26 de março de 2017 – Quaresma 4º Domingo Ano A

1ª Leitura: 1Sm 16,1b.6-7.10-13a

Nas primeiras leituras dos domingos da Quaresma percorre-se as etapas da história da salvação no Antigo Testamento (AT): a narração sobre a tentação no paraíso (1º Domingo), a vocação de Abraão (2º Domingo), a água que sai da rocha tocada por Moisés no deserto do Sinai (3º Domingo). Hoje ouvimos da eleição do rei Davi que era pastor (cf. Sl 23/22: salmo responsorial). Com o evangelho que apresenta a cura de um cego mediante a água (na piscina do Enviado, alusão ao batismo) podemos associar o Espírito que desce sobre Davi durante a unção como em todo cristão batizado (e crismado).

A leitura de hoje nos apresenta a eleição e a unção de Davi, personagem principal dos livros de Samuel e antepassado do messias (cf. Mt 1,1-17). A narração da sua vida ocupa 42 capítulos nas livros 1-2Sm e 1Rs (além de 18 cap. nos livros de 1-2Cr). Estes livros pertencem a história deuteronomista: retomando tradições orais, os redatores na época do rei Josias (rei de Judá em 640-609 a.C., cf. 2Rs 22-23) queriam exaltar a casa real (casa/dinastia de Davi) e glorificar o ancestral Davi em detrimento de tradições do norte (Saul); na época pós-exílica ainda houve acréscimos por uma redação sacerdotal.

O episódio da leitura de hoje, a unção de Davi (16,1-13), parece vir da tradição profética, e está desligado da continuação da história; Davi foi ungido rei em Hebron pelos anciãos de Judá (2Sm 2,4) e depois como chefe de Israel pelas anciãos de todas as tribos (2Sm 5,3), mas a unção relatada na leitura de hoje não será mais mencionada (segundo 17,28 e apesar de 16,13, seu próprio irmão Eliab a ignora). Como o cap. 9 para Saul, a narrativa serve de prefácio (introdução) à história da “ascensão” de Davi.

É doutrina clássica que Davi foi eleito expressamente pelo Senhor. A primeira aparição de Davi no livro já se enquadra nessa doutrina, graças ao recurso literário da antecipação: a unção, que provavelmente veio sancionar um processo já adiantado, coloca-se na primeira juventude ou adolescência. Davi é ungido rei enquanto o velho rei Saul ainda vive (cf. 1Sm 31) e sem Saul sequer saber, um truque genial do narrador que deixa o leitor tomar partido por Davi e parecer o ciúme e as ações de Saul irracionais.

A Nova Bíblia Pastoral (p. 319) comenta: Davi não pertence à casa do primeiro rei. Saul é da tribo de Benjamim, e Davi é de Judá. Então, como será possível Davi chegar ao trono? Por isso, um objetivo dos trechos seguintes, que reúnem várias tradições, é justificar a chegada de Davi ao poder. A expressão mais comum é esta: “Javé estava com ele”. Em contrapartida, Saul é apresentado como deficiente mental abandonado por Javé.

O Senhor disse a Samuel: “Enche o chifre de óleo e vem, para que eu te envie à casa de Jessé de Belém, pois escolhi um rei para mim entre os seus filhos” (v. 1).

Deus rejeitou Saul porque não obedeceu a sua ordem (v. 1a; cf. 15,26.36). Os verbos rejeitar e escolher se opõem: em 10,21-24, Samuel disse que o Senhor escolheu Saul (pelo sorteio); em outras duas ocasiões diz que foi o povo. No caso de Davi, o Senhor toma a iniciativa (cf. Sl 89,21), Samuel é o executor oficial, o povo não conta. Na eleição de Saul a iniciativa foi dos israelitas, viciada desde o começo, que foi aceita por Deus apenas como concessão tolerante (cap. 8). No caso de Davi, o Senhor aceitou o regime monárquico e a toma nas próprias mãos.

A função de “escolher/ungir reis” se prolongará em outros profetas, como Natã (1Rs 1,34), Aías de Silo (1Rs 11,29-39), Elias (1Rs 19,15s), Eliseu (2Rs 9,1-10). Em Jerusalém, será o sumo sacerdote que ungirá os reis da dinastia de Davi (1Rs 1,39; Sl 2,2.6s). Nas profecias messiânicas, “Belém” é citado em Mq 5,1 (cf. Mt 2,1-8; Lc 2,4-15); “Jessé” é citado em Is 11,1; era de boa família com condições (cf. Rt 4,17-22).

Assim que chegaram, Samuel viu a Eliab, e disse consigo: “Certamente é este o ungido do Senhor!” Mas o Senhor disse-lhe: “Não olhes para a sua aparência nem para a sua grande estatura, porque eu o rejeitei. Não julgo segundo os critérios do homem: o homem vê as aparências, mas o Senhor olha o coração” (vv. 6-7).

Nossa liturgia abrevia e saltou os vv. 1a.4-5.7-8. A Bíblia do Peregrino (p. 519) comenta:  Na descoberta do eleito, o autor utiliza o conhecido motivo, tão comum no folclore, do irmão caçula que se antepõe e seus irmãos.

O contraste entre Saul e Davi está ligeiramente marcado com a apresentação do primeiro eliminado: Eliab era de boa aparência e grande estatura, como Saul. Samuel crê que a estatura de Eliab o qualifique para a realeza, como um novo Saul (cf. 9,2; 10,23). Mas por dentro não era como o Senhor queria, é rejeitado como Saul (cf. 13,7-15; 15). Mas o Senhor escolheu o menor. “O que é fraco aos olhos do mundo, Deus escolheu para confundir o que é forte” (1Cor 1,26-29; cf. 2Cor 12,9).

O texto hebraico joga com o verbo hebraico r’h (= ver, fixar-se em, eleger) do v. 1: Deus “fixou-se em um”, Samuel se fixa em outro (cf. a oposição de Is 55,8); “aparência” se forma da mesma raiz verbal. Mas “o Senhor vê o coração”. Essa ideia retorna sob formas diversas em 1Rs 8,39; Jr 11,20; 12,3; 17,10; 20,12; Sl 7,10; 17,3; 44,22; 139,223; Pr 15,11; 17,3; 21,2; 24,12 (cf. a frase do livro de Saint-Exupéry, O pequeno príncipe: “Só se enxerga bem com o coração”).

Jessé fez vir seus sete filhos à presença de Samuel, mas Samuel disse: “O Senhor não escolheu a nenhum deles”. E acrescentou: “Estão aqui todos os teus filhos?” Jessé respondeu: “Resta ainda o mais novo, que está apascentando as ovelhas”. E Samuel ordenou a Jessé: “Manda buscá-lo, pois não nos sentaremos à mesa, enquanto ele não chegar” (vv. 9-11).

Aqui e em 17,12-14, Davi é o oitavo filho (o sétimo em 1Cr 2,13-15). A sua separação está bem marcada na narração. Seu ofício pastoril é dado importante na tradição (cf. Sl 78,70-72; Mq 5,1-3; pastor e rebanho são metáforas de líder e seu povo, cf. Ex 34; Sl 23). Sem ele (sem o líder) não se celebrará o banquete sacrifical.

Jessé mandou buscá-lo. Era ruivo, de belos olhos e de formosa aparência. E o Senhor disse: “Levanta-te, unge-o: é este!” (v. 12).

Agora é o narrador que está se detendo nas aparências em vez de olhar o coração? A beleza de Davi pode pertencer à figura idealizada do rei, mas pode ter fundamento histórico, porque um loiro-ruivo é incomum num povo semita (mesma raça dos árabes). Em todo caso, é de notar que em Saul e Eliab ressaltavam a corpulência, a robustez; em Davi, a beleza. Golias as considera incompatíveis e compara Davi a uma criança em 17,42 (inspirado no mesmo adjetivo). Por isso, a Tradução Ecumênica da Bíblia (TEB) traduz: “tez clara” em vez de “ruivo” (lit. vermelho, rosado; cf. Gn 25,25).

Samuel tomou o chifre com óleo e ungiu Davi na presença de seus irmãos. E a partir daquele dia, o espírito do Senhor se apoderou de Davi (v. 13a).

O nome de Davi (hebraico: David) significa “Querido, Amado”. Sem nenhum sinal exterior e em ligação imediata com a unção, o “espírito do Senhor” desce sobre Davi; é aqui a graça concedida a uma pessoa consagrada e torna a eleição estável: o espírito, que irrompeu ocasionalmente nos juízes (cf. Jz 3,10; 6,34; 11,29; 13,25; 14,6.19) permanece agora em Davi (cf. Is 11,2).

Além disso, este “espírito” cumpre uma função narrativa secundária, em contraste com o “mau espírito” de Saul, como já diz o próximo versículo: “O espírito do Senhor se retirara de Saul e um espírito maligno, vindo do Senhor, o atormentava” (v. 14). O espírito de Deus passa de Saul (10,6.10) para Davi; abandona Saul e ao sair, deixa lugar para um espírito mau (cf. Mt 12,43-45p). Começa a ascensão de Davi em oposição a derrota de Saul que se completa em 2Sm 5 quando Davi será ungido rei de todo o Israel pelos anciãos das tribos. Como um refrão, a fórmula “o Senhor estava com ele” acompanha os progressos de Davi (cf. v. 18; 17,37; 18,12.14.28; 20,13; 2Sm 5,10), mesmo suas ações duvidosas e violentas (não são um problema para os autores).

Pode se compara a unção de Davi por Samuel com o batismo de Jesus:

Um rei (Saul, Herodes) ainda governa na desgraça. Procura-se uma alternativa: o profeta (Samuel, João Batista) realiza um ritual (unção, batismo) no qual Deus apresenta seu eleito (Davi, Jesus) equipando-o com seu Espírito (cf. Is 42,1; 61,1; Mc 1,9-10p; At 10,37s).

 

2ª Leitura: Ef 5,8-14

As cartas Ef e Cl são chamadas Deuteropaulinas, porque foram escritas em seu nome de Paulo por discípulos dele (talvez Epafras, cf. Cl 1,7) já na segunda geração cristã (por volta de 80 d.C.) segundo muitos peritos que observam uma outra situação e linguagem das cartas do próprio apóstolo. Nossa leitura foi escolhida por que se relaciona com o evangelho de hoje: a cura do cego que revela Cristo como “luz do mundo” (Jo 8,12; 9,5).

Em 5,8-14 começa uma sequência que desenvolve o símbolo tradicional da luz e das trevas (culminando em Cristo como luz do amanhecer no v. 14; cf. Sl 57; Is 60). A seita dos essênios em Qumran (séc. I) também se considerava como “filhos da luz”.

 (Irmãos,) Outrora éreis trevas, mas agora sois luz no Senhor. Vivei como filhos da luz (v. 8).

A Tradição Ecumênica da Bíblia (p. 1273) comenta: A passagem reúne as imagens tradicionais da catequese batismal. Primeiro encontrou-se a da “vestimenta” que se tira e se veste (4,22-25), depois o tema da “imitação” de Deus (5,1), finalmente o contraste “trevas” e “luz”, tão característico dos textos de Qumran e do cristianismo primitivo (Tg 1,17-18; 1Pd 2,9; 1Jo 1,5-7). As exortações positivas são entrecortadas de “lista de vícios” que se prendem igualmente ao ensino corrente e já se encontram na literatura judaica.

A luz é também símbolo batismal. Antes da fé e do batismo, os destinatários da carta eram pagãos, estando nas “trevas, mas agora” os novos cristãos (batizados; cf. 4,5.24.30) são homens novos “na luz do Senhor” e devem viver (lit. caminhar) “no amor” (5,2) e como “filhos (ou: criaturas) da luz” (cf. 1Ts 5,4-5; Jo 12,36; denominação frequente também nos escritos dos essênios, uma seita judaica no séc. I em Qumran).

E o fruto da luz chama-se: bondade, justiça, verdade. Discerni o que agrada ao Senhor. Não vos associeis às obras das trevas, que não levam a nada; antes, desmascarai-as. O que essa gente faz em segredo, tem vergonha até de dizê-lo. Mas tudo que é condenável torna-se manifesto pela luz; e tudo o que é manifesto é luz (vv. 9-14a).

A Bíblia do Peregrino (p. 2812) comenta: O viciado se esconde na escuridão (Eclo 23,18 “as trevas me envolvem …ninguém me vê”; Jó 24,13-17); mas a luz revela o delito (Sl 90,8 “puseste nossas culpas à luz do teu olhar”). O mundo da luz se opõe ao mundo das trevas. Tem seus afeiçoados, produz fruto, recebe luz de Cristo glorificado. Pelo contrário, as obras das trevas são estéreis e vergonhosas.

“Tudo que é condenável torna-se manifesto pela luz; e tudo o que é manifesto é luz” Falar complacentemente dessas “obras das trevas”, deixando-as em sua obscuridade suspeita, seria uma coisa má (v. 3); mas fazê-lo para corrigi-las, pondo-as bem às claras, torna-se uma boa obra; a luz expulsara assim as trevas, porque será a luz de Cristo (v. 14b).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2273) comenta: O sentido destes vv. difíceis parede ser o seguinte: projetar a luz sobre o peado significa fazê-lo aparecer pelo que é, digno de reprovação. Bem mais, tudo o que é assim posto às claras participa da luz e esta luz vai ser identificada com Cristo. Cf. Jo 3,20-21 onde um motivo análogo é tratado de modo um pouco diferente.

É por isso que se diz: “Desperta, tu que dormes, levanta-te dentre os mortos e sobre ti Cristo resplandecerá” (v. 14b).

É a citação de um texto desconhecido, provavelmente um hino cristão (cf. 1Tm 3,16) no qual se percebe a inspiração do livro de Isaías. Quem dorme na morte, que se levante (cf. o convite a Jerusalém em Is 51,17; 52,1) para contemplar a luz de Cristo ressuscitado que amanhece (cf. Is 60,1-3; 62,1; Sl 57).

“Sobre ti Cristo resplandecerá” (variação de texto: “e tocarás em Cristo”): a luz do amanhecer do primeiro dia da semana é o início da criação (cf. Gn 1,3) e indica a ressurreição de Jesus também nesta dia (cf. Mt 28,1p). O batismo, por sua vez, simboliza a nova vida pela morte e ressurreição de Jesus (cf. Rm 6,4s; sobre a fé batismal concebida como iluminação, cf. Hb 6,4; 10,32)

Evangelho: Jo 9,1-41 (versão breve: 9,1.6-9.13-17.34-38)

O evangelho de hoje é um capítulo inteiro em João. O quarto evangelho foi escrito em várias etapas. Muitos peritos supõem que no início estava uma coleção de sete milagres, chamada “fonte de sinais”, porque João chama os milagres de “sinais” (2,11.23; 4,48.54; 12,37; 20,30), à qual foi juntada um relato da paixão. Em seguida, um autor anônimo chamado “evangelista” inseriu diálogos e discursos longos que fazem a característica deste evangelho. Depois da conclusão em 20,30s, uma redação chamada “eclesial” acrescentou o cap. 21 no final e outros no meio (caps. 10 e 15-17). Em 21,20-24 revela-se que o evangelista foi o “discípulo amado” quem “testemunhou e escreveu essas coisas”. O nome João é uma suposição posterior a partir da proximidade com Pedro em At 3-4. Em verdade, não sabemos quem era o evangelista, apenas as circunstâncias em que viveu e que se deixam deduzir do próprio evangelho, p. ex. no evangelho de hoje a expulsão da sinagoga (vv. 22.34s) que atingiu os cristãos no ano 90 d.C. no sínodo de Jâmnia.

Hoje ouvimos o relato de uma cura de um cego de nascença (sexto sinal) com muitos diálogos no meio e uma profissão de fé no final. É mais um evangelho que nos prepara para a nova vida na Páscoa através do batismo que foi chamado também de “iluminação” (Hb 6,4; 10,32; cf. Ef 5,14 na 2ª leitura). No cap. anterior, Jesus já disse em 8,12 “Eu sou a luz do mundo quem me seguir não andará nas trevas, mas terá a luz da vida” e entrou em discussão no templo com os “judeus”; o uso negativo deste termo não se deve entender como hostilidade ao povo de Israel a qual Jesus, Maria e os discípulos também pertencem, mas como expressão do conflito entre a comunidade cristã e as autoridades da sinagoga na época do autor.

A Nova Bíblia Pastoral (p. 1306) comenta: O sinal realizado em favo do cego mostra que entramos em novo momento da narração. Mas ao mesmo tempo o clima do conflito continua, e junto vem o aprofundamento de compreensão sobre Jesus como luz do mundo. O caminho trilhado pelo cego é modelo para toda a comunidade: descobrir a luz e aproximar-se dela, sem temer os conflitos e hostilidades que virão daí. A experiência de sintonia com Jesus mostrará a cegueira da sociedade em redor e de sua religião, com dirigentes mais preocupados com seus próprios interesses do que com a comunhão entre o povo e Deus.

A Bíblia do Peregrino (p. 2579) introduz: Depois de uns dias de tensas polêmicas e de solenes declarações, o evangelista nos serve um autêntico relato, um dos melhores do seu evangelho. Também esse tem muito diálogo, mas são frases logicamente encadeadas num processo. O relato poderia facilmente transformar-se em representação dramática. O tema é um simples milagre e suas consequências. É a primeira lição: um milagre de Jesus provoca abalos ao redor.

Não é frequente nos evangelhos o estudo psicológico. Esse relato é um estudo acurado de atitudes: antes de tudo o cego, que parece ter prazer no seu papel de protagonista (quase roubando-o de Jesus), os vizinhos curiosos, os pais atemorizados, as autoridades teimosas, Jesus guiando discretamente os fatos. Destaca-se o diálogo do cego com as autoridades: sua ousadia e ironia, seu tom astuto e a lógica que desmarca os contrários.

O valor narrativo, que temos de apreciar numa primeira leitura, não esgota o sentido do relato. Nele assistimos os dois processos encontrados: a progressiva iluminação do cego, cada vez mais penetrante em sua visão sobrenatural. O progresso se adverte no que vai dizendo de Jesus: um homem (v. 11), um profeta (v. 17), procede de Deus (v. 33), Senhor (v. 38). A progressiva cegueira das autoridades, que resistem em não compreender e quereriam não ver. No princípio estão divididas, depois asseguram duas vezes “consta-nos”, depois recorrem ao insulto e à expulsão.

Esse duplo processo com as consequências soa como registro da polemica entre o judaísmo e o cristianismo, depois da ruptura definitiva, na época em que se escreve o evangelho. Passado esse momento, o relato não perde seu valor revelador que o autor no começo quis anunciar na boca de Jesus. Se recordamos que na antiguidade o batismo se chamou “iluminação” (photismós), compreenderemos porque essa cena foi tema favorito da iconografia cristã antiga.

Ao passar, Jesus viu um homem cego de nascença (v. 1).

A cura deste cego de nascença será o sexto sinal. Cada sinal supera o anterior em dificuldade de realizar (2,1-12: transformar água em vinho; 6,1-20: multiplicar os pães e andar sobre o mar) ou de curar (4,46-54: curar um doente com febre alta; 5,1-18: curar uma paralisia de 38 anos). A cura do cego de nascença só será superada pela ressurreição de Lazaro (11,1-44, evangelho do próximo domingo).

A Bíblia do Peregrino (p. 2580) introduz: Não há antecedentes de um milagre semelhante no AT (v. 32); não se considera milagrosa a cura de Tobit, embora suponha um conhecimento sobre-humano de virtudes terapêuticas (Tb 11,12-13). O único que temos é a profecia de Is 35,5 “os olhos do cego se abrirão” e 42,7 “para que abras os olhos dos cegos” e o uso metafórico da “cegueira” espiritual (Is 42,18-19; 43,8; 56,10). Nos sinóticos se leem curas de cegos.

Os discípulos perguntaram a Jesus: “Mestre, quem pecou para que nascesse cego: ele ou os seus pais?” (v. 2).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2064) comenta: Segundo uma concepção muito difundida no mundo antigo, havia um vínculo estreito entre o pecado e as enfermidades físicas (Ex 9,1-12; Sl 38,2-6; Ez 18,20). No caso dos enfermos de nascença, certos rabinos atribuíam a falta aos pais, outros à própria criança, no decurso da gestação.

A Bíblia do Peregrino (p. 2580) comenta: Os discípulos não se tinham livrado ainda dessa crença que ligava mecanicamente a doença com o pecado próprio ou dos pais. Ou cometeu um pecado antes de nascer, os seus pais o cometeram. Pensaram segundo Ex 20,5; 34,7, como os amigos de Jó sem levar em conta a correção de Jr 31,29-30 e Ez 18 “o filho não carregará a culpa do pai”.

Jesus respondeu: “Nem ele nem seus pais pecaram, mas isso serve para que as obras de Deus se manifestem nele (v. 3).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2064) comenta: Jesus afasta as teorias correntes sem preocupar-se com propor uma nova. Ele constata o fato da enfermidade e age tendo em vista assegurar a esse homem a sua plena integridade física; assim fazendo realizar um sinal que manifestará aos homens sua origem divina e os convidará a receber a luz verdadeira. A passagem da cegueira à visão simbolizava a da incredulidade e da morte à fé e à vida. Nesse sentido, o cego (o único cego “de nascença” mencionado no NT) pode ser considerado o protótipo dos que chegam a fé.

A Bíblia do Peregrino (p. 2580) comenta: “Para que”: nós antes falaríamos de ocasião, ou daríamos que vinha de Deus (cf. o papel dialético do Faraó para a revelação de Yhwh, Ex 9,16). De modo semelhante, na esterilidade de algumas mulheres revela-se o poder de Deus da vida. E Paulo afirmará que “a força se realiza na fraqueza” (2Cor 12,9).

É necessário que nós realizemos as obras daquele que me enviou, enquanto é dia. Vem a noite, em que ninguém pode trabalhar. Enquanto estou no mundo, eu sou a luz do mundo” (vv. 4-5).

A Bíblia do Peregrino (p. 2580) comenta: Esses vv., de ritmo quase poético, definem a chave simbólica do relato: dar a vista é iluminar, o cego passará da noite para o dia. “Como cegos vamos apalpando a parede, caminhamos no escuro” (Is 59,10). O dia é o tempo em que se pode trabalhar: “sois todos cidadãos da luz e do dia”; a noite será o poder das trevas (cf. 1Ts 5,1-10). Como lema repete a autodefinição de 8,12.

“Que nós realizemos as obras daquele que me enviou”; este plural (“nós”) parece indicar que a comunidade cristã considerava a própria ação como sendo o prolongamento da de Cristo, fazer as obras, ou seja, os “sinais”.

Muitas vezes, a duração da vida e da atividade de um homem é comparada à de uma jornada de trabalho. Do mesmo modo, a atividade de Jesus, que é também a luz do mundo, pode ser comparada a uma jornada (11,10): Sua vida como um dia de trabalho (5,17), que termina com a noite de sua morte (cf. 13,32).

“Enquanto estou no mundo, eu sou a luz do mundo”; repete a autodeclaração de 8,12 e dá, de antemão, o sentido do milagre. A atividade salvífica do Pai se manifesta em Jesus para o bem de todos; ele é a única possibilidade de salvação (8,12; 12,35).

Dito isto, Jesus cuspiu no chão, fez lama com a saliva e colocou-a sobre os olhos do cego (v. 6).

Na antiguidade, consideravam-se que a saliva possuía o poder curativa, que de fato tem (os animais lambam suas feridas, porque a saliva tem substância anti-inflamatória). Jesus não faz nada de estranho, mas recorre a um gesto familiar e lhe dá uma eficácia nova (cf. Mc 7,33; 8,23).

A Bíblia do Peregrino (p. 2580) comenta: Após enunciar o valor simbólico, o narrador se esforça por fazer-nos ver a materialidade do processo, inclusive com seu paradoxo. Terra inerte e saliva vital, trabalho das mãos e aplicação aos olhos, lavatório. Aquele que vem enviado do céu age na terra e com ela.

E disse-lhe: “Vai lavar-te na piscina de Siloé” (que quer dizer: Enviado). O cego foi, lavou-se e voltou enxergando (v. 7).

A “piscina de Siloé” está situada na cidade de Jerusalém (2Rs 20,20; Is 8,6; Ne 3,15); daí, durante a festa das Tendas (cf. 7,2.37), tirava-se a água, símbolo das bênçãos messiânicas. A partir de agora, as bênçãos vêm por Jesus. Jo, que atribui grande importância ao tema da missão, sugere uma etimologia: do mesmo modo como a água da piscina do “enviado” restitui a vista, assim também o Enviado messiânico traz a luz da revelação. “Enviado” é um dos títulos de Jesus, característicos de Jo (3,17; 4,34; 5,24.36-38; 8,42; 9,7; 11,42; 17,8.21-25).

A agua que lava e ilumina e o nome “Enviado” da piscina aludem ao batismo (ritual?). Se nascer é ver a luz, o renascimento pelo batismo contempla a nova luz (cf. o diálogo com Nicodemos em 3,3-5.19-21).

Os vizinhos e os que costumavam ver o cego – pois ele era mendigo – diziam: “Não é aquele que ficava pedindo esmola?” Uns diziam: “Sim, é ele!” Outros afirmavam: “Não é ele, mas alguém parecido com ele.” Ele, porém, dizia: “Sou eu mesmo!” Então lhe perguntaram: “Como é que se abriram os teus olhos?” Ele respondeu: “Aquele homem chamado Jesus fez lama, colocou-a nos meus olhos e disse-me: “Vai a Siloé e lava-te”. Então fui, lavei-me e comecei a ver”. Perguntaram-lhe: “Onde está ele?” Respondeu: “Não sei” (vv. 8-12).

“O cego – pois ele era mendigo” Como não havia políticas sociais de estado (INSS), muitos deficientes precisavam pedir esmolas para se sustentar (cf. Mc 10,46p; At 3,2).

A Bíblia do Peregrino (p. 2580) comenta: A divisão de opiniões sublinha o incomum ou o incrível do acontecimento. O novo estado o torna irreconhecível, pois não se encaixa na rotina cotidiana. E procuram-se saídas plausíveis, ás quais ele responde afirmando sua identidade,… O mendigo pronuncia pela primeira vez seu testemunho, identificando a si mesmo e a seu benfeitor. Soa novamente a pergunta que aponta para o enigma de Jesus: onde está? A esta pergunta ele não sabe responder.

Levaram então aos fariseus o homem que tinha sido cego. Ora, era sábado, o dia em que Jesus tinha feito lama e aberto os olhos do cego. Novamente, então, lhe perguntaram os fariseus como tinha recuperado a vista. Respondeu-lhes: “Colocou lama sobre meus olhos, fui lavar-me e agora vejo!” Disseram, então, alguns dos fariseus: “Esse homem não vem de Deus, pois não guarda o sábado.” Mas outros diziam: “Como pode um pecador fazer tais sinais?” (vv. 13-16).

Depois dos vizinhos, o evangelistas apresenta as autoridades. A Bíblia do Peregrino (p. 2580) comenta: Chama seus interlocutores de “fariseus”, do partido mais influente, ou “judeus”, ou seja, as autoridades. Vão iniciar um interrogatório formal. O do sábado põem em marcha o diálogo; mas não é o tema central (como em 5,1-18). O verdadeiro tema é a personalidade e a missão de Jesus: sobre ele, num primeiro momento, se dividem de novo as opiniões. Todo um esforço para enquadrar fatos desusados, estranhos, e personagens peculiares em categorias habituais: vinho novo em odres velhos. Para alguns vizinhos não é o mendigo, porque um cego de nascença é impossível que se cure. Para alguns fariseus, Jesus não é enviado de Deus, porque não se observa o sábado (tal como eles o definem).

Era proibido fazer lama ou qualquer tratamento no dia de sábado, a não ser nos casos de perigos graves (cf. 5,9). Em Dt 13,1-6, um falso profeta que realiza sinais, mas ensina diferente dos preceitos divinos, deve ser morto. Com base nesta lei, o sinédrio vai julgar Jesus (cf. Mc 14,55-65).

E havia divergência entre eles. Perguntaram outra vez ao cego: “E tu, que dizes daquele que te abriu os olhos?” Respondeu: “É um profeta” (v. 17).

A Bíblia do Peregrino (p. 2581) comenta: O cego não se dispõe por enquanto de outra categoria senão a tradicional e genérica de “profeta” enviado de Deus com poderes extraordinários, segundo o tipo dos profetas taumaturgos, Elias e Eliseu.

Como no diálogo com a samaritana, há um desenvolvimento dos títulos de Jesus (cf. (4,19.25s.42). Aqui é a primeira etapa da interpretação do sinal; Jesus é reconhecido como “profeta”, um homem de Deus, dotado de um poder que ultrapassa as possibilidades humanas (cf. 5,36s; Lc 7,16; 24,19; Mc 8,24-29p).

Então, os judeus não acreditaram que ele tinha sido cego e que tinha recuperado a vista. Chamaram os pais dele e perguntaram-lhes: “Este é o vosso filho, que dizeis ter nascido cego? Como é que ele agora está enxergando?” Os seus pais disseram: “Sabemos que este é nosso filho e que nasceu cego. Como agora está enxergando, isso não sabemos. E quem lhe abriu os olhos também não sabemos. Interrogai-o, ele é maior de idade, ele pode falar por si mesmo.” Os seus pais disseram isso, porque tinham medo das autoridades judaicas. De fato, os judeus já tinham combinado expulsar da comunidade quem declarasse que Jesus era o Messias. Foi por isso que seus pais disseram: “É maior de idade. Interrogai-o a ele” (vv. 18-23).

As autoridades (os fariseus são agora os “judeus”) incrédulas questionam agora se ele realmente nasceu cego e chamam os pais. A Bíblia do Peregrino (p. 2581) comenta: A mesma resistência para excluir ou eliminar o milagre: os vizinhos dizem que não é o mesmo; os judeus, que não estava cego. Tudo, menos aceitar a pessoa e missão de Jesus. O cego começa a ser uma peça que incomoda, não manipulável.

O interrogatório dos pais reflete um clima de intimidação que pode ser histórico. Por outro lado, a decisão de excomungar ou expulsar da sinagoga corresponde melhor à época em que se escreve o evangelho: a expulsão dos cristãos (“nazarenos”) estava consumada. Por certo tempo, os judeus que confessavam Jesus como Messias formavam uma seita judaica entre outras; seu problema era intrajudaico. A partir da destruição do templo, o grupo dirigente que manteve a continuidade robustecendo-se com todo poder, foi progressivamente endurecendo sua atitude frente ao novo grupo judeu, que reagiu com polemica dureza. Por outro lado, os judeus que reconheciam Jesus como Messias não participavam de outros messianismos nem de movimentos de libertação. Se a excomunhão não se encaixa na vida de Jesus, o narrador acerta em descobrir a razão na controvérsia sobre o messianismo de Jesus.

Na época de Jesus, o judaísmo usava medidas de segregação de certos delinquentes; mas só no fim do séc. I que apareceu uma verdadeira excomunhão dos cristãos, decretada no Sínodo de Jâmnia em 90 d.C., convocado pelos fariseus, único grupo sobrevivente depois da destruição do templo pelo romanos em 70 d.C. (os saduceus eram o partido dos sacerdotes que, sem templo não tinha mais função). Provavelmente Jó tenha projetado para o passado esta medida recente do seu tempo (expulsão, excomunhão, cf. 12,42; 16,2), da qual certamente já foram vítimas alguns cristãos.

Então, os judeus chamaram de novo o homem que tinha sido cego. Disseram-lhe: “Dá glória a Deus!  Nós sabemos que esse homem é um pecador” Então ele respondeu: “Se ele é pecador, não sei. Só sei que eu era cego e agora vejo” (vv. 24-25)

“Dá glória a Deus” é convite habitual de juramento para dizer a verdade sob o olhar de Deus, sem se preocupar com eventuais inconvenientes pessoais, e a reparar uma ofensa feita à majestade divina (cf. Js 7,19; 1Sm 6,5).

A Bíblia do Peregrino (p. 2581) comenta: Não dando resultado o interrogatório dos pais, iniciam um segundo interrogatório, agora agressivo, do cego curado… O predicado “pecador” é grave: é dado a quem exerce determinadas profissões (como publicano) ou viola habitualmente a lei. Os sacerdotes diagnosticavam doença ou cura discernindo sintomas; esses fariseus se sentem autorizados a declarar alguém “pecador”. Critério? – O sábado, rigidamente interpretado por eles. Grau? – Certeza. Segundo as categorias dos judeus, Jesus entra sem duvida na classificação. Nas categorias do cego, é um benfeitor prodigioso.

Perguntaram-lhe então: “Que é que ele te fez? Como te abriu os olhos?” Respondeu ele: “Eu já vos disse, e não escutastes. Por que quereis ouvir de novo? Por acaso quereis tornar vos discípulos dele?” Então insultaram-no, dizendo: “Tu, sim, és discípulo dele! Nós somos discípulos de Moisés. Nós sabemos que Deus falou a Moisés, mas esse, não sabemos de onde é” (vv. 26-29).

O evangelista deixa transparecer, com humor e ironia, as contradições e incompetências (em matéria de fé) das autoridades o assim a figura do cego permite aludir ao que então opunha judeus e cristãos. O próprio interrogado começa a perguntar. A Bíblia do Peregrino (p. 2581s) comenta: A pergunta é zombeteira, para eles ofensiva; por isso respondem com insultos. Contrapõem Moisés (Dt 34,10) a Jesus: até que ponto têm razão? “Porém nunca mais surgiu em Israel um profeta como Moisés, com o qual o Senhor tratava cara a cara” (Dt 34,10; cf. 5,45 e 1,18); como se disséssemos, se apoiam em Moisés para resistir a Jesus. E os que se sentem tão seguros – “nos consta” se apoiam na ignorância – “não sabemos”. E não sabem porque não querem.

“Não sabemos de onde é” (cf. 6,42; 7,27.42.52), a pergunta sobre a verdadeira origem de Jesus só se responde na fé. Ele vem de Deus Pai (v. 33; cf. 3,13.16s etc.) e nele tem preexistência (1,1.14.18), anterior a Abraão (8,57) e superior a Moisés (1,18; 5,45s; 6,32).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2065) comenta: A importância adquirida pela lei, no judaísmo, promovera uma altíssima estima pelo legislador Moisés. Os fariseus tendiam a considerá-lo como o mestre de doutrina por excelência. À medida que Jesus aparece como portador da revelação total e definitiva, ele devia ser posto em contraste com Moisés (cf. 6,32…).

Respondeu-lhes o homem: “Espantoso! Vós não sabeis de onde ele é? No entanto, ele abriu-me os olhos! Sabemos que Deus não escuta os pecadores, mas escuta aquele que é piedoso e que faz a sua vontade. Jamais se ouviu dizer que alguém tenha aberto os olhos a um cego de nascença.  Se este homem não viesse de Deus, não poderia fazer nada” (vv. 30-33).

A Bíblia do Peregrino (p. 2582) comenta:  E o pobre cego ignorante dá uma lição: um agravante para teimosos, um consolo para os fiéis. Deus não escuta: “Se eu tivesse intenções perversas, o Senhor não me teria escutado” (Sl 66,18). O cego sabe como averiguar de onde vem Jesus: sua ação milagrosa aponta sem ambiguidade para Deus.

“Sabemos que Deus não escuta os pecadores, mas escuta aquele que é piedoso e que faz a sua vontade”; uma verdade comum (Is 1,15; Sl 66,18; 109,7; Pr 15,29; Jó 27,9; 35,13; Jo 16,23-27; 1Jo 2,21-22). Jo associa a característica grega da “piedade” com o ideal bíblico que insistia mais na obediência a Deus, “fazer sua vontade”.

“Jamais se ouviu dizer que alguém tenha aberto os olhos a um cego de nascença”. A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2065) comenta: Em Tb 7,7; 11,7-13; 14,1, não se tratava de um cego de nascença, como também não nos relatos dos evangelhos sinóticos (Mc 8,22-26; Mt 20,29-34; Mc 10,46-52; Lc 18,35-43). A passagem da cegueira para a visão simboliza a da incredulidade à fé, das trevas à luz. O sinal realizado por Jesus é, assim, um ato que ilustra o conjunto de seu ministério… Nova etapa do itinerário da fé: o ex-cego, que já reconheceu Jesus como profeta (9,17) declara que até então ninguém em Israel foi tão homem de Deus quanto Jesus; os títulos antigos já ficam ultrapassados.

A Bíblia de Jerusalém (p. 2011) comenta: O milagre do cego de nascença é, provavelmente, para o evangelista, um símbolo do batismo, novo nascimento pela água e pelo espirito (3,3-7). As analogias entre 3,1-21 e o cap. 9 são numerosas.

Os fariseus disseram-lhe: “Tu nasceste todo em pecado e estás nos ensinando?” E expulsaram-no da comunidade (v. 34).

Os doutores da lei recebem uma lição de um mendigo, coisa impossível ou inadmissível. Os fariseus confirmam o preconceito que os discípulos já expressaram em forma de pergunta em v. 2, e o excluem. A Bíblia do Peregrino (p. 2582) comenta:  Por falta de razões o desqualificam radicalmente: não tanto cego de nascimento quanto pecador (Sl 51,5).

Jesus soube que o tinham expulsado. Encontrando-o, perguntou-lhe: “Acreditas no Filho do Homem?” Respondeu ele: “Quem é, Senhor, para que eu creia nele?” Jesus disse: “Tu o estás vendo; é aquele que está falando contigo.” Exclamou ele: “Eu creio, Senhor”! E prostrou-se diante de Jesus (vv. 35-38).

Fé é adesão a Jesus e pode trazer desvantagens e perseguição nesta terra. Mas o Senhor sabe das nossas dificuldades e se aproxima mais, se revela mais e leva a adoração (prostração diante de Deus).

A Bíblia do Peregrino (p. 2582) comenta:  O último passo, consequência dos anteriores, é a plena iluminação espiritual (Jo 4,26), ou seja, a fé como reconhecimento e adesão à pessoa; ao indivíduo concreto que fez o milagre, ao que significa sua personalidade. Com enorme densidade se concentra em dois verbos: “tu o viste – creio”. E o narrador põe na boca do cego a confissão cristã de Jesus como Senhor (Kyrios).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2065) comenta: Como etapa final, o miraculado rematou o seu testemunho e sofreu a perseguição, prefigurando a situação vivida pela Igreja joanina (cf. 15,1-16,4a). Jesus vem-lhe ao encontro e se lhe revela como sendo o “Filho do Homem”, isto é, aquele que vem do céu para reunir os homens e elevá-lo à participação da vida de Deus (1,51; 3,14-15; 6,62-63).

Então, Jesus disse: “Eu vim a este mundo para exercer um julgamento, a fim de que os que não veem, vejam, e os que veem se tornem cegos.” Alguns fariseus, que estavam com ele, ouviram isto e lhe disseram: “Porventura, também nós somos cegos?” Respondeu-lhes Jesus: “Se fôsseis cegos, não teríeis culpa; mas como dizeis: ‘Nós vemos’, o vosso pecado permanece” (vv. 39-41).

Como no cap. 3 que já falou do nascimento pelo batismo, a cena termina com o discernimento, um julgamento (cf. 3,1-7.19-21). Em 3,17s “Deus enviou seu filho não para julgar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele”, mas “quem não crê, já está julgado”.

A Bíblia do Peregrino (p. 2582) comenta: Esses versículos arrematam o processo contrário: a cegueira teimosa das autoridades. Toda a atuação de Jesus é um grande processo porque obriga a tomar o partido. Formula-o num jogo de paradoxos. Vem dar a vista aos que não veem e querem ver até o fundo; e deixar cegos os que vendo não querem ver.

A Bíblia de Jerusalém (p. 2012) comenta: Os autossuficientes, que se fiam em suas próprias luzes (cf. vv. 24.29.34), em oposição aos humildes, dos quais o cego é o símbolo (cf. Dt 29,3; Is 6,9s; Jr 5,21; Ez 12,2).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2065s) comenta: A missão de Jesus provoca neste mundo uma verdadeira inversão das situações; é o que exprimem duas afirmações situadas em níveis diferentes: os cegos que prestam sua fé a Jesus são curados e chegam ao conhecimento da revelação; ao invés, os que se ufanam de serem esclarecidos (cf. 9,16.22.24.29.34) não se acham em condições de ver (14,9) aquele que traz a luz da salvação (9,5; 8,12); eles se encerram para sempre nas trevas e na perdição (cf. 3,17-21; Mc 4,11-12)… Se eles fossem cegos à maneira daquele que foi curado, não teriam pecado; mas os que se apoiam com presunção no que já possuem não prestarão sua fé a Jesus, o único a poder arrancá-los do pecado (cf. 3,36).

 A Nova Bíblia Pastoral (p. 1306) resume:  A intervenção em favor do cego esclarece mais uma vez que a ação de Jesus acontece em favor da gente mais necessitada, e isso define a missão que ele recebeu do Pai. Mas ao mesmo tempo esse gesto é sinal da própria luz que Jesus é para o mundo. Diante dele o cego viverá um processo que irá mais longe do que a cura que recebeu.

O caminho vivido por aquele que era cego o coloca em contato com muitos grupos da sociedade: os vizinhos ficam no plano da curiosidade; seus pais evitam tomar qualquer posição que os coloque em risco. Mas o mais importante é a discussão com os fariseus, as autoridades religiosas nesse momento. O gesto de Jesus em favor do cego os deixa paralisados, pois notam que a possibilidade de uma vida plena está sendo oferecida às pessoas sem passar pelo controle deles. Suas ideias sobre Deus e sobre a Lei acabaram por criar um sistema fechado, e quem não se submete a ele é colocado para fora: impedindo o acesso a Deus, querem tornar impossível a convivência com os demais. No entanto, justamente quando lançado fora é que aquele que era cego faz o decisivo encontro com Jesus. Ou seja, encontra a luz! O episódio do cego ilustra o itinerário que o grupo cristão é desafiado a fazer, para que seja autentico e pleno seu encontro com Jesus.

O episódio da cura do cego e do caminho de conflito que ele faz até o encontro com Jesus é a oportunidade para que fique explícita a cegueira daqueles que se julgam donos da religião, das Escrituras e de Deus.

 

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