26 de junho de 2018, terça-feira: Entrai pela porta estreita, porque larga é a porta e espaçoso é o caminho que leva à perdição, e muitos são os que entram por ele! Como é estreita a porta e apertado o caminho que leva à vida! E são poucos os que o encontram!

Leitura: 2Rs 19,9b-11.14-21.31-35a.36

Depois da destruição do reino do Norte (chamado Israel com a capital Samaria, cf. 2Rs 17) pelos assírios, continua resistindo só o pequeno reino do Sul (Judá com a capital Jerusalém). Toda narração de 2Rs 18,13-20,19 se encontra também em Is 36-39, como anexo ao Proto (Primeiro)-Isaías que viveu também durante o governo do rei Ezequias (716-687 a.C.). Um resumo da nossa leitura está em 2Cr 17-21.

A Bíblia do Peregrino (p. 702) comenta: Insiste-se na cena histórica, com brevíssimo oráculo de Isaías; aqui a narrativa se encolhe, deixando espaço à súplica do rei e ao oráculo do profeta. O povo (18,26.36) não entra em cena. As palavras “confiar” e “livrar” soam outra vez, sem serem desenvolvidas.

Senaquerib, rei da Assíria, enviou de novo mensageiros a Ezequias para dizer-lhe: ”Não te seduza o teu Deus, em quem confias, pensando: Jerusalém não será entregue nas mãos do rei dos assírios. Porque tu mesmo tens ouvido o que os reis da Assíria fizeram a todas as nações e como as devastaram. Só tu te vais salvar?” (vv. 9a-11).

Senaquerib já havia mandado uma primeira embaixada (18,17-37), esta segunda pode ser mais urgente. “Não te seduza o teu Deus” (cf. Jr 20,7; 1Rs 22,20-23).

Ezequias tomou a carta da mão dos mensageiros e leu-a. Depois subiu ao templo do Senhor, estendeu a carta diante do Senhor e, na presença do Senhor, fez a seguinte oração: “Senhor, Deus de Israel, que estás sentado sobre os querubins! Tu és o único Deus de todos os reinos da terra. Tu fizeste o céu e a terra. Inclina o teu ouvido, Senhor e ouve. Abre, Senhor, os teus olhos e vê. Ouve todas as palavras de Senaquerib, que mandou emissários para insultar o Deus vivo. É verdade, Senhor, que os reis da Assíria devastaram as nações e seus territórios; lançaram os seus deuses ao fogo, porque não eram deuses, mas obras das mãos dos homens, de madeira e pedra, por isso os puderam destruir. Mas agora, Senhor, nosso Deus, livra-nos de suas mãos, para que todos os reinos da terra saibam que só tu, Senhor, és Deus” (vv. 14-19). 

A Bíblia do Peregrino (p. 702) comenta: A súplica abrevia o esquema clássico. A visão universal abre e encerra a oração. É muito oportuna essa largueza de horizonte no momento em que os fatos e as palavras do inimigo impõe uma visão “universal” da história. No cenário do mundo, um imperador mostrou a importância desse imperador. Será o ato culminante do drama, inesperado e surpreendente. Como um ato sacramental ao vivo: Jerusalém, cenário para o mundo; todos os povos o público.

O gesto de “estender a carta diante do Senhor” no templo significa manifestar ao Senhor os ultrajes.  A súplica, contra a ataque verbal de 18,33-35 e 19,10-13, é uma profissão de fé no deus nacional de Israel, “único Deus de todos os reinos da terra. Tu fizeste o céu e a terra”. “Estás sentado sobre os querubins” ou seja, entronizado como soberano. Refere-se à arca da aliança, antigo símbolo da guerra de Javé e colocada no lugar santíssimo do templo (cf. Ex 25,18; ainda 1Sm 4,4; 2Sm 6,2).

Na dedicação do templo, Salomão suplicou em 1Rs 8,60, com a mesma preocupação de ver “todas os reinos da terra” se aliarem ao Deus único que tem exclusivamente o poder de salvar.

A diferença é que Sanquerib se mete com o Javé, Deus de Israel que é o único deus enquanto os outros deuses são ídolos, descritos no estilo do Dt e dos profetas: “obras das mãos dos homens” cf. Dt 4,28; 31,29; Os 14,4; Is 2,8 e, principalmente, Jr 1,16; 2,28; 44,8 etc.; deuses “de madeira e de pedra”, cf. Dt 4,28; 28,36.64; Jr 2,27; 3,9; Ez 20,32 etc.; cf, Dt 32,17

Então Isaías, filho de Amós, mandou dizer a Ezequias: “Assim fala o Senhor, Deus de Israel: Ouvi a prece que me dirigiste a respeito de Senaquerib, rei da Assíria. Eis o que o Senhor disse dele: ‘A virgem filha de Sião despreza-te e zomba de ti. A filha de Jerusalém meneia a cabeça nas tuas costas’ (vv. 20-21).

A Bíblia do Peregrino (p. 702) comenta: Um oráculo sacerdotal ou profético costuma responder à súplica do povo ou do rei. Isaias desempenha aqui essa função. O oráculo é dirigido contra Sanaquerib, no estilo dos oráculos contra as nações.

Este poema foi retocado por um discípulo do profeta Isaías. Dos três oráculos aqui recolhidos, só o terceiro (vv. 32-34) refere-se diretamente à libertação de 701 a.C.

“A virgem filha de Sião despreza-te”; a cidade de Jerusalém, construída sobre o morro de Sião, é como um donzela assediada, mas não submetida à vassalagem do senhor estrangeiro, e pode caçoar do conquistador de povos, porque Sanquerib não ataca uma cidade qualquer, desta vez é contra o “Santo de Israel” (v. 22; cf. Is 1,4; 5,19.24; 6,3 etc.).

“Meneia a cabeça nas tuas costas”, aqui em sinal de zombaria (cf. Sl 22,8; Jó 16,4; Lm 2,15; Mc 15,29p); em outros contextos, é sinal de horrível espant (cf. Sl 64,9; 109,25).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 817) comenta: “A virgem filha de Sião”, cf. Lm 2,15 (a filha de Sião, cf. Is 1,8; 10,32, etc.; Jr 4,31; Mq 1,13; 4,8; Sf 3,14) e a “filha de Jerusalém” (cf. Mq 4,8; Sf 3,14; Zc 9,9; Lm 2,13.15 etc.) são personificações poéticas de Sião-Jerusalém. Note-se que semelhantes expressões são utilizadas para designar cidades estrangeiras tais como a Babilônia, Sídon, Dibom, e ainda para indicar povos, como Edom ou Judá (cf. Lm 4,3 “a filha de meu povo”).

Pois um resto sairá de Jerusalém, e sobreviventes, do monte Sião. Eis o que fará o zelo do Senhor Todo-poderoso (v. 31).

O oráculo de salvação para o rei e seu povo (vv. 29-31; aqui só o v. final) liga-se com o oráculo precedente, ou com o primeiro dos vv. 6-7 (omitidos na nossa liturgia).

É anúncio de paz através do sofrimento; de restauração, depois de diminuir a população (cf. o tema do pequeno “resto” e dos “sobreviventes” em Is 4,2-4; 6,13; 10,21-22, etc.). A terra continuará seu ritmo fecundo, e o povo igualmente, como árvore frutífera (vv. 29s). Jerusalém, último reduto da resistência, será novo começo de vitalidade, devido ao amor apaixonado do Senhor, ao “zelo do Senhor Todo-poderoso (lit. Javé dos exércitos)” (Is 9,6).

A Bíblia do Peregrino (p. 702) comenta: Estes versículos, originais de Isaias, plantam um sistema de símbolos que crescerão e de desenvolverão na teologia da esperança escatológica. Mais tarde, também eles poderão ser lidos como expressão dessa esperança.

Por isso, assim diz o Senhor acerca do rei da Assíria: Ele não entrará nesta cidade, nem lançará nenhuma flecha contra ela, nem a assaltará com escudo, nem a cercará com trincheira alguma. Pelo caminho, por onde veio, há de voltar, e não entrará nesta cidade, diz o Senhor. Protegerei esta cidade e a salvarei em atenção a mim mesmo e ao meu servo Davi” (vv. 32-34). 

Sanqueribnão conserguirá o que se costuma fazer na ocasião de um cerco: os sitiantes arremessavam sua flechas abrigando-se atrás de escudos fixos: sob a proteção de suas flechas erguiam plataformas (cf. Jr 6,6; Ez 4,2 e 26,8), graças às quais podiam alcançar o topo da muralha.

34 o) Jerusalém é a cidade onde reside o Senhor (cf. Is 60,14; Sl 46,5; 48,9; 87,3; 101,8) e a cidade de Davi (cf. 1Sm 5,7.9.6.10). A esse duplo título, a cidade deve sua salvação; a era na sua sobrevivência que se baseava a esperança do pequeno resto.

A Bíblia do Peregrino (p. 703) comenta: Terceiro oráculo. O assédio não se coroará com o assalto final e a conquista; nesse sentido, a campanha de Sanaquerib foi um fracasso, embora o imperador tenha cobrado um forte tributo. Jerusalém é a cidade de Davi, a cidade da presença de Deus no templo; ele será seu escudo e salvação. Ver Sl 18,3.31; 33,20; 84,12; 89,19.

Naquela mesma noite, saiu o Anjo do Senhor e exterminou no acampamento assírio cento e oitenta e cinco mil homens. Senaquerib, rei da Assíria, levantou acampamento e partiu. Voltou para Nínive e aí permaneceu (vv. 35a.36). 

Este epílogo narrativo apresenta a libertação de Jerusalém como cumprimento dos oráculos precedentes (no v. 37 ainda sobre a morte de Sanquerib, assasssinado pelos próprios filhos em 681).

Segundo o históriador grego Heródoto, o exército assírio teria sido invadido por ratos, o que teria provocado uma epidemia no acampamento. Pode ter-se tratado de uma peste violenta que dizimou o exército e forçou a retirada.  (cf. Is 17,14; Sr 48,21). As duas versões (epidemia ou castigo de Deus) não se excluem; depende de que lado se olha à história.

Aqui o fato é contado recordando “naquela noite” quando os primogênitos do Egito foram abatidos pelo exterminador (Ex 12,12s.23). Quanto ao anjo exterminador, cf. Gn 19,13; Ex 12,23 e 2Sm 24,16 (peste). Nossa liturgia omite o v. 35b, em que o amanhecer descobre os cadáveres, como na travessia do mar Vermelho (Ex 14,24).

 

Evangelho: Mt 7,6.12-14

O último capítulo no sermão da montanha está composto de sentenças menores (Mt 7). Depois da advertência de não julgar (7,1-5), uma frase que parece fora do contexto:

Não deis aos cães as coisas santas, nem atireis vossas pérolas aos porcos; para que eles não as pisem com os pés e, voltando-se contra vós, vos despedacem (v. 6).

O estilo é sapiencial (cf. Pr 11,22: “Um anel de ouro no focinho de um porco é a mulher formosa sem bom senso”); é uma advertência à prudência (cf. 10,16; Pr 9,7).

Na Palestina, cães e porcos eram animais desprezíveis ou impuros. Para comer das oferendas e sacrifícios do culto, a pessoa deve estar pura. “Coisas santas” são as porções de carne consagrada, alimentos santificados por terem sidos oferecidos no templo (cf. Ex 22,30; Lv 22,14). Do mesmo modo não se deve propor uma doutrina preciosa e santa a pessoas incapazes de recebê-la bem e que poderiam fazer mau uso dela.

O texto não especifica de que tipo de pessoas se trata: seriam judeus hostis (cf. Fl 3,2) ou os pagãos (cf. 8,28-34p; 15,26p)? A respeito de heresias, 2Pd 2,22 cita Pr 26,11: “Como o cão que torna a seu vômito, é o insensato que repete sua estultícia”, e continua: “A porca lavada tornou a revolver-se na lama”.

Os tesouros cristãos (cf. 13,44-46) necessitam de devida discrição e cuidado (cf. na liturgia ortodoxa antes de distribuir a comunhão, o sacerdote diz: “o santo aos santos”). Profana-se o santo e os indignos não se beneficiam. Ben Sirac diz que “ensinar um néscio é catar cacos” (Eclo 22,9a). Esta sentença pode significar no contexto, que é desperdício e perigo anunciar o Reino de Deus aos que não estão preocupados com ele. Se ligada à sentença sobre os dois senhores (Mt 6,24), poderia significar que é inútil e até perigoso anunciar os princípios evangélicos àqueles, cujo deus são as riquezas. O coração deles está em outro lugar; fizeram outra opção fundamental.

Tudo quanto quereis que os outros vos façam, fazei também a eles. Nisto consiste a Lei e os Profetas (v. 12).

Saltando uma recomendação sobre a oração (vv. 7-11; cf. Quaresma, 1ª semana, 5ª feira), o evangelho de hoje apresenta a chamada “Regra de Ouro”: “Tudo quanto quereis que os outros vos façam, fazei também a eles” (v. 12a). No contexto da fonte original Q (perdida na história) que Mt e Lc usavam, esta regra estava ligada ao amor aos inimigos (cf. Lc 6,31). Mt deslocou-a para fazer um parêntese com 5,17 incluindo todo conteúdo principal do sermão, assim pôde demonstrar como Jesus cumpre “a lei e os profetas” (significa todo o Antigo Testamento) plenamente.

A Regra de Ouro é universal e existe em várias formas nas muitas filosofias e religiões, por ex. no imperativo categórico de Imanuel Kant: “Aja sempre da maneira que tua conduta possa ser uma lei geral para todos”, ou o mestre chinês Confúcio: “Uma palavra resume a boa conduta: Não fazer aos outros aquilo que tu mesmo não gostarias que fosse feito a ti”, ou em Eclo 31,15 (grego): “Julgo por ti mesmo o que o outro (próximo) sente e comporta-te sempre com reflexão”. Sua aplicação abrange desde o cotidiano até o heróico.

Já o rabbino Hillel viu nela um resumo da lei de Moisés. Na forma negativa (Tb 4,15: “Não faças a ninguém o que não queres que te façam”), a regra é mais comum. É um resumo da ética, uma lógica natural (“lei natural”). Não precisa de uma revelação divina para entendê-la, basta seguir a consciência. A forma positiva que Jesus apresenta é mais exigente e desafia a criatividade: não se trata apenas de não prejudicar o outro (cf. o Decálogo em Ex 20; Dt 5), mas é pensar como eu posso fazer bem aos outros. S. Tomás de Aquino definiu: “Amar é fazer o bem ao outro”.

Da Regra de Ouro “depende a lei e os profetas” (v. 12b), ou seja, a ética de todo Antigo Testamento (AT). Perguntado sobre o maior mandamento, Jesus não citou a Regra de Ouro, porque ela não está escrita como tal no AT, mas citou Dt 6,5 (“amarás teu Deus…”) e Lv 19,18: (“Amarás ao próximo como a si mesmo”, cf. Mt 22,34-40; Gl 5,14; Rm 13,8-10). A Regra de Ouro, na sua forma positiva, é amar o próximo como si mesmo, em outras palavras (cf. Tg 2,8). Assim Jesus interpreta e cumpre toda lei e os profetas (5,17).

Depois deste grande parêntese entre 5,17 e 7,12, Mt finaliza o sermão de Jesus na montanha com três exortações, cuja primeira ouvimos hoje:

Entrai pela porta estreita, porque larga é a porta e espaçoso é o caminho que leva à perdição, e muitos são os que entram por ele! Como é estreita a porta e apertado o caminho que leva à vida! E são poucos os que o encontram! (vv. 12-14).

A doutrina dos dois caminhos, o do bem e do mal, entre os quais os homens devem escolher, é um tema antigo e comum no judaísmo (cf. Dt 30,15-20; Sl 1; Pr 4,10-19; 12,28; 15,24; Eclo 15,17; 33,14). É novo o critério de largueza e estreiteza (cf. o. caminho largo de Sl 119,45; 18,37).

Tanto a opção fundamental pelo Reino e sua justiça (“entrar pela porta”), como continuar nessa busca fundamental (“caminho”), não são fáceis. A escolha verdadeira nunca será feita pelos indecisos e acomodados. Estes ficam relutando, ou escolhem a estrada mais larga proposta pelos ídolos. No entanto, a renúncia ao comodismo da maioria produz progresso e paz. O bem da paz nasce de um sacrifício. O próprio Jesus se oferece como caminho e como porta (Jo 14,6; 10,7.9) e como sacrifício (cordeiro: Jo 1,29.36) universal.

O site da CNBB comenta: Hoje em dia, fala-se muito da questão da inculturação. É inculturação do anúncio, da liturgia e assim por diante. De fato, a inculturação é necessária para que todos possam viver os valores do Reino de Deus. Mas o Evangelho de hoje nos faz uma grave advertência: não atireis vossas pérolas aos porcos. É claro que devemos valorizar todas as formas e expressões de uma cultura e reconhecer os grandes valores que estão presentes na cultura e que expressam os valores evangélicos, mas inculturar o Evangelho não significa submetê-lo aos valores culturais, pois a cultura tende a ver o Evangelho de uma forma ideológica e a usar as suas palavras sem os critérios do Reino, pisando nelas e voltando-se contra nós.

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