26 de maio de 2016 – Corpus Christi – Ano C – 5° Feira

1ª leitura: Gn 14,18-20

Neste capítulo de Gn 14, Abraão (ainda é chamado de “Abrão” até 17, 5) e seus 318 familiares e aliados recuperaram Lo, seu sobrinho sequestrado, junto com todos os seus bens.  Depois desta campanha vitoriosa, aparece uma pessoa misteriosa, cujo gesto inspirou os teólogos cristãos a ver nele uma antecipação do sumo sacerdócio de Cristo e da Eucaristia (cf. Hb 5,6.10; 6,19-7,25; cf. Sl 110,4).

Melquisedec, rei de Salém, trouxe pão e vinho e como sacerdote do Deus Altíssimo, abençoou Abrão, dizendo: “Bendito seja Abrão pelo Deus Altíssimo, criador do céu e da terra! Bendito seja o Deus Altíssimo, que entregou teus inimigos em tuas mãos!” E Abrão entregou-lhe o dízimo de tudo (vv. 18-20).

 Salém alude a paz (shalom), e seguindo o Sl 76,3, a tradição judaica e muitos padres identificaram Salém com Jerusalém, outros com a velha Urusalimu. “Melquisedec” (melec significa rei, zadoc significa justo (cf. o nome cananeu de “Adonisedec, rei de Jerusalém” em Js 10,1).

No Oriente Antigo, os reis assumiram também funções sacerdotais. Melquisedec adorava o “Deus Altíssimo”, que traduz o hebraico El Elyon, um nome composto, cujos elementos são atestados como duas divindades distintas entre os deuses da Fenícia (atual Líbano). Elyon é empregado na Bíblia (principalmente nos Sl) como título divino. Em v. 22, El Elyon é identificado com Yhwh (Javé), o verdadeiro Deus, o de Abraão (cf. Nm 24,16; Sl 46,5; 47,3).

Melquisedec, que aparece breve e misteriosamente na narração sagrada como rei de Jerusalém (lugar que Javé escolhe posteriormente para nele morar seu nome, cf. Dt 12) e como sacerdote do Altíssimo antes da instituição do sacerdócio de Aarão e dos levitas (Ex 28-29; 40,12-15; Lv 8-10; Nm 4), é apresentado pelo Sl 110,4 como figura de Davi, que é por sua vez figura do messias, rei e sacerdote. A carta aos hebreus aplica-o ao sacerdócio de Cristo em Hb 6,19-7,25.

 A tradição patrística explorou e enriqueceu esta exegese alegórica, vendo no pão e no vinho trazidos para Abraão uma figura do sacrifício eucarístico, interpretação esta acolhida no cânon da missa (Oração Eucarística I). Muitos padres admitiram até mesmo que em Melquisedec apareceu o Filho de Deus em pessoa. Aqui os vv. 18-20 podem ser uma adição ao resto do capítulo. Melquisedec é imagem do sumo sacerdote depois do exílio, herdeiro das prerrogativas reais e chefe do sacerdócio, a quem os descendentes de Abraão entregam o “dízimo de tudo” (cf. 28,22; Nm 18,21s; Dt 12,6.18; 14,22; 26,11; 1Sm 8,15; Ml 3,8-12; Lc 11,42).

A Nova Bíblia Pastoral (p. 34) comenta: O gesto es refere a uma possível aliança de Davi com a dinastia sacerdotal na conquista de Jerusalém (2Sm 5,6-10), integrando o sacerdote Sadoc e o culto cananeu de Jerusalém (2Sm 20,25; 1Rs 2,35) na história da tribo de Judá/Mambré/Hebron… Correntes sacerdotais do judaísmo (Sl 110) e do cristianismo (Hb 5-7) apoiam-se nesta passagem, porém a nela apresentada está mais voltada para a legitimação do tributo e do poder político-religioso do que para promoção da vida.

Melquisedec surge para receber tributo de Abraão e pronunciar sobre ele a bênção. Invoca a bênção de seu Deus, supremo, criador, universal em favor de Abraão. E bendiz a Deus, dando-lhe graças pela vitória. Um dia, os israelitas terão assimilado grupos cananeus, conquistarão Jebus=Jerusalém, viverão sobre uma monarquia entronizada nesta capital; ai venerarão o Senhor (2Sm 5-6; 1Rs 8; 23; Dt 12). Essa novidade da história da salvação fica por meio do presente relato, incrustada na história patriarcal. Jerusalém é Templo, e o rei e os sacerdotes têm remotas e nobres raízes, nos diz o autor. Melquisedec desaparece da história como apareceu. Sua lembrança sobrevive na oração e na reflexão teológica.

 

2ª leitura: 1Cor 11,23-26

A 2ª leitura de hoje é a mesma da quinta-feira Santa. É o relato da Eucaristia mais antigo que temos por escrito.

O que eu recebi do Senhor foi isso que eu vos transmiti (v. 23a).

O apóstolo Paulo só conheceu Jesus ressuscitado, não andava e comia com ele como os outros apóstolos. “O que recebi do Senhor” se refere então à tradição dos apóstolos que introduziram Paulo no mistério eucarístico após sua conversão. Mas o mistério pascal, ou seja, que Jesus está vivo no céu e se faz presente de maneira misteriosa e sacramental, Paulo experimentou diretamente na sua conversão espetacular (At 9,5; 22,8; 26,15; Gl 1,11-24).

No entanto, escreveu um relato sobre a instituição da Eucaristia já antes dos evangelistas (Mc foi o primeiro deles por volta de 70 d.C.). Paulo passou em Corinto nos anos 50 a 52 d.C. e, provavelmente em 56, escreveu esta carta em Éfeso, dirigida “à Igreja de Deus que está em Corinto” (cf. 1,2).

Na noite em que foi entregue o Senhor Jesus tomou o pão e, depois de dar graças, partiu-o e disse: “Isto é o meu corpo que é dado por vós. Fazei isto em minha memória”. Do mesmo modo, depois da ceia, tomou também o cálice e disse: “Este cálice é a nova aliança, em meu sangue. Todas as vezes que dele beberdes, fazei isto em minha memória” (vv. 23b-25).

Paulo não narra toda história da paixão como os evangelistas, por isso resume no início: “Na noite em que foi entregue” (v. 23). Nos evangelhos, o verbo “entregar” é comumente empregado em sentido pejorativo (Mt 4,12; 5,25; 10,17.19), principalmente nos anúncios da paixão (Mc 9,31p; 10,33p; Mt 26,2; cf. Mc 14,10s.18.21p).

Como anfitrião ou pai para sua família, Jesus como mestre dos seus discípulos, “tomou o pão” e fez a oração de bênção (beraká) como os judeus costumam fazer antes de partir e distribuir o pão. A oração do padre sobre as ofertas (pronunciada geralmente em silêncio) e as Orações Eucarísticas são inspiradas neste “dar graças” (a palavra grega eucaristia significa “ação de graças). O nome mais antigo da Eucaristia era “partir o pão” (At 2,42; 20,7; 27,35s; cf. Lc 24,30s.35).

Jesus associa o pão com seu corpo, e o vinho com seu sangue. Se foi uma ceia pascal (nos evangelhos sinóticos sim, em Jo não), podemos relacioná-la ao costume judaico de celebrar e atualizar o êxodo (cf. Ex 12) com gestos simbólicos e didáticos:

Depois da destruição do templo em 70. d.C., os rabinos criaram a seder (ordem) da ceia pascal com diversos gestos simbólicos, por ex.: mergulha-se karpas (batata, ou outro vegetal) em água salgada, recita-se a benção e a karpas é comida em lembrança às lágrimas (água salgada) dos antepassados israelitas. Depois divide-se a matzá (pão ázimo) do meio em duas partes desiguais. São comidas as ervas amargas (raiz forte, escarola, endívia e a alface romana) relembrando a escravidão e o sofrimento amargo dos hebreus no Egito. Depois o chefe da casa fala: “Olhemos, pois, a matzá que está sobre a mesa. Este é pão da pobreza que comeram os nossos antepassados na terra do Egito. Quem tiver fome, e muitos são os que tem fome neste mundo em que vivemos, que venha e coma…”

Jesus anuncia mais uma vez, mas desta vez não só com palavras, mas com um gesto profético (simbólico, misterioso, sacramental), a sua morte que beneficiará os discípulos (“por vós”; Mc e Mt: “por muitos”, cf. Is 53,12; as palavras da missa “para todos” se inspiram, entre outros, em Jo 6,51: “para a vida do mundo”). Sua morte não é acidental, mas tem sentido: dará vida aos seres humanos, como um alimento que se desfaz ao ser consumido, como o cordeiro pascal cujo sangue colocado nas portas, salvou os israelitas no Egito (cf. Ex 12).

Se a última ceia foi uma ceia pascal, porque não se fala do cordeiro? Na mesma carta, Paulo já escreveu: “Pois nossa páscoa, Cristo, foi imolada” (5,7; cf. Ap 5,6.9). Na eucaristia cristã, o pão e o vinho substituem como elementos a carne do cordeiro da páscoa judaica.

O vinho tinto alude ao sangue. Assim Jesus anuncia indiretamente que sua morte será violenta (na cruz). Na ceia pascal, os judeus costumam passar quatro vezes o cálice. O cálice ao qual Jesus se refere é o cálice da paz (cf. Cl 1,20; Ef 2,13s). “Aliança” se faz para firmar a paz, e muitas vezes, a aliança é selada com uma refeição ou um sacrifício (cf. Gn 15; Ex 24,1-11).

Comparando os quatro relatos da instituição da Eucaristia (1Cor 11,23-25; Mc 14,22-26; Mt 26,26-29; Lc 22,19-20) consta-se o seguinte: Nas palavras de Jesus sobre as espécies de pão e vinho, há semelhanças e diferenças: Mt e Mc têm uma versão, Lc e Paulo outra. Daí se fala de duas versões: a tradição da Palestina (Mt e Mc) e a tradição helenista (da cultura grega: 1Cor 11,23-25 e Lc 22,19-20).

Paulo escreveu em 56 d.C. e o primeiro evangelista Mc só escreveu em 70 d.C.; Mt segue Mc cerca de 80 d.C.; Lc também escreve em 80 d.C., mas independentemente de Mt. Ambos, Mt e Lc, usam Mc como fonte e acrescentam mais conteúdo. Lc escreve os Atos dos Apóstolos em 85 d.C., conhecendo a vida e as viagens de Paulo.

Qual das duas versões é a mais original? É difícil dizer. Paulo diz que “que eu o recebi do Senhor”, isto é, não diretamente, mas através de uma tradição que remonta ao Senhor. Talvez Mc (e Mt, copiando Mc) transmita a palavra mais original sobre o pão, enquanto Paulo tenha a palavra mais autêntica sobre o cálice. As palavras de Paulo e Lc têm mais simetria: duas vezes “fazei isto em minha memória” (falta em Mc e Mt). É memória que atualiza o fato, é comemoração festiva (cf. Ex 12,14). O que Mc e Mt anotam sobre cálice “derramado por vós”, Paulo e Lc já expressam sobre o pão “dado por vós”; “por vós” significa o valor redentor da morte de Jesus (cf. Is 53; cf. Mt 26,28: “para remissão dos pecados”). Enquanto Mc e Mt lembram a antiga aliança do Sinai, “o sangue da aliança” (Ex 24,8; Zc 9,11), Paulo e Lc lembram também a profecia de Jr 31,31, a “nova aliança”.

Todas às vezes, de fato, que comerdes deste pão e beberdes deste cálice, estareis proclamando a morte do Senhor, até que ele venha (v. 26).

No final, Paulo sublinha a seriedade desta memória contra a banalização e profanação que os coríntios faziam através de divisões e falta de partilha (cf. v. 21: “enquanto um passa fome, outro fica embriagado”). Quem participa da eucaristia, deve ter consciência: “Todas às vezes, de fato, que comerdes deste pão e beberdes deste cálice, estareis proclamando a morte do Senhor, até que ele venha” (v. 26). O que é memória é também esperança, projetada para parusia (vinda, retorno do Senhor).Quer dizer, Cristo morreu por nós, mas está vivo e voltará, cf. a aclamação aramaica dos primeiros cristãos: Maranatá – “Senhor nosso, vem” ou: “Vem, Senhor” (16,22; Ap 22,20; cf. Rm 13,12; Fl 4,5; Tg 5,8; 1Pd 4,7).

 

Evangelho: Lc 9,11b-17

O evangelho nos apresenta a multiplicação dos pães narrada pelo evangelista do ano C, Lucas. Lc refere apenas uma multiplicação dos pães, como João, enquanto Mt e Mc narram duas. Lc omitiu, ou ignorou, toda seção de Mc 6,45-8,26, onde se encontra a segunda multiplicação. Mas pode ser também, que evite uma duplicata de Mc e Mt, nos quais as duas narrativas de multiplicação dos pães parecem provir de duas tradições paralelas de um mesmo evento, uma nascida no ambiente palestino (margem ocidental do lago, cf. Mc 6,30-44 par Mt 14,13-21) com “doze cestos” (como as doze tribos de Israel, cf. os doze apóstolos), a outra originária de um meio cristão derivado do paganismo (helenista; margem oriental do lago, cf. Mc 7,31; 8,1-10 par Mt 15,29-39) com “sete cestos” (como as sete nações pagãs de Canaã antes da conquista: Dt 7,1; At 13,19; cf. os sete diáconos em At 6)

Jesus acolheu as multidões, falava-lhes sobre o Reino de Deus e curava todos os que precisavam. A tarde vinha chegando (vv. 11b-12a).

Jesus é o anfitrião generoso e prodigioso (cf. Sl 23,5; 136,25; 145,15-16). No fundo temos de colocar a atuação de Moisés e de Eliseu (Ex 12; 2 Rs 4,42-44). No extremo oposto, a eucaristia (22,19). Os dois quadros emprestam traços e vocabulário ao milagre de Jesus. “A tarde vinha chegando” (cf. os discípulos de Emaús em 24,29).

Os doze apóstolos aproximaram-se de Jesus e disseram: “Despede a multidão, para que possa ir aos povoados e campos vizinhos procurar hospedagem e comida, pois estamos num lugar deserto.” Mas Jesus disse: “Dai-lhes vós mesmos de comer.” Eles responderam: ”Só temos cinco pães e dois peixes. A não ser que fôssemos comprar comida para toda essa gente” (vv. 12b-13).

O breve diálogo com os doze (vv. 12-13) serve para mostrar a impotência humana diante da emergência, para que assim ressalte o poder de Jesus. A solução dos discípulos é despedir o povo. Afastar-se de Jesus seria a solução? A de Jesus se mostra na ação. Não é com a lógica do mercado, mas com a colaboração e partilha dos discípulos (v. 37: “Dai-lhes vós mesmos de comer”) que Jesus sacia a multidão.

Estavam ali mais ou menos cinco mil homens. Mas Jesus disse aos discípulos: “Mandai o povo sentar-se em grupos de cinquenta.” Os discípulos assim fizeram, e todos se sentaram (vv. 14-15).

O povo há de “sentar-se” (literalmente “reclinar-se”, como comensais num banquete da época), enquanto escravos comiam em pé; mais uma alusão ao Êxodo, ou seja, à libertação da escravidão do Egito e à caminhada pelo deserto onde Deus alimentava o povo com o maná, chamado “pão do céu” (Ex 16; Sl 78,24; cf. Jo 6). Em “grupos de cinquenta”, como os israelitas no deserto (Ex 18,25); a massa do povo volta a ser um povo organizado como em outros tempos (Ex 18,21,25; Nm 31,14; Dt 1,15) e começa a ser o povo do novo reino, que celebra seu banquete comunitário. Com isso, Lc encerra solenemente uma etapa do mistério de Jesus na Galileia.

Então Jesus tomou os cinco pães e os dois peixes, elevou os olhos para o céu, abençoou-os, partiu-os e os deu aos discípulos para distribuí-los à multidão. Todos comeram e ficaram satisfeitos. E ainda foram recolhidos doze cestos dos pedaços que sobraram (vv. 16-17).

O olhar ao céu é de pedido de confiança (Sl 123,1). A bênção é dada sobre qualquer alimento, em especial o eucarístico (24,30; 1Cor 10,16). Abençoar é transmitir fecundidade: “Crescei e multiplicai-vos” (Gn 1,22.28; 9,1). O “partir” supõe pães grandes e dá nome ao termo mais antigo da eucaristia, a “fração do pão” (At 2,42; 20,7). O “servi/dar”, “comer” e “ficar satisfeito” e “sobrar” pode estar influenciados pela linguagem que narra um milagre semelhante do profeta Eliseu em 2Rs 4,42-44.

No início a eucaristia era celebrada dentro da refeição comum (cf. 1Cor 11,17-34). Mesmo depois da separação posterior fica para nós o incentivo não só de receber e adorar o corpo de Cristo sacramentado, mas de partilhar os bens e não desperdiçar os alimentos. Se todos dessem o que têm, ninguém passaria fome (cf. At 2,44-45; 4,32.34-35).

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