26 de Maio de 2021, Quarta-feira: Mas, entre vós, não deve ser assim: quem quiser ser grande, seja vosso servo; e quem quiser ser o primeiro, seja o escravo de todos.

8ª semana 4ª feira – Ano Ímpar

Leitura: Eclo 36,1-2a.5-6.13-19 (grego 1.4-5a.10-17)

Ouvimos hoje uma prece inspirada nos salmos e na oração judaica das Dezoito Bênçãos. O autor de Eclo, Ben Sirac, pede a libertação do povo e o esmagamento dos opressores (cf. Sl 79; Eclo 51). Esta prece revela os sentimentos dos judeus piedosos por volta do ano 190 a., às vésperas da rebelião nacional dos macabeus. Coisa rara em Ben Sirac: ela é marcada pelo messianismo (sem falar do messias em nossa leitura), como também o salmo final hebraico (Eclo 51,1-12; cf. Sl 136). Por isso, alguns peritos acham que foi inserida ao livro antes ou durante a perseguição pelo rei grego-seleucida Antíoco IV Epífanes (167-164 a.C.; cf. 1-2Mc). O autor pede piedade e compaixão pelo seu povo e sua cidade, apelando aos milagres do passado e desejando um futuro glorioso que parece distante da opressão estrangeira da época.

Tende piedade de nós, Senhor, Deus do mundo inteiro, e olhai! Mostrai-nos a luz do vosso amor. Infundi o vosso temor em todos os povos que não vos procuram, para que saibam que não há outro Deus senão vós. Que eles vos reconheçam, como nós vos reconhecemos, que não há Deus além de vós, Senhor. Fazei novos milagres, renovai os prodígios (vv. 1-2.5-6).

O Deus de Israel é o único Deus do universo, “Deus do mundo inteiro”. Todos os povos pagãos, especialmente os selêucidas, gregos da região e época que oprimem os judeus, devem reconhecer com temor ”que não há Deus além de vós, Senhor’” (cf. v. 19). A situação histórica é vista num contexto universal que o Senhor domina (cf. Dt 28,19; Is 44,4; 45,5.22-24).

”Fazei novo milagres e renovai os prodígios” (v. 6). Na situação histórica presente, a história passada tem de se fazer atual. A experiência passada da salvação fundamenta a confiança presente e o fervor da súplica, mas não pode consistir em pura lembrança inoperante. Deus tem de demonstrar sua continuidade e coerência, as quais a oração apela. Nos versículos seguintes (vv. 7-12, omitidos pela liturgia de hoje) se pede a destruição dos inimigos.

Reuni as tribos todas de Jacó, e dai-lhes a herança como no tempo antigo. Tende piedade do povo chamado pelo vosso nome, e de Israel, a quem tratastes como primogênito. Compadecei-vos de vossa santa cidade, de Jerusalém, lugar de vossa morada. Enchei Sião de vossa majestade, e de vossa glória o templo (vv. 13-16).

“Reuni todas as tribos de Jacó e dai-lhes a herança, como no tempo antigo” (v. 13). Jacó é Israel (Gn 32,29; 35,10). Esta esperança de uma reunião das tribos, particularmente viva no tempo do exílio, perpetuou-se no judaísmo bem depois da volta dos exilados; os judeus sempre consideravam a dispersão no exterior como situação provisória e lamentável, a qual a vinda do Messias deve pôr fim. Faz parte da restauração a reconstrução da “santa cidade, de “Jerusalém” (cf. Lc 2,38; At 1,6), lugar de vossa morada” que é o “templo” no morro de “Sião”, dois sinais da escolha e da presença da “glória” (vv. 15-16).

Dai testemunho daqueles que, desde o início, são vossas criaturas, realizai o que os profetas em vosso nome disseram. Dai a recompensa àqueles que esperam em vós, mostrai que os vossos profetas tinham razão. Escutai, Senhor, a oração dos vossos servos, pela benevolência que tendes para com vosso povo, conduzi-nos no caminho da justiça, e que o mundo inteiro reconheça que vós sois o Senhor, o Deus de todos os tempos (vv. 17-19).

“Dai testemunho daquele que, desde o início, são vossas criaturas” (v. 17a). Trata-se do povo de Israel em seu conjunto ou dos patriarcas, que um antigo Midraxe situa entre as sete coisas criadas antes do mundo? Ou da sabedoria criada, primícias da criação (Pr 8,22)? Ou o autor considera que o messias ou o reino messiânico, criados antes de todas as coisas, vão em breve se manifestar sobre a terra? É difícil precisar o pensamento.

“Realizai o que os profetas em vosso nome disseram … mostrai que os vossos profetas tinham razão” (vv. 17b-18). A palavra de Deus estava comprometida nas muitas profecias de restauração. O autor pode pensar sobretudo no Segundo Isaías (Deuteroisaías = Is 40-55). Mas não viu que sua própria oração é, acima de tudo, profecia em forma de desejo, e que a resposta de Deus não virá como simples restauração, mas superando todo desejo e expectativa. A súplica adquire bem cedo valor escatológico.

Evangelho: Mc 10,32-45

No texto de hoje, Jesus anuncia pela terceira vez sua paixão em Jerusalém.

Os discípulos estavam a caminho subindo para Jerusalém. Jesus ia na frente. Os discípulos estavam espantados, e aqueles que iam atrás estavam com medo. Jesus chamou de novo os Doze à parte e começou a dizer-lhes o que estava para acontecer com ele: “Eis que estamos subindo para Jerusalém, e o Filho do Homem vai ser entregue aos sumos sacerdotes e aos doutores da Lei. Eles o condenarão à morte e o entregarão aos pagãos. Vão zombar dele, cuspir nele, vão torturá-lo e matá-lo. E depois de três dias ele ressuscitará” (vv. 32-34).

O roteiro de Mc é uma narração de um ano, uma caminhada pela Galileia e depois “subindo para Jerusalém” (800m cima do nível do mar). Como todo judeu adulto Jesus e seus discípulos devem celebrar a Páscoa em Jerusalém onde se cumprirá o destino de Jesus. Mt e Lc seguem este roteiro de Mc. Em Jo, há mais viagens de Jesus a Jerusalém de modo que são três anos de sua vida pública em Jo e apenas um ano nos evangelhos sinóticos.

Jesus como líder “ia na frente”, consciente do seu destino, já o anunciou duas vezes (8,31; 9,31). Desta vez, sua predição favorece pormenores mais precisos. A sentença virá das autoridades judaicas (v. 33: “sumos sacerdotes e doutores da lei”), a execução caberá aos “pagãos” (romanos), os escárnios, a flagelação e a crucificação. “Mas no terceiro dia ressuscitará” (v. 35).

“Os discípulos estavam espantados, e aqueles que iam atrás estavam com medo”. Ir atrás quer dizer “seguir” Jesus e “tomar sua cruz” (8,34). Mc descreve os discípulos como fracos, com pouca fé. Na paixão, eles vão fugir quando Jesus for preso (14,50-52), Pedro o negará três vezes (14,66-72).

Tiago e João, filhos de Zebedeu, foram a Jesus e lhe disseram: “Mestre, queremos que faças por nós o que vamos pedir.” Ele perguntou: “O que quereis que eu vos faça?” Eles responderam: “Deixa-nos sentar um à tua direita e outro à tua esquerda, quando estiveres na tua glória!” (vv. 35-37).

Mc escreveu por volta de 70 d.C. no meio da Guerra Judaica em que os judeus lutavam contra os romanos pela sua independência (o resultado foi a destruição de Jerusalém e do templo, cf. Mc 13). Em Mc, Jesus não é o messias guerreiro e triunfante que os judeus esperavam, mas dará sua vida na cruz (para os judeus um escândalo, cf. Dt 21,22s; Gl 3,13; 1Cor 1,22-24).

Aos três anúncios da paixão, Mc opus a incompreensão dos discípulos. Mt e Lc atenuaram esta incapacidade, porque no tempo deles (80 a 90 d.C.), os apóstolos já haviam morrido e começaram a ser venerados como santos. Em Mc 10,35-37, dois apóstolos, Tiago e João, filhos de Zebedeu (1,19), fazem o pedido direto e ambicioso de se sentarem a direita e a esquerda de Jesus na sua “glória”. Lc omite esta pretensão, enquanto em Mt 20,20-21 é a mãe destes apóstolos que faz o pedido.

Jesus já tinha mostrado preferência por eles, junto com Pedro (cf. 4,21; 17,1). Pretendem os irmãos superar ou antecipar-se a Pedro, passar de segundos a primeiros (cf. 9,33-35)? Os apóstolos esperam uma manifestação gloriosa e imediata do reino (v. 37), mas esta pertence antes à segunda vinda de Cristo (cf. At 1,6).

Jesus então lhes disse: “Vós não sabeis o que pedis. Por acaso podeis beber o cálice que eu vou beber? Podeis ser batizados com o batismo com que vou ser batizado?” Eles responderam: “Podemos.” E ele lhes disse: “Vós bebereis o cálice que eu devo beber, e sereis batizados com o batismo com que eu devo ser batizado. Mas não depende de mim conceder o lugar à minha direita ou à minha esquerda. É para aqueles a quem foi reservado” (vv. 38-40).

Jesus responde constatando a incompreensão dos apóstolos e em seguida coloca duas perguntas: “Podeis beber o cálice que vou beber? Podeis ser batizados com o batismo com que vou ser batizado?” (v. 38). Como eles responderam “podemos” (v. 39), Jesus declara que vão ter parte do seu cálice e do seu batismo. Mas é preciso esclarecer estas duas coisas:

Beber o cálice de Jesus é não é simplesmente beber uma taça de vinho, mas é o cálice da sua paixão (14,36; cf. 14,23s), a taça amarga que Jesus vai engolir (ingerir, sofrer) é o acúmulo dos pecados que provocaram a ira do Senhor (cf. Sl 75,9; Is 51,17-23; Jr 25,15-29; 49,12; 51,17; Lm 4,21; Ez 23,32-34; Hb 2,15s; Ab 16; Zc 12,2).

Estranha-nos que Jesus precisa ser batizado de novo. Já foi batizado por João Batista (1,9s), mas aqui se trata do batismo da sua morte; um significado diferente, não é o batismo de conversão por Joao, mas o batismo cristão, expresso em Rm 6,3: “É na sua morte que fomos batizados”. Para evitar confusão, Mt e Lc omitem esta alusão a um novo batismo de Jesus (cf. Ef 4,5: “Há um só batismo”).

Tiago sofrerá o martírio no ano 44 (At 12,2). O primeiro mártir cristão é o diácono Estevão (cf. At 6-7), mas Tiago é o primeiro apóstolo que morre por sua fé em Jesus Cristo. A lenda conta que seus restos mortais foram traslados para Santiago de Compostela na Espanha, até hoje lugar de uma das maiores peregrinações. De João, não sabemos se sofreu o martírio, mas existe também paixão sem chegar ao martírio. Aqui temos outro exemplo de que nem tudo o que se pede é concedido da maneira que pensamos: “Ainda que não saibamos pedir como é devido” (Rm 8,26). Jesus responde: “Não depende de mim conceder o lugar” (v. 40). Ele não foi enviado para distribuir favores, cargos e recompensas aos homens, mas para salvá-los através da sua cruz (cf. Jo 3,17; 12,32.47).

Quando os outros dez discípulos ouviram isso, indignaram-se com Tiago e João. Jesus os chamou e disse: “Vós sabeis que os chefes das nações as oprimem e os grandes as tiranizam. Mas, entre vós, não deve ser assim: quem quiser ser grande, seja vosso servo; e quem quiser ser o primeiro, seja o escravo de todos. Porque o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida como resgate para muitos” (vv. 41-45).

Os outros apóstolos se indignaram (cf. a discussão pelo primeiro lugar em 9,33s, à qual Jesus respondeu também com o serviço, cf. 9,35-37). A todos eles Jesus fala: “Vós sabeis que os chefes das nações as oprimem e os grandes as tiranizam” (v. 42). Ambição e abuso do poder não podem ser modelo para os cristãos. “Mas entre vós não deve ser assim” (v. 43a). Na Igreja haverá autoridade, mas deve ser exercida sem ostentação de poder, sim com espírito de serviço (cf. Jo 13; 1Pd 5,1-4). “Quem quiser ser grande, seja vosso servo e quem quiser ser o primeiro seja o escravo de todos” (vv. 43-44; cf. 9,35; Mt 23,11; Lc 9,48).

Jesus é o exemplo supremo de autoridade e serviço (cf. Lc 22,27 e o gesto do lava-pés em Jo 13): “Porque o Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir e dar sua vida como resgate para muitos” (v. 28). Os pecados são uma dívida dos homens para com a justiça divina, que resulta na pena de morte exigida pela lei (cf. 1Cor 15,56; 2Cor 3,7.9; Gl 3,13; Rm 8,3s). A fim de libertar os seres humanos, Jesus pagará o “resgate” e quitará a dívida com o preço de seu sangue (1Cor 6,20; 7,23; Gl 3,13; 4,5), morrendo “em lugar”, “para” ou “em favor”, do povo culpado, como Is 53 profetizou sobre o Servo de Javé (Is 53,11s; cf. o “resgate” ou a “libertação” em Rm 3,24; 1Cor 1,30; Ef 1,7.14; 1Tm 2,6; Sl 49,8-10).

A expressão “para muitos” (v. 45; cf. Mt 26,28; Is 53,11-12), opõe o grande número de redimidos ao redentor “único”, sem sugerir que esse número seja limitado (Rm 5,6-21). Por isso, na Eucaristia se pronuncia sobre o cálice, “meu sangue derramado por vós e por todos.” Bento XVI queria que a tradução fosse mais fiel (literal) a Mt 26,28 e Mc 14,24 (“muitos”), mas admite que a intenção de Jesus era morrer “por todos” (cf. Jo 6,51 etc.); mas nem todos os seres humanos aceitam este serviço de resgate que Jesus prestou a humanidade.

O site da CNBB comenta: Todas as pessoas querem, e muito, participar da glória de Deus, mas poucas pessoas querem assumir um compromisso maior com o reino de Deus. O evangelho de hoje nos mostra um pouco isso quando Jesus anuncia o mistério da cruz, mas os discípulos estão mais interessados na sua participação na sua glória. Assim, nos dias de hoje nós vemos muitas pessoas exaltando o amor de Deus, cantando os seus louvores, mas sem o menor compromisso com o serviço ao Reino de Deus, principalmente no que se refere à questão dos pobres, dos sofredores, dos marginalizados e dos excluídos. Todos querem ser os maiores, mas poucos estão dispostos a servir.

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