texto. Essas palavras caracterizam o conjunto do evangelho de Mateus: na Galileia, Jesus dirige-se às tribos do povo mais ameaçadas pela noite pagã, como fora Israel por parte dos assírios. Por isso mesmo este mistério entra em contato com “todas as nações” (28,19). Ao passo que os outros se retiram ao deserto (por exemplo, os homens de Qumran ou João Batista) ou concentram sua atividade em Jerusalém, Jesus, o Emanuel anunciado pelo profeta (Is 7,14; 8,8.10), escolhe a “Galileia das nações”, que Mt evoca no decurso do seu evangelho (cf. 2,22; 3,13; 4,23.25; 28,16).

Daí em diante Jesus começou a pregar dizendo: “Convertei-vos, porque o Reino dos Céus está próximo” (v. 17).

“Daí em diante” Esta fórmula só se encontra em outro momento crucial (16,21), quer ressaltar, não só, num sentido mitigado, que Jesus “começou”, mas solenemente inaugura o ministério da sua pregação; Jesus vai apresentar-se em palavras (sermão da montanha 5,1-7,29) e em atos (8,1-9,34; no seu evangelho, Mt alterna cinco blocos de sermão e ação).

“Convertei-vos, porque o Reino dos Céus está próximo”. Mt resume mais ainda a mensagem abreviada de Jesus como estava no evangelho mais velho (Mc 1,15). Em Mt, as mesmas palavras inauguram a pregação do Batista (3,2; cf. 2º Domingo do Advento). Só que Jesus personifica o reino (como messias-rei), e o arrependimento que pede é para receber o evangelho (4,23; 9,35).

Diferente dos outros evangelistas, Mt quase sempre usa o termo “Reino dos Céus” em vez de “Reino de Deus” (em Mt só 12,28; 19,24; 21,31,43). Os leitores da sua comunidade são judeu-cristãos e seguem o costume da sinagoga de evitar pronunciar Deus e substituir o Nome terrível por uma metáfora (céu).

A realeza permanente de Deus sobre o mundo expressa-se em Sl 93,1s; 95,3; 99,1-4 etc.; os salmos 96 e 98 anunciam a vinda do Senhor como juiz e rei “para governar o mundo”. O reinado do mundo celeste se apresentará na pessoa de Jesus e com ele “está (chegou) próximo”, ou “tornou-se próximo”. No Antigo Oriente não havia estados democráticos, apenas monarquias (um rei ou imperador com todo poder em suas mãos). De maneira análoga no AT (Antigo Testamento), Deus é visto como rei, sentado no trono e cercado de uma corte celeste (anjos), governando toda a terra, a criação e as nações (cf. Sl 24; 145 etc.). De maneira especial, Deus é rei de Israel, seu povo escolhido. Atendendo ao pedido do povo, Deus concedeu um rei (monarca) para governar as doze tribos de Israel, mas não sem crítica e submetendo o rei à lei de Deus (cf. 1Sm 8). Ao segundo rei, Davi (cerca de 1000 a.C.), prometeu um descendente que governará para sempre, o “messias” (rei “ungido”, 2Sm 7). Nos tempos difíceis, os profetas continuaram alimentando esta esperança de um messias salvador (Is 9,5s; 11,1-5; Jr 23,5-6 etc.).

O termo e conceito próprio do “reino de Deus” aparece pela primeira vez nas visões apocalípticas de Dn 2,44; 7,14. “O tempo já se completou” (v. 15): Jesus é o “Filho do homem” (Mc 2,10.28 etc.) a quem Deus entregará este reino (cf. Dn 7,13s). Com ele, o reino “está próximo”; ele é o rei (Cristo=Messias) que representa este reino. Isto é o que a Igreja vai anunciar após a sua morte e ressurreição. Para Paulo, o centro da pregação já é o Cristo, não mais o reino (cf. 1Cor 1,22-24; Gl 2,20 etc.).

A Bíblia de Jerusalém (p. 1844) comenta o conceito do Reino de Deus:

A realeza de Deus sobre o povo eleito, e por meio dele sobre o mundo, ocupa o centro da pregação de Jesus, como o ocupava no ideal teocrático do AT. Ela admite um Reino de “santos”, dos quais Deus será realmente o Rei, porque seu reinado será reconhecido por eles no conhecimento e no amor. Essa realeza, comprometida em virtude da revolta do pecado, deve ser restabelecida por uma intervenção soberana de Deus e do seu Messias (Dn 2,44). É essa a intervenção que Jesus, depois de João Batista (3,2), anuncia como iminente (4,17.23; Lc 4,43). E isso ele realiza não por um triunfo guerreiro e nacionalista, como esperavam as multidões (Mc 11,10; Lc 19,11; At 1,6), mas de uma forma toda espiritual (Mc 1,34; Jo 18,36), como “Filho do Homem” (Mt 8,20) e “Servo” (Mt 8,17; 20,28; 26,28), por sua obra redentora que arranca os homens do reino adverso de Satanás (4,8; 8,29+; 2,25.26). Antes da sua realização escatológica definitiva, quando os eleitos viverão junto ao Pai na alegria do festim celestial (8,11+; 13,43; 26,29), o Reino aparece na humildade dos seus primeiros passos (13,31-33), misterioso (13,11) e impugnado (13,24-30), como uma realidade já iniciada (12,28; Lc 17,20.21) e que se desenvolve lentamente na terra (Mc 4,26-26), por meio da Igreja (Mt 16,18+). Instaurado com poder como Reino de Cristo pelo julgamento de Deus sobre Jerusalém (Mt 16,28; Lc 21,31) e pregado no mundo todo pela missão apostólica (Mt 10,7; 24,14; At 1,3), ele será estabelecido de maneira definitiva e entregue ao Pai (1Cor 15,24) pela volta gloriosa de Cristo (Mt 16,27; 25,31-46). Durante esse período de espera, ele se apresenta como graça pura (20,1-16; 22,9.10; Lc 12,32), aceita pelos humildes (Mt 5,3; 18,3-4; 19,14.23-24), pelos capazes de renúncia (13,44-46; 19,12; Mc 9,47; Lc 9,62; 18,29s) e rejeitada pelos orgulhosos e egoístas (21,3-32.43; 22,2-8; 23,13). Aí não se entra senão com a veste nupcial (22,11-13) da vida nova (Jo 3,3.5); há excluídos (Mt 8,12; 1Cor 6,9-10; Gl 5,21). É preciso vigiar a fim de esperar pronto quando ele vier inesperadamente (Mt 25,1-13).

Quando Jesus andava à beira do mar da Galileia, viu dois irmãos: Simão, chamado Pedro, e seu irmão André. Estavam lançando a rede ao mar, pois eram pescadores. Jesus disse a eles: “Segui-me, e eu farei de vós pescadores de homens.” Eles, imediatamente deixaram as redes e o seguiram. Caminhando um pouco mais, Jesus viu outros dois irmãos: Tiago, filho de Zebedeu, e seu irmão João. Estavam na barca com seu pai Zebedeu consertando as redes. Jesus os chamou. Eles, imediatamente deixaram a barca e o pai, e o seguiram (vv. 18-22).

Mt seguem fielmente o relato de Mc 1,16-20 sobre a vocação dos primeiros discípulos. Em Jo 1,35-51 os discípulos conheceram e seguiram Jesus a partir da indicação de outras pessoas (João Batista, parentes e outros discípulos). Em Mc e Mt eles veem Jesus pela primeira vez.

Um rei não faz as coisas sozinho, mas tem seus ministros. Também um profeta e um rabino têm seus discípulos. Então o messias Jesus chama os primeiros discípulos como colaboradores. Mt evita o termo “apóstolo” (só na lista em 10,2) e usa sempre “discípulos”, para ele esta vocação é o início da comunidade, nem tanto para garantir a tradição através de testemunhas oculares (como em Lc, cf. At 1,21-26). Para Mt, esta origem da comunidade cristã é consequência e meta da chegada de Jesus na Galileia. Onde se anuncia o evangelho do Reino, pessoas são chamadas à obediência radical (da fé, cf. Rm 1,5; At 6,7 etc.). Assim surge a comunidade cristã.

No “mar da Galileia” (o lago de Genesaré com 15 km de extensão) havia muitos pescadores; era uma profissão para os que não possuíam terras na Galileia, região de muitos latifúndios. Jesus chama dois irmãos, em primeiro lugar Simão (Mt acrescenta logo seu nome “Pedro”, posteriormente dado em 16,18; cf. Mc 3,16; Jo 1,42: “Cefas” em aramaico; cf. 1Cor 9,4; 15,5; Gl 1,18; 2,7-14), e seu irmão André para outra pesca, a “de homens” (cf. Lc 5,1-11; Jo 21) formando uma rede de evangelizadores. A boa notícia (Evangelho) do reino atrairá multidões (vv. 23-25). Numa parábola de Mt, também as redes ganham valor simbólico na missão (13,47).

Simão Pedro e André “imediatamente deixaram as redes”, mas não logo a família e a casa em Cafarnaum onde Jesus curará a sogra de Pedro (8,14-15p; cf. 9,10.28; 17,24s). Jesus usará também a barca de Pedro para as travessias no lago (8,18.23p; 9,1p etc.).

Novamente Jesus chama dois irmãos, Tiago e João, filhos de Zebedeu (apelidados “filhos do trovão”, só em Mc 3,17). Estes deixam tudo, a barca e ainda o pai (Mt omite os empregados de Mc 1,20) e seguem Jesus (cf. 8,19-22; 9,9p; 20,20-23.34). Mt salienta que os discípulos deixam imediatamente o pai, mas em favor da obediência ao Pai celeste (cf. 8,21; 10,35-37; 19,29; 23,9!). Talvez a ruptura com a sinagoga tenha acarretado ruptura nas próprias famílias da comunidade de Mt.

A palavra de Jesus tem poder e autoridade, é diferente daquela dos escribas e maior do que a dos profetas (7,28s; 8,8s; 16,13-16). É “palavra de rei (messias)” que deve ser atendida e “seguida” imediatamente. É Palavra eficaz de Deus (Deus falou e assim se fez, cf. Gn 1; Hb 4,12s). Quando a palavra (vontade) de Deus é obedecida, o “Reino” de Deus começa realizar-se (cf. os pedidos na oração do Pai-Nosso em Mt 6,10).

“Segui-me”, lit. Vinde após a mim. Expressão análoga em 16,23s. A Bíblia do Peregrino (p. 2324) comenta: O chamado é categórico, a resposta é imediata e incondicional. A profissão humana, “pescadores”, é assumida e transcendida: o pescador vive em contato com um elemento potencialmente hostil e não tem garantido o êxito de sua tarefa (a imagem com valor negativo em Hb 1,14-17). Seguir ou ir atrás: expressão frequente no Dt para significar a fidelidade ao Senhor; ver o chamado de Eliseu (1Rs 19,19-21). Daí a espiritualidade cristã do “seguimento” de uma pessoa, Jesus.

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 1862) comenta: No judaísmo do séc. I, o verbo “seguir” designava habitualmente o respeito, a obediência e os numerosos serviços que os discípulos dos rabinos deviam prestar a seus mestres. Ao aplicar este termo a Jesus e a seus discípulos, Mt lhe modifica o sentido em vários pontos: 1) já não é o discípulo que escolhe seu mestre; o chamamento vem de Jesus e é geralmente atendido por uma obediência imediata (4,22; 9,9); 2) os discípulos seguem Jesus não só como ouvintes, mas como colaboradores, testemunhas do Reino de Deus, obreiros da sua messe (10,1-27), da mesma forma como entre os zelotes os discípulos não se ligam só ao ensino do mestre, mas à sua pessoa; 3) Mt revela amiúde que as multidões seguem Jesus, indicando com isto que elas procuram vagamente nele o mestre que não encontraram nos rabinos oficiais da sinagoga (4,25; 8,1; 12,15; 14,13 etc.); 4) num segundo período, Jesus procede a uma crítica deste “seguimento”, mostrando que ele significa muito mais do que a princípio os discípulos ou as multidões tinham imaginado; seguir Jesus é nada menos que tomar sobre si a sua cruz (16,24).

Jesus andava por toda a Galileia, ensinando em suas sinagogas, pregando o Evangelho do Reino e curando todo tipo de doença e enfermidade do povo (v. 23).

É um resumo narrativo que Mt emprega antes do primeiro sermão (da montanha: caps. 5-7), e o repete literalmente em 9,23 antes do segundo sermão (sobre a missão dos apóstolos (cap. 10). A atividade de Jesus junta e unifica ensinamento (7,28s; 21,23), proclamação da boa noticia ou evangelho (10,7; 24,14) e curas (8,16s). As curas miraculosas são o sinal privilegiado do advento messiânico (cf. 10,1.7s; 11,4s).

A expressão “o Evangelho do Reino”, é peculiar a Mt (9,25; 24,14). A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 1862) comenta: Ela designa, quer o anúncio da chegada deste reino ou reinado de Deus (cf. 3,2 …), quer este anúncio com todas as instruções práticas de Jesus que o evangelista nele inclui, isto é todo o evangelho mateano … Além do anúncio do Evangelho, as “curas” significam que o Reino de Deus está em ação (cf. 10,1-7.8; 11,5 …). Por meio da palavra “toda”, Mt frisa o alcance universal do comportamento de Jesus: talvez aluda a Is 53,4, citado em Mt 8,17.

Para refletir: o que responder a críticas modernas que dizem: “Jesus não queria fundar uma igreja” e “Jesus anunciou a vinda do Reino de Deus, mas o que veio, foi a Igreja”? Fato é que Jesus chamou colaboradores para anunciar o Reino de Deus e formar comunidade. A Igreja continua fazendo isso.

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