26 de junho de 2016 – 13º Domingo Ano C

1ª Leitura: 1Rs 19,16b.19-21

Naqueles dias:disse o Senhor a Elias:

“Vai e unge 16ba Eliseu, filho de Safat, de Abel-Meula, como profeta em teu lugar”. 1

O Senhor disse-lhe: “Vai e toma o teu caminho de volta, na direção do deserto de Damasco. Chegando lá, ungirás Hazael como rei da Síria. Unge também a Jeú, filho de Namsi, como rei de Israel, e a Eliseu, filho de Safat, de Abel-Meula, como profeta em teu lugar (vv. 15-16).

O que esta voz tênua anuncia, porém, é a mudança do poder político (cf. Eclo 48,6-8). Estas missões serão na realidade cumpridas por Eliseu: ungir os reis que farão guerra contra a casa de Acab e Jezabel. Hazael foi um oficial da corte arameu e matou seu rei para tornar­-se ele mesmo o rei em Damasco (2Rs 8,7-15; foi vencido pelo rei assírio Salmanassar III em 841). Jeú (Iehu) era general durante o reinado do filho de Acab, Jorão (852-841) e lutou contra os arameus. Foi ungido rei de Israel clandestinamente por um discípulo de Eliseu (2Rs 9,1-10) e iniciou depois uma revolução matando Jorão com toda sua família (incluindo Jezabel, cf. 2Rs 9-10). Com zelo religioso por Javé, eliminou a maior parte dos profetas e sacerdotes de Baal e destruiu seus altares (2Rs 10,18-30).

Sobre a atividade profética de Eliseu, cf. 2Rs 2-8. Aqui em v. 16, acha-se a única menção à unção de um profeta. Nos textos mais antigos, a unção era reservada aos reis e lhes conferiu um caráter sagrado (1Sm 9,26; 10,1s; 16,1-13; 24,7 etc.). A unção (Ex 28,41; 29,7.29; 30,22-33; etc.) não era dada aos profetas, mas aos sacerdotes (ao que as pesquisas indicam, não antes da época persa); este paralelismo faz aparecer aqui esse termo impróprio da unção para um profeta.

A Bíblia de Jerusalém (pag. 541) comenta: Furacão, terremoto, raios, que manifestavam em Ex 19 a presença de Iahweh, aqui não são mais sinais precursores de sua passagem; o murmúrio de um vento tranqüilo simboliza a intimidade do seu trato com os seus profetas, mas não suavidade da sua ação: as ordens terríveis dos vv. 15-17 provam a falsidade dessa interpretação, que, no entanto, é comum.

Por isso, nosso texto litúrgico omite o final da mensagem divina (cf. também a omissão litúrgica da mensagem na vocação de Samuel em 1Sm 3,11-18): “Quem escapar da espada de Hazael, será morto por Jeú. E quem escapar da espada de Jeú, será morto por Eliseu. Mas eu vou poupar em Israel sete mil homens: são todos os joelhos que não se dobraram diante de Baal e todos os lábios que não o beijaram” (vv. 17-18).

9Elias partiu dali e encontrou Eliseu, filho de Safat, lavrando a terra com doze juntas de bois; e ele mesmo conduzia a última. Elias, ao passar perto de Eliseu, lançou sobre ele o seu manto.

20Então Eliseu deixou os bois e correu atrás de Elias, dizendo: “Deixa-me primeiro ir beijar meu pai e minha mãe, depois te seguirei“. Elias respondeu: “Vai e volta! Pois o que te fiz eu?” 21Ele retirou-se, tomou a junta de bois e os imolou. Com a madeira do arado e da canga assou a carne e deu de comer à sua gente. Depois levantou-se, seguiu Elias e pôs-se ao seu serviço.
10ª semana sábado 

Leitura: 1Rs 19,19-21

No monte Horeb, Deus ordenou a Elias para ungir Eliseu “como profeta no seu lugar” (v. 16). No livro 1Rs segue-se o relato da vocação de Eliseu, porém sem mencionar a unção que nunca se administrava a profetas (apenas a reis e sacerdotes, cf. comentário de ontem). Os vv. 19-21 provêm do ciclo de Eliseu (cf. 2Rs 2-8).

O profeta Elias partiu dali e encontrou Eliseu, filho de Safat, lavrando a terra com doze juntas de bois; e ele mesmo conduzia a última. Elias, ao passar perto de Eliseu, lançou sobre ele o seu manto (v. 19).

O lugar da origem de Eliseu é “Abel-Meula” (v. 16), significa em hebraico “Prado da Dança”, já era conhecido durante o reinado de Salomão (1Rs 4,12).

Em v. 11, Javé Deus “passou” diante de Elias (como antigamente diante de Moisés, cf. Ex 33,19.21; 34,6). Agora Elias, voltando fortalecido pela passagem do Senhor no Horeb, “passou perto de Eliseu, lançou sobre ele seu manto”, o mesmo manto que cobriu seu rosto na hora da passagem do Senhor (v. 13).

O manto parece representar a dignidade profética (2Rs 1,8.13s; cf. Mt 3,4p; 2Tm 4,13). O manto simboliza a personalidade e os direitos do seu dono. Além disso, o manto de Elias tem uma eficácia milagrosa (2Rs 2,8). Pensava-se outrora que as vestes, ou todos os objetos pertencentes a uma pessoa, representavam essa pessoa e conservavam alguma coisa de seu poder (cf. 2Rs 2,13s; 4,29-31; Mc 5,27s; 6,56; At 19,12): Elias, por gesto, dirigia uma vocação profética e Eliseu . Elias acolhe pessoalmente Eliseu. É uma escolha.

Então Eliseu deixou os bois e correu atrás de Elias, dizendo: “Deixa-me primeiro ir beijar meu pai e minha mãe, depois te seguirei”. Elias respondeu: “Vai e volta! Pois o que te fiz eu?” Ele retirou-se, tomou a junta de bois e os imolou. Com a madeira do arado e da canga assou a carne e deu de comer à sua gente. Depois levantou-se, seguiu Elias e pôs-se ao seu serviço (vv. 20-21).

Elias adquire assim um direito sobre Eliseu, que não pode se furtar. Eliseu entende que sua vida aqui é passagem, não sedentarismo. Destruindo seu arado e seus bois, exprime sua renúncia à sua condição anterior.  “Deu de comer à sua gente”, lit. ao povo. i. é. ao seu clã e à sua família. Este sacrifício é um sinal da entrada em seu ofício.

No NT, Jesus é mais do que Elias; por isso pode exigir um seguimento mais radical e urgente e não deixa voltar um discípulo para se despedir dos familiares: “Quem põe a mão no arado e olha para trás não é apto para o reino de Deus” (Lc 9,61s).

 

2ª Leitura: Gl 5,1.13-18

A 2ª leitura continua na carta aos Gálatas. Temos que levar em conta o contexto histórico do imperio romano, cuja economia se baseiava na escravidão, e a tradição patriarcal, presente também no judaísmo. No domingo passado, ouvimos Paulo declarar que pelo batismo não há mais discriminação de judeu e grego (pagão), de escravo e livre, de homem e mulher, porque “todos vós sois um em Cristo” (3,28s). No cap. 4 (omitido na liturgia do domingo), diz que “Deus enviou seu Filho… para que resgatasse os que eram sujeitos à Lei e para que todos recebêssemos a filiação adotiva… Assim já não és mais escravo, mas filho; e se és filho, és também herdeiro: tudo isso, por graça de Deus (vv. 4-5.7).

Apesar de Paulo mencionar apenas três vezes a palavra “liberdade” (2,4; 5,1.13) nesta carta, ela é chamada “manifesto da liberdade cristã”, porque defende a liberdade dos cristãos contra certos pregadores judeu-cristãos que queriam obrigar os cristãos de outros povos a seguirem a lei judaica e se circuncidarem (cf. 2,3; At 15,1). No Concílio apostólico em Jerusalém (cf. 2,1-10; At 15), a questão já foi decidida. A exigência dos adversários judaizantes seria um retrocesso, uma volta à escravidão. O que vale para Paulo é a fé em Cristo e seu sinal, o batismo (2,20; 3,26s), não mais a circuncisão.

É para a liberdade que Cristo nos libertou. Ficai, pois, firmes e não vos deixeis amarrar de novo ao jugo da escravidão (v. 1).

A Bíblia do Peregrino (p. 2799) comenta: Como conclusão do que precede e introdução ao que se segue, ressoa essa frase lapidar, um dos grandes aforismos cristãos de Paulo (Jo 8,32.36). O escravo de alguém pode ser comprado por outro para ser guardado – mudança de amo, não de condição – , ou pode ser resgatado e posto em liberade. Tal é a ação de Cristo.

“É para a liberdade que Cristo nos libertou”; esta frase foi escolhida como lema da CF 2014 contra tráfico humano. No estilo hebraico quer dar ao verbo libertar um sentido mais intenso; quer dizer que o Cristo nos libertou totalmente.

Jesus Cristo, o Filho de Deus, nos comprou pelo preço do seu sangue na cruz (1Cor 6,20; 7,23; Rm 3,24s; 7,4). Se alguém voltasse à circuncisão como exigem os adversários judaizantes de Paulo (cf. At 15,1) renunciaria à liberdade dada pela fé em Cristo (cf. Rm 6,15-18). Nisto a lei e a fé não se podem conciliar (vv. 2-6). Os termos “escravidão” e “liberdade” continuam conduzindo todo o assunto do capítulo 5 (nossa liturgia omitiu os vv. 2-12).

Sim, irmãos, fostes chamados para a liberdade. Porém, não façais dessa liberdade um pretexto para servirdes à carne. Pelo contrário, fazei-vos escravos uns dos outros, pela caridade. Com efeito, toda a Lei se resume neste único mandamento: „Amarás o teu próximo como a ti mesmo“. Mas, se vos mordeis e vos devorais uns aos outros, cuidado para não serdes consumidos uns pelos outros (vv. 13-15).

A Nova Bíblia Pastoral (p. 1424) comenta: O chamado à liberdade em Cristo não se confunde com a libertinagem de fazer qualquer coisa. Liberdade, em primeiro lugar frente às cadeias da carne, isto é, dos instintos egoístas. A realização da liberdade cristã está no amor, que consiste em servir uns aos outros. Esta é a lógica: deixar de ser escravo dos instintos, para torna-se servos dos irmãos (Rm 13,8-10).

Pregando a liberdade, Paulo precisa precaver contra uma aplicação abusiva (cf. 1Pd 2,16), a libertinagem “para servirdes à carne”. A liberdade não é sem limites: é limitada pelo amor mútuo, síntese de toda a lei (Mt 7,12; Lv 19,18). O amor é o valor supremo ao qual se deve submeter: “Fazei-vos escravos uns dos outros, pela caridade”. Muito menos deve ter abusos no amor.

A verdadeira liberdade é libertação da carne (v. 16), isto é, dos desejos egoístas, e tem por meta a expansão do amor no serviço de todos. A vida dos cristãos se realiza na caridade mútua, no amor (5,6; Rm 13,8; 1Cor 13), que é uma “lei” nova (cf. 6,2; Rm 3,27; 8,2; Jo 13,34; Tg 2,8) que produz os frutos do Espírito (v. 22; cf. Rm 5,5; Fl 1,11), e não as obras da carne (v. 19; 6,8; cf. Rm 13,12). O “próximo” a ser amado não é mais “o membro do mesmo povo”, como no AT (Lv 19,18), mas todo membro da família humana (cf. Lc 10,29-37), e se identifica com o próprio Cristo sofredor (Mt 25,40.45). Nesta ótica, para Paulo, o amor ao próximo resume toda lei (Rm 13,8-10), é o”único mandamento” que inclui necessariamente o amor a Deus (cf. Mc 12,28-31p).

Eu vos ordeno: Procedei segundo o Espírito. Assim, não satisfareis aos desejos da carne. Pois a carne tem desejos contra o espírito, e o espírito tem desejos contra a carne. Há uma oposição entre carne e espírito, de modo que nem sempre fazeis o que gostaríeis de fazer (vv. 16-17).

Antes Paulo opos lei e liberdade, agora Espírito e carne. O Espírito é princípio da liberdade (cf. 2Cor 3,17) contra a escravidão da letra da lei (2Cor 3) e dos próprios instintos. Ele dá força a não satisfazer  ”os desejos da carne”, ou seja, instintos egoistas que se opõem à razão e ao amor mútuo (cf. Rm 7,5s.15-23). Assim o apóstolo designa duas tendências do ser humano, uma voltada para si mesmo, outra voltada para os irmãos. A exposição dessa dupla tendência humana será retomadas em Rm 7,15-23.

“Há uma oposição” de dois polos ou princípios de ação: orientar-se segundo a carne ou segundo o espírito. Conduzido pelo Espírito (vv. 18.25; Rm 8,14), os fiéis vivem segundo o Espírito (vv. 22-23) e se afastam das “obras da carne” (vv. 16-24), mas estas obras não são assim denominadas por se radicarem no “corpo”.

A Bíblia do Peregrino (p. 2800) comenta: Paulo não diz: ou lei ou libertinagem; e sim: ou lei ou Espírito. E também: ou Espírito ou instinto. A lei se encontra na esfera do instinto: tenta dominá-lo e não consegue. O espírito é um dinamismo interno (Rm 8,14; a lei é externa) e é mais exigente que a lei.

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2260) comenta: A exortação de fazer o bem não basta. O homem é incapaz, mesmo se o deseja, de liberdade a si mesmo do seu ser “carnal”, pecador (Rm 7,14-23). Só a intervenção do “Espírito” permite ao homem cumprir a sua verdadeira vocação. Esses vv. mostram claramente que a carne e o Espírito não são duas parte da pessoa: “segundo a carne” e “segundo o espírito” designam duas orientações divergentes da pessoa toda.

Se, porém, sois conduzidos pelo Espírito, então não estais sob o jugo da Lei (v. 18).

Os adversários pertencem ao mundo antigo, do apego à Lei, sob o “jugo” ou “prisão da Lei” (3,22-26). Paulo segue a nova lei do amor, a liberdade do Espírito e se orgulha da cruz de Cristo (vv. 24s).

Ser libertado da lei não significa ser livre para cometer o que ela condena (cf. Rm 6,14s), mas ser libertado da carne, cujas obras são condenáveis (v. 23). Libertando-nos do pecado, Cristo nos libertou também da Lei que tem poder apenas sobre o pecador que ela condena; ela não tem mais poder sobre aqueles que o Espírito “conduz” para a vida do filhos de Deus (cf. 4,4-6; Rm 8,12-17).

A narração em At 2 baseia-se nesta transição: os judeus celebram no dia de Pentecostes a “entrega da Lei”, escrita em tábua de pedra no monte Sinai, a “antiga aliança” para o povo eleito (cf. Ex 19; 24). Para a comunidade cristã, o Espírito (com os mesmos sinais do monte Sinai, fogo e vento) capacita para anunciar a “nova lei de Cristo” (o amor; cf. 6,2), a “nova aliança” para todos os povos e línguas (1Cor 11,25; cf. Jr 31; Gn 11).

Evangelho: – Lc 9,51-62

Jesus tomou a firme decisão de partir para Jerusalém.
„Eu te seguirei para onde quer que fores“.
+ Proclamação do Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas 9,51-62 51Estava chegando o tempo de Jesus ser levado para o céu. Então ele tomou a firme decisão de partir para Jerusalém 52e enviou mensageiros à sua frente. Estes puseram-se a caminho e entraram num povoado de samaritanos, para preparar hospedagem para Jesus. 53Mas os samaritanos não o receberam, pois Jesus dava a impressão de que ia a Jerusalém. 54Vendo isso, os discípulos Tiago e João disseram: „Senhor, queres que mandemos descer fogo do céu para destruí-los?“ 55Jesus, porém, voltou-se e repreendeu-os. 56E partiram para outro povoado. 57Enquanto estavam caminhando, alguém na estrada disse a Jesus: „Eu te seguirei para onde quer que fores.“ 58Jesus lhe respondeu: „As raposas têm tocas e os pássaros têm ninhos; mas o Filho do Homem não tem onde repousar a cabeça.“ 59Jesus disse a outro: „Segue-me.“ Este respondeu: „Deixa-me primeiro ir enterrar meu pai.“ 60Jesus respondeu: „Deixa que os mortos enterrem os seus mortos; mas tu, vai anunciar o Reino de Deus.“ 61Um outro ainda lhe disse: „Eu te seguirei, Senhor, mas deixa-me primeiro despedir-me dos meus familiares.“ 62Jesus, porém, respondeu-lhe: “Quem põe a mão no arado e olha para trás, não está apto para o Reino de Deus.“

Evangelho: Lc 9,51-56

Nos últimos capítulos Lc seguiu o roteiro de Mc, mas a partir do evangelho de hoje, de 9,51 até 18,14, Lc se afasta de Mc. Ele apresenta, no quadro literário fornecido por Mc 10,1, uma subida a Jerusalém (9,53.57; 10,1; 13,22.33; 17,11; cf. 2,38). Neste caminho a Jerusalém (em nove capítulos!), ouvimos ensinamentos aos discípulos, parábolas, milagres e controvérsias. A viagem é balizada por referências sem muita preocupação com a geografia (9,52; 17,11; 18,35; 19,1.28). Lc apresenta aí materiais que hauriu de uma coleção igualmente utilizada por Mt  (chamada de fonte Q) e de outras tradições que lhe são próprias. Enquanto Mt desmembrou essa coleção para espalhar os fragmentos por todo o evangelho, Lc preferiu reproduzi-la em bloco, precisamente nesta seção 9,51-18,14, para a qual ele fornece a contribuição principal.

Estava chegando o tempo de Jesus ser levado para o céu. Então ele tomou a firme decisão de partir para Jerusalém… ( v. 51)

Neste versículo começa a parte central do evangelho de Lc, a subida de Jesus para Jerusalém (a capital está 800 m acima do nível do mar), é o mesmo caminho para a cruz e para o céu. O substantivo grego (analempsis) corresponde ao verbo de “arrebatamento” de Elias (2Rs 2,3.5, solicitado em 1Rs 19,4). O significado é tomar, levar (em latim assumire); logicamente se aquele que toma está no alto, no céu, tomar é levantar (cf. 2Rs 2,11; Eclo 48,9). A “assunção” ou o “arrebatamento” de Jesus (cf. 2Rs 2,9-11; Mc 16,19; At 1,2.10-11; 1Tm 3,16) compreende os últimos dias de seu destino de sofrimento e os primeiros dias de seu destino glorioso (paixão, morte, ressurreição e ascensão; cf. o significado do “êxodo” em 9,31). Jo empregará para o mesmo conjunto o termo mais teológico, “glorificar” (Jo 7,39; 12,16.23; 13,31s); a crucifixão será para ele uma “elevação” (Jo 3,14; 12,32).

Jesus já sabe o que enfrentará na capital (cf. v. 22.44), o inicio desta viagem é um ato consciente e decidido, lit. “endureceu a sua face para tomar…”. Jesus não apresenta moleza, é decidido como o servo sofredor de Deutero-Isaías: “por isso não me acovardava, por isso endureci o rosto como pedra” (Is 50,7), como a dureza de Jeremias: “coluna de ferro, muralha de bronze” (Jr 1,18), como Ezequiel: “parti decidido e inflamado” (Ez 2,6).

… e enviou mensageiros à sua frente. Estes puseram-se a caminho, e entraram num povoado de samaritanos, para conseguir alojamento para Jesus. Mas, os samaritanos não o receberam, porque Jesus dava a impressão de quem se dirigia para Jerusalém (vv. 52-53).

A viagem começa solenemente, enviando à frente quem prepare o caminho e alojamento (como o Batista na primeira parte, e depois dois discípulos em 19,29p e Pedro e João em 22,8). Logo tropeça em resistência. Desta vez são os antigos rancores dos samaritanos contra os judeus, radicados na conquista do reino do norte pela Assíria (2Rs 17,24-41), rancores esses manifestados no tempo de Esdras. Os samaritanos tinham a lei de Moisés (Torá, ou Pentateuco, os primeiros cinco livros da Bíblia), mas seu templo estava no monte Garizim, não reconheciam o de Jerusalém (cf. Jo 4,20).

Os samaritanos, sempre muito mal dispostos para com os judeus (cf. Jo 4,9), deviam mostrar-se particularmente hostis para com os peregrinos que se dirigiam a Jerusalém. Os judeus evitavam as relações com os samaritanos, a quem odiavam por causa de suas origens bastardas e divergências religiosas (Eclo 50,25-26; Jo 4,9). Assim evitava-se geralmente a travessia de seu território (cf. Mt 10,5). Lc e Jo ( 4,1-42) são os únicos a mencionar a passagem de Jesus pelo território cismático (cf. 17,11.16). Logo em seguida, a Igreja primitiva imitará o Mestre. Jesus rompe com essas querelas (cf. 10,33-37; 17,16-19). Lc deve ver nisto um prelúdio à missão de Filipe em Samaria (At 8,5-25).

Vendo isso, os discípulos Tiago e João disseram: «Senhor, queres que mandemos descer fogo do céu para acabar com eles?» Jesus, porém, voltou-se e os repreendeu. E partiram para outro povoado. (vv. 54-55).

Tiago e João se mostram verdadeiros “filhos do trovão” (Mc 3,17) que querem aplicar o mesmo castigo que Elias infligia a seus adversários (cf. 2Rs 1,10-12). Numerosos manuscritos acrescentam “como fez Elias” e à resposta de Jesus: “não sabeis de que espírito sois. Pois o Filho do homem não veio para perder a vida dos homens, mas para salvá-la” (cf. 19,10). Por enquanto, nem os samaritanos entendem que Jesus vai a Jerusalém para salvá-los (cf. Jo 4). E os discípulos não imaginam que a Samaria será um dos primeiros lugares que eles evangelizarão ao saírem de Jerusalém (At 1,8; 8,1-25). Mais uma vez, Jesus mostra tolerância à divergência religiosa (cf. vv. 49s; evangelho de ontem) e não quer usar de violência nem quando é insultado (cf. 6,27-35; 23,34). Jesus é coerente à sua mensagem; na história, a Igreja nem sempre foi (inquisição, fogueira etc.).

Evangelho: Lc 9,57-62

De 9,51 a 18,13, Lc se afasta do roteiro de Mc e junta material da fonte Q e material próprio numa viagem de Jesus a Jerusalém que se estende por quase dez capítulos e pode ser considerada a peça central do terceiro evangelho.

O evangelho de hoje tem seu paralelo em Mt 8,19-22, é da fonte Q (comum com Mt), mas Lc acrescentou a terceira cena. A Bíblia do Peregrino (p.2489) comenta o evangelho de hoje: Três cenas de seguimento ilustra o começo da marcha de Jesus. São personagens anônimas, típicas. A primeira e a terceira tomam a iniciativa sem serem chamadas, a segunda é Jesus quem a chama. Nos três casos, é decisiva a prontidão, o desprendimento de outros vínculos, a disposição de enfrentar o desconforto. Tudo isso dominado pelo desejo de seguir em companhia do Senhor.

Não se deve iludir, pois o seguimento de Jesus é exigente. As respostas de Jesus são radicais. Ao primeiro, Jesus enfrenta com a dificuldade de não ter lar; ao segundo, Jesus não lhe permite distrair-se. Ao terceiro recomenda a mesma atitude firme de seguir em frente que caracteriza o início da subida a Jerusalém (9,51).

Enquanto estavam caminhando, alguém na estrada disse a Jesus: “Eu te seguirei para onde quer que fores.” Jesus lhe respondeu: “As raposas têm tocas e os pássaros têm ninhos; mas o Filho do Homem não tem onde repousar a cabeça” (vv. 57-58).

Os rabinos (mestres judaicos) costumavam acolher discípulos em suas casas que funcionavam como escolas. Mas Jesus é pregador itinerante (4,43p). Diversamente de Mc e Mt, Lc nunca mostrou Jesus em casa que seja própria dele ou de seu grupo (cf. 5,29p). Jesus se aparece com o patriarca Jacó na paisagem pedregosa de Betel: “pegou uma pedra do lugar, colocou-a como travesseiro e deitou-se naquele lugar” (Gn 28,11). Pr 27,8 compara o “vagabundo longe do lar” com o “pássaro que fugiu do ninho”. O salmo da criação canta, entre outras coisas, as habitações de aves e animais (Sl 104,12.17s, sobre as raposas cf. Sl 63,11; Ez 13,4). No decorrer da viagem, Ben Sirac considera desonroso e desgraçado viver de esmola (Eclo 40,28-30).

Seguir Jesus é caminhar sem pátria nem lar. Jesus fala sobre os pássaros e os lírios que o Pai celeste alimenta e veste (12,22-31; cf. Mt 6,25-34). Assim deve ser a pobreza quotidiana do pregador itinerante, do discípulo missionário cuja primeira preocupação não é alimento nem vestimenta, mas “o reino de Deus e essas coisas vos serão acrescentadas” (12,31).

Nem um lar o Filho do homem tem! O termo “Filho do homem” pode significar simplesmente “ser humano” (em hebraico: “filho de Adão”; cf. Sl 8,5; Ez 2,1 etc.), assim Jesus queria dizer: “Até os animais tem tocas e ninhos, mas eu, como ser humano, não tenho residência fixa.” Mais provável, porém, é o significado apocalíptico que vem de Dn 7,13s, onde um ancião (Deus) entrega o reino de Deus a um “Filho do Homem que vem nas nuvens” e “cujo reino não terá fim” (citado no anúncio a Maria, cf. Lc 1,32s); ele contrasta com as bestas-feras dos reinos pagãos. Em Dn 7,29, o Filho do Homem é identificado com o “povo dos santos”. Em alguns círculos judaicos (ex. o autor do Apocalipse de Henoc), este Filho do Homem foi identificado como indivíduo: o Messias que virá e julgará o mundo no final dos tempos (cf. Mc 2,28p; 8,38p; 9,9p; 13,25p; 14,62p; Lc 11,30p; 12,8.40p; 17,22-30p; 18,8; 19,10; 21,27p.36; Mt 13,41; 25,31).

Jesus não podia ser preso ao utilizar este título “filho do homem”, pela ambiguidade do significado, e aplicou-o a si mesmo com predileção, não só para indicar sua futura glória celeste, mas também para expressar sua humilhação humana (cf. anúncios da paixão: 9,22.44; 18,31p; 22,22p; 24,7; cf. Jo 3,14).

No evangelho de hoje, o discípulo não vai entender seu pleno significado (antes da Páscoa), mas para o leitor cristão de Lc (depois da Páscoa) se esclarece: O Filho do Homem, aquele que ressuscitou e voltará para julgar o mundo, tinha que viver na pobreza absoluta e sem lar. Aquele que “vem das nuvens” (21,27p; cf. 22,69p), quem é do céu, aqui na terra não tem lar. Já seu nascimento se deu no caminho, fora de casa no meio de animais, “não havia lugar na hospedaria” (Lc 2,7). O Filho de Deus se fez verdadeiro homem (Filho do homem na carne humana; cf. Jo 1,1.14; Fl 2,5-8) e mostra através da sua pobreza que seu “reino não é deste mundo” (cf. Jo 18,36).

Não se deve interpretar mal o texto e trocar a exigência da pobreza (cf. 14,33; 18,22p) pelo trabalho sem descanso (cf. Jo 5,17). Jesus viveu pobre, não estressado.

Jesus disse a outro: “Segue-me.” Este respondeu: “Deixa-me primeiro ir enterrar meu pai.” Jesus respondeu: “Deixa que os mortos enterrem os seus mortos; mas tu, vai anunciar o Reino de Deus” (vv. 59-60).

Em Mt 8,21s, é o discípulo quem se apresenta. Em Lc, é Jesus quem toma a iniciativa de chamá-lo, como em 5,27 e Mc 1,17p; ele o envia para anunciar o reino de Deus.

O homem chamado queria “primeiro ir enterrar meu pai” e assim cumprir um dos deveres mais sagrados do judaísmo e do helenismo como se lê nos relatos patriarcais (cf. Gn 23, a única terra que o nômade Abraão adquiriu foi para enterrar sua esposa) e no livro de Tobias (Tb 2,3-8; 4,3-4; 14,10-13).

A resposta de Jesus numa forma paradoxal é chocante, como um provérbio paradoxal joga com o duplo sentido (físico e espiritual) da palavra “morto”. Quem só conta com esta vida (como os saduceus, cf. 20,27; At 23,8), recebe ao final honras fúnebres, mas Jesus vem trazer uma vida nova (cf. 5,36-39p). O que acabou, acabou (cf. Hb 8,13; Ap 21,1.5).

Jesus se posiciona em favor do mandamento “honrar pai e mãe” (18,20p; cf. Mc 7,10-13p), mas aqui fala da ruptura com a própria família, ruptura que ele mesmo realizou (8,19-21p; 11,27p) e exige dos seus seguidores (14,26). A comunidade a experimentou também após a páscoa (18,29-30p). Mas esta atitude radical combina com o amor e a piedade? Mais uma vez se trata de manifestar o contraste entre este mundo e o reino de Deus. Quem segue a Jesus, deve ser sinal do reino com suas palavras e seu estilo de vida (20,34-36; cf. Jr 16,1-9;).

Os que confiam seu horizonte a esta vida mortal que se ocupem de enterrar; eles por sua vez serão enterrados. Jesus chama a uma vida nova, ele é “a ressurreição e a vida” (Jo 11,25). Se o discípulo voltar atrás para se despedir da sua família (como Elias permitiu, cf. 1Rs 19,19-21; Lc 9,61s) e participar do luto familiar, perderá a chance de acompanhar Jesus a Jerusalém e testemunhar sua morte e a ressurreição. Se o discípulo seguir sem olhar atrás agora, poderá consolar sua família (e muitos outros) depois com a mensagem da ressurreição e da vitória de Jesus sobre a morte, ou seja, “anunciar o reino de Deus” (acréscimo próprio de Lc, cf. Mt 8,22). Os mortos estão com Ele, com Ele viverão (cf. 20,38p).

Um outro ainda lhe disse: “Eu te seguirei, Senhor, mas deixa-me primeiro despedir-me dos meus familiares.” Jesus, porém, respondeu-lhe: “Quem põe a mão no arado e olha para trás, não está apto para o Reino de Deus” (vv. 61-62).

Os dois primeiros diálogos se encontram também em Mt; este terceiro é próprio de Lc. Este dá aos três um sentido particular, colocando-os na perspectiva da partida de Jesus, exatamente antes do envio dos setenta e dois discípulos (10,1-16). O candidato ao discipulado o chama de “Senhor”, uma expressão de fé comum em Lc (cf. 5,8.12; 7,6 etc.; cf. At 2,36; Fl 2,11).

Estes dois versículos evocam o chamamento de Eliseu (enquanto arava) por Elias (1Rs 19,19-21); Lc já aludiu a Elias nos vv. anteriores (9,54; cf. a ressurreição do filho da viúva em 7,1-11-17 com 1Rs 17,17-24). Mas Jesus é mais importante e mais exigente que Elias, que deixava o seu discípulo despedir-se dos seus. Quem ara, segura com a mão a rabiça, olha para frente para traçar um sulco reto. Olhar para trás foi a fatalidade da mulher de Ló (Gn 19,26).

“Não está apto para o Reino de Deus”, para entrar nele (cf. 18,24-25p) ou para anunciar o “Reino de Deus” como no v. 60 (cf. 4,43; 8,1; 9,2.11; 16,6).

O site da CNBB comenta: Seguir Jesus significa muito mais do que ser um repetidor doutrinário, significa ser capaz de assumir o seu Projeto como algo próprio, ser capaz de olhar para o futuro e visualizar o Reino de Deus, fundamentar a própria existência nesse Reino, fazer da esperança da sua realização o motor propulsor da própria vida e entregar-se de corpo e alma, com tudo o que se é e que se tem na luta em prol da plena realização desse Projeto, renunciando a todas as conquistas humanas obtidas e a todas as formas de segurança que este mundo pode oferecer. É ser totalmente livre de todos os apegos deste mundo para amar a Deus de forma total e exclusiva e fazer desse amor a grande motivação da construção do Reino e a causa da própria felicidade.

 

 

 

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