26 de novembro de 2017 – 34º Domingo – Cristo Rei, Ano A

1ª Leitura: Ez 34,11-12.15-17

A 1ª leitura foi escolhida em vista do evangelho de hoje em que Cristo Rei se compara com um “pastor que separa as ovelhas dos cabritos” (Mt 25,32; cf. Ez 34,17). É uma metáfora antiga. No imaginário do Antigo Oriente, o rei é o pastor do seu povo e deve cuidar dele. Antes de se tornar rei de Israel, Davi era pastor de ovelhas (1Sm 16-17). O profeta Natã prometeu a permanência do trono a dinastia de Davi (2Sm 7), mas os reis que vieram depois não seguiram as leis de Deus. Na sua maioria praticaram idolatria, oprimiram o povo e fizeram alianças erradas com os povos vizinhos.

Os profetas Jeremias e Ezequiel criticaram os reis de Judá da sua época, chamando-os de maus pastores que só apascentam a si mesmos em vez de apascentar o povo. Fizeram política pessoal em vez de trabalhar pelo bem comum do povo, ao contrário exploraram e abandonaram o povo (Jr 2,8; 10,21; 23,1-3; Ez 34,1-10). Esta situação levou a destruição de Jerusalém (587 a.C.) e ao exílio na Babilônia onde Ezequiel escreve.

Assim diz o Senhor Deus: Vede! Eu mesmo vou procurar minhas ovelhas e tomar conta delas. Como o pastor toma conta do rebanho, de dia, quando se encontra no meio das ovelhas dispersas, assim vou cuidar de minhas ovelhas e vou resgatá-las de todos os lugares em que forem dispersadas num dia de nuvens e escuridão (vv. 11-12).

Também Deus como bom pastor é motivo frequente (cf. Ez 34,11s; 20,34; Sl 23; 79,13; 80,2; 95,7; 199,3; Is 40,11; cf. Mt 9,36; 15,24; 26,31; Jo 10).

O próprio Senhor Deus se apresenta como pastor que juntará suas ovelhas dispersas. De fato, os exilados são insistentemente (14 vezes) chamados de “minhas ovelhas”, o que enfatiza a teologia do povo eleito (37,23). Com estes vv. começam as promessas de salvação.

Já em 33,21, a notícia da destruição de Jerusalém (587 a.C.) chegou aos ouvidos de Ezequiel (que havia chegado à Babilônia na primeira deportação de 597 a.C.). Agora o profeta mudou de tom, não anunciará mais o desastre, mas uma mudança para o melhor: as “ovelhas dispersas” (os exilados) voltarão “de todos os lugares em que forem dispersadas num dia de nuvens e escuridão” (alusão à destruição de Jerusalém e ao castigo de Deus. Já Am 5,18 anunciava que o “dia do Senhor” seria “dia das trevas”).

Vou retirar minhas ovelhas do meio dos povos e recolhê-las do meio dos países para conduzi-las à sua terra. Vou apascentar as ovelhas sobre os montes de Israel, nos vales dos riachos e em todas as regiões habitáveis do país. Vou apascentá-las em boas pastagens e nos altos montes de Israel estará o seu abrigo. Ali repousarão em prados verdejantes e pastarão em férteis pastagens sobre os montes de Israel. Eu mesmo vou apascentar as minhas ovelhas e fazê-las repousar – oráculo do Senhor Deus (vv. 13-15).

Ez anuncia o fim do exílio. Javé Deus vai “retirar… do meio dos povos” o exilados e “recolhê-los” (cf. Is 66,18s; Mc 13,27p), para conduzi-los aos “montes de Israel”, à cidade santa (20,37-40). Promete paz (“abrigo”, “repousarão”) e prosperidade (“férteis pastagens”).

Libertado das autoridades que dele abusam, o povo pode reconhecer que a verdadeira autoridade é o próprio Deus, que projeta liberdade e vida para todos. Desse modo, nasce um novo discernimento político: o povo aprende que só poderá construir uma sociedade justa e fraterna quando souber escolher governantes que façam do projeto de Javé o alicerce do seu próprio projeto. João releu este capítulo e viu em Jesus a concretização do Deus pastor e do rei pastor que liberta a humanidade e a reúne em um só rebanho (Jo 10).

Vou procurar a ovelha perdida, reconduzir a extraviada, enfaixar a da perna quebrada, fortalecer a doente, e vigiar a ovelha gorda e forte. Vou apascentá-las conforme o direito Quanto a vós, minhas ovelhas – assim diz o Senhor Deus – eu farei justiça entre uma ovelha e outra, entre carneiros e bodes (vv. 16-17).

Como um bom rei-pastor, o próprio Deus vai à luta para resgatar uma ovelha (1Sm 17,34-36; cf. Mq 4,6s; Jr 23,1-4; Ez 34,11-16). O Senhor cumpre pessoalmente as tarefas de pastor num momento crítico para o rebanho. Nas etapas dessa ação pode-se descobrir o esquema clássico do êxodo transportado para o retorno do desterro: reunir-tirar-levar (vv. 12-13), chegando a terra, terminam os cuidados extraordinários e começam as tarefas ordinárias do pastor, suprindo o que não fizeram os maus pastores, “apascentar,… repousar em prados verdejantes” (vv. 14-15; cf. Sl 23), “procurar a ovelha perdida” (v. 16; cf. Lc 15,3-7p), “fortalecer a doente e vigiar a ovelha gorda e forte” (outra tradução: “eliminar a ovelha gorda e forte”).

Os vv. 17-22 são um acréscimo do pós-exílio. Já não se trata dos pastores, mas de indivíduos do rebanho. A condenação não só cai sobre os governantes (pastores), mas sobre os ricos e poderosos (“ovelha gorda e forte”) que oprimem os pobres (“ovelha magra”, vv. 20s). “Carneiros e bodes” desempenham o papel dos maus, como em Mt 25,31-46.

Os reinos divididos, Judá e Israel, serão reunidos e a aliança será renovada com um coração novo (36,24-28). Israel será livre da opressão e “ressuscitará” como povo (37,1-14). Deus não fará isso sozinho lá no céu, mas (res)suscitará na terra um pastor que apascentará as ovelhas, Davi (acréscimo pós-exílico: vv. 23s; cf. Jr 23,5). Ez não dispensa a constituição monárquica, porém, nunca chama o novo Davi de “rei”, apenas de “pastor”, “servo”, “príncipe” (34,23-31).

A Bíblia de Jerusalém (p. 1655) comenta o desenvolvimento da metáfora do pastor: A imagem do rei-pastor é antiga no patrimônio literário do Oriente. Jeremias aplicou-se aos reis de Israel, para lhes reprovar o mau cumprimento das suas funções (Jr 2,8; 10,21; 23,1-3), e para anunciar que Deus dará ao seu povo novos pastores, que o apascentarão na justiça (Jr 3,15. 23,4), e entre esses pastores um “germe” (Jr 23,5-6), o Messias. Ezequiel retoma o tema de Jr 23,1-6, que ainda será retomado mais tarde por Zc 11,4-17; 13,7. Ele reprova os pastores (aqui os reis e chefes leigos do povo) por seus crimes (vv. 1-10). Iahweh lhes tirará o rebanho que eles maltratam e se fará ele próprio o pastor do seu povo (cf. Gn 48,15; 49,24; Is 40,11; Sl 80,2; 95,7 e Sl 23); é o anúncio de uma teocracia (vv. 11-16): de fato, na volta do Exílio, a realeza não será restabelecida. É mais tarde que Iahweh dará ao seu povo (cf. 17,22; 21,32) um pastor da sua escolha (vv. 23-24), um “príncipe” (cf. 45,7-8.17; 46,8-10.16-18), novo Davi. A descrição do reinado desse príncipe (vv. 25-31) e o nome de Davi, que lhe é dado (ver 2Sm 7; cf. Is 11,1-9; Jr 23,5-6), sugerem uma era messiânica, quando o próprio Deus, por meio do seu Messias, reinará sobre o seu povo na justiça e na paz. Encontra-se neste texto de Ezequiel o esboço da parábola da ovelha perdida (Mt 18,12-14; Lc 15,4-7) e sobretudo da alegoria do Bom Pastor (Jo 10,11-18) que, aproximada de Ezequiel, aparece como reivindicação messiânica de Jesus. O Bom Pastor será um dos temas iconográficos mais antigos do cristianismo.

 

2ª Leitura: 1Cor 15,20-26.28

No cap. 15 da primeira carta aos Coríntios, o apóstolo Paulo relaciona a ressurreição de Cristo à ressurreição dos mortos em geral: “Se os mortos não ressuscitam, também Cristo não ressuscitou. E se Cristo não ressuscitou, ilusória é a vossa fé” (v. 16).

Na realidade, Cristo ressuscitou dos mortos como primícias dos que morreram (v. 20).

“Na realidade” (lit. “mas não”, refere-se à negação da ressurreição nos vv. anteriores, cf. vv. 12-19). Paulo afirma aqui a ressurreição de Cristo (da qual o apóstolo se vê como testemunha cf. vv. 4-8), como “primícias” (primeiros frutos da colheita, cf. Ex 23,16) de uma ressurreição que engloba a “todos” (v. 22) que morreram (cf. 1Ts 4,14). Em Cl 1,18 e Ap 1,5, Cristo é o “primogênito dos mortos”, tendo em tudo a primazia. Em Rm 8,11, Paulo atribui ao Espírito a ressurreição de Cristo e a dos nossos corpos mortais (cf. Ez 37,1-14).

Com efeito, por um homem veio a morte e é também por um homem que vem a ressurreição dos mortos. Como em Adão todos morrem, assim também em Cristo todos reviverão (vv. 21-22)

Como em Rm 5,12-21, Paulo faz um paralelo com Cristo e Adão (cf. vv. 45-49; em hebraico Adam não é um nome próprio, mas significa “ser humano/homem”). Por Adão (e Eva), o pecado começou a reinar e tem como consequência a morte para todos (porque todos pecaram); por outro homem, Jesus Cristo (Filho de Deus, Filho “do homem/Adão”) veio a graça, o perdão que redime da condenação, da pena da morte para o gênero humano; recupera o paraíso inaugurando a ressurreição dos mortos (cf. o jardineiro em Jo 20,15).

“Reviverão” (o mesmo verbo em Rm 4,17; 8,11; 1Pd 3,18; cf. Ez 37; Is 14-19).

Porém, cada qual segundo uma ordem determinada: Em primeiro lugar, Cristo, como primícias; depois, os que pertencem a Cristo, por ocasião da sua vinda (v. 23)

Paulo diferencia a ressurreição de Cristo que já aconteceu (“como primícias”) da ressurreição geral dos mortos que acontecerá só quando Jesus voltar no fim dos tempos, “por ocasião da sua vinda” (parusia em grego). A ressurreição no fim dos tempos era conceito tradicional (desde Dn 12,1-3, séc. II a.C.) e esperada pela maioria dos judeus (cf. Jo 11,23s). Os fariseus a defendiam, mas os saduceus a contestaram (cf. Mc 12,18-27p; At 23,6-8) e os filósofos gregos não aceitaram (At 17,32).

A ressurreição, que é a vitória sobre o mal, o pecado e morte, não pode ser anarquia ou caos, mas acontece (como na criação) “segundo uma ordem determinada: Em primeiro lugar Cristo, … depois, os que pertencem a Cristo.” Não é só a simples cronologia, mas também o critério da pertença a Cristo que determina a ressurreição.

E quem é que pertence a Cristo? Paulo deve pensar nos cristãos em geral (cf. 1Ts 4,14s), os consagrados (tornados “santos”) pelo Espírito no batismo que se tornaram “filhos de Deus” e “herdeiros do reino” (cf. Rm 8,14-17; cf. Mt 25,34). Pela carne e pelo sangue, também os judeus pertencem a Cristo (Rm 9,3-5). Podemos pensar também nos que praticam misericórdia (Mt 25,31-46), os bem-aventurados (Mt 5,3-12p), pobres (Lc 16,19-31), crianças (Mc 10,14s; Mt 18,1-4) etc.

Na hierarquia (ordem sagrada), os primeiros lugares caberiam aos apóstolos que seguiram Jesus e julgarão com ele as doze tribos de Israel (Mt 19,28). Entre eles o primeiro lugar é de Pedro, na chamada e na lista dos apóstolos, na profissão da fé, no testemunho do ressuscitado (cf. Mc 1,16-18; 3,16; 16,7; Mt 16,16-19; Lc 22,32; 24,34; At 2,14-41; Jo 20,3-8; 21,15-19), depois seriam Tiago e João (cf. Mc 1,18-20; 3,17; 5,37; 9,2; 13,3; 14,33; apesar de 10,35-40; mas At 12,2) ou o “discípulo amado” (Jo 13,24s; 19,26s; 20,3-8; 21,7.20-24) ou as mulheres (cf. a confissão de fé da Marta em Jo 11,27 e Maria Madalena, primeira testemunha da ressurreição, cf. Jo 20,1.11-18p).

Somente em Mt 27,52s narra-se uma ressurreição na hora da morte de Jesus: “Os túmulos se abriram e os corpos dos santos falecidos ressuscitaram. E saindo dos túmulos após a ressurreição de Jesus, entraram na Cidade Santa e foram vistos por muitos.” Trata-se de uma alusão a Ez 37,1-4, mas guarda-se a primazia da ressurreição de Jesus diante dos outros santos (talvez os profetas e justos, vítimas da violência, cf. Mt 23,29).

O primeiro mártir que derrama seu sangue pela fé em Cristo é o diácono Estêvão, morrendo com as mesmas palavras de Jesus (At 7,55-60), mas o primeiro que está no paraíso junto com Jesus é o ladrão arrependido na cruz (Lc 23,43: “hoje”). Ou seriam Moisés e Elias que apareceram ao lado de Jesus na transfiguração, uma cena que antecipa a ressurreição (Mc 9,1-9). E Abraão cujo seio é imagem do paraíso (Lc 16,22)? Ou será João Batista, o precursor; segundo Jesus, “dentro os nascidos de uma mulher não há um maior que ele, mas o menor no Reino de Deus é maior do que ele?” (Lc 7,28).

Parece que Paulo não pensava em Maria cujo nome nem se encontra nas suas cartas (apenas “mulher” em Gl 4,4). Para os católicos, a pessoa que mais pertence a Cristo é Maria que já foi levada ao céu em corpo e alma (dogma da assunção 1950). A tradição e devoção da Igreja afirmam: em primeiro lugar está Maria, “a primeira depois do Único (Deus)”. O Papa Francisco salienta que “Maria é mais importante do que os apóstolos”.

Em primeiro lugar entre os santos está a mãe de Jesus, Nossa Senhora; dela dependia a encarnação, foi através do seu consentimento (sim; Lc 1,38), que Jesus entrou no mundo. Dela o filho de Deus recebeu a carne humana, não de José que colaborou como pai adotivo (Mt 1; Lc 1). O DNA de Jesus é de Maria, que colaborou não apenas fisicamente (Lc 11,27s; Mc 3,31-35p), mas com sua fé, seu carinho, sua educação etc. 

Quando Jesus ressuscitou, ele levou seu corpo (sua carne, seu DNA), para onde? Ao céu, a eternidade. Poderia ficar a carne imaculada de Maria e assumida por Jesus na encarnação, apodrecer em um túmulo? Não, devia ser glorificada como a do Filho. Cristo ressuscitado, de corpo e alma subiu ao céu (Ascensão do Senhor), de Maria dizemos que não subiu, mas foi “elevada” ao céu, também “em corpo e alma” (cf. oração do dia da “Assunção”). Como a nossa mãe (Jo 19,25) e irmã (como criatura) alcançou desde já a salvação plena e completa, ela é sinal de esperança para nós criaturas incompletas e limitadas.

Pode se perguntar se ressuscitarão todos os mortos para comparecerem ao julgamento (Jo 5,29; At 24,15, cf. Sb 4,20-5,1; Dn 12,2s)? Ou apenas os bons? Mas aqui Paulo fala da participação da ressurreição gloriosa de Cristo, não do julgamento (cf. Fl 3,21).

A seguir, será o fim, quando ele entregar a realeza a Deus-Pai, depois de destruir todo principado e todo poder e força. Pois é preciso que ele reine até que todos os seus inimigos estejam debaixo de seus pés. O último inimigo a ser destruído é a morte (vv. 24-26).

Jesus pregava a vinda próxima do reino de Deus (Mc 1,14s); ele representava este reino na terra, porque era o “rei” (messias, em grego: Cristo) apesar da fraqueza aparente da cruz (“I.N.R.I”; cf. Jo 18,35-37). A primeira vinda foi na humildade (presépio, cruz; cf. 1Cor 1,18-25), a segunda vinda (parusia) será no triunfo do poder celestial no “dia do Senhor” (cf. 1,6-8; 5,5; 2Cor 1,14 etc.; cf. Am 5,18 etc.). “Destruir todo principado e todo poder e força”, estas três categorias designam todas as forças inimigas de Deus, angélicas e humanas (cf. 1Cor 1,26; Cl 1,16; 2,15; Ef 1,21; 1Pd 3,22).

“Pois é preciso que ele reine até que todos os seus inimigos estejam debaixo de seus pés”. Paulo cita aqui o Sl 110,1, um salmo messiânico (cf. Hb 1,13; 10,13 e Mc 12,35-37: Jesus é superior a Davi). Outro salmo também declara a vitória sobre os inimigos (Sl 2; cf. 1ª leitura).

Desde sua ressurreição, Jesus reina com toda autoridade (Mt 28,18; Rm 1,4). O último inimigo, a própria morte (personificada) será destruída em Ap 20,14; 21,4 (cf. Is 25,8; Ap 1,18).

A Bíblia do Peregrino (p. 2764) comenta: Paulo segue e amplia o esquema oferecido por Sl 110,1 …; entronização atual, duração “até que”, expansão do reinado, com a vitória sobre os inimigos. Paulo distingue as etapas. Primeira, a ressurreição de Cristo já acontecida. Segunda, a expansão a todos os cristãos na parusia. Terceira, a submissão de tudo com a vitória sobre os inimigos, até o último.

Nossa liturgia omite o v. 27, a citação de Sl 8,7 (Deus “pôs tudo debaixo de seus pés”).

E, quando todas as coisas estiverem submetidas a ele, então o próprio Filho se submeterá àquele que lhe submeteu todas as coisas, para que Deus seja tudo em todos (v. 28).

Tudo está submisso ao Filho (cf. Sl 8,5-8; Hb 2,8; Ef 1,20-22). Deus Pai está acima de tudo, também de Cristo (Jo 14,28). A Deus Pai, o Filho Jesus se submete, embora sendo igual a Deus (cf. Concílio de Niceia 325 d.C.), ele é Filho e Servo de Deus (cf. Fl 2,5-11; Jo 10,30; Mc 10,45), “para que Deus seja tudo em todos” (v. 28b; cf. Cl 3,11: Cristo).

Evangelho: Mt 25,31-46

O último domingo do Tempo Comum é dedicado a Cristo Rei. No ano litúrgico A, ouvimos a parábola do juízo final. Deste modo, é a continuação exata dos evangelhos dos domingos anteriores que foram tirados do quinto discurso de Mt (caps. 24-25) cujo tema é a escatologia (doutrina das últimas coisas). A parábola do juízo final é a conclusão própria de Mt neste discurso.

A pergunta escatológica “o que será no fim do mundo, ou no fim da nossa vida?” sempre preocupava a humanidade. Teremos que prestar conta sobre a nossa conduta ou fará nenhuma diferença, a maneira como tratamos os outros? Haverá um julgamento próprio para os cristãos? Ou Deus tratará todo mundo igual?

No final do discurso sobre a parusia (volta de Cristo no fim do mundo, caps. 24-25), o evangelho de Mt responde a estas perguntas com uma parábola de Jesus, ou melhor, com um discurso imaginado aos discípulos, uma descrição profética do juízo final. Aliás, é a única cena dos quatro evangelhos que mostra qual será o conteúdo do juízo final. Como antecedentes literários pode-se comparar Jr 8,32-35; Dt 27,12-18,14; Is 24,21-22; 65,13-15; Dn 12,2; Sb 4,20; 5,16.

(Naquele tempo, disse Jesus a seus discípulos:) Quando o Filho do Homem vier em sua glória, acompanhado de todos os anjos, então se assentará em seu trono glorioso. Todos os povos da terra serão reunidos diante dele, e ele separará uns dos outros, assim como o pastor separa as ovelhas dos cabritos. E colocará as ovelhas à sua direita e os cabritos à sua esquerda (vv. 31-33).

O “Filho do homem” (cf. Dn 7,13s) chegará “em sua glória” (16,27; 19,28); é Jesus na sua vinda (parusia) no fim do mundo (24,30-31.37.39.44). Nas parábolas do casamento, era o “filho do rei” (22,2; cf. 25,1-12), agora é o “Rei” (vv. 34 etc.) a quem o Deus Pai confiou o julgamento. Na monarquia absoluta, o rei era também juiz supremo (cf. Sl 72,1); não existia ainda a democracia atual com sua divisão dos três poderes (legislativo, executivo e judiciário).

Acompanhado de sua corte “de todos os anjos, então se assentará em seu trono glorioso” (v. 31; cf. Dn 7,9-10; Dt 33,2; Zc 14,5; Jd 14-15) para um grande julgamento de “todos os povos da terra” (v. 32). Este juízo final, segundo Jl 4,11-12,16, acontecerá no vale de Josafá perto de Jerusalém.

“Assim como um pastor” (imagem para o rei, líderes políticos ou religiosos, cf. Ez 34 e Davi em 1Sm 16-17) “separa” (cf. Lv 20,25; Is 56,3) “as ovelhas dos cabritos” (cf. Ez 34,17; Ex 12,5). “As ovelhas à sua direita” (lado preferido, cf. 26,64; Sl 110,1; Dt 27,12-13); está preferência é transcultural: a mão direita é considerada a mais hábil, pura e honesta; com ela se come, jura, saúda, escreve e fecha contratos, enquanto com a mão esquerda se fazia as coisas menos nobres. Na linguagem da política atual, porém, os termos “esquerda” e “direita” têm outra origem: na assembleia dos deputados franceses no século XVII, ao lado direito sentavam os conservadores e ao lado esquerdo, os que queriam mudanças.

Então o Rei dirá aos que estiverem à sua direita: “Vinde benditos de meu Pai! Recebei como herança o Reino que meu Pai vos preparou desde a criação do mundo! Pois eu estava com fome e me destes de comer; eu estava com sede e me destes de beber; eu era estrangeiro e me recebestes em casa; eu estava nu e me vestistes; eu estava doente e cuidastes de mim; eu estava na prisão e fostes me visitar” (vv. 34-36).

O critério da separação não são coisas excepcionais (cf. 7,22), mas as seis “obras da misericórdia” que se pode ilustrar com textos do AT e do NT (por ex. Is 58,6s; Pr 19,17; Jó 22,6-7; 31,31s; Eclo 7,32-35; Mt 5,7; 9,13; 12,7; 23,23): ajudar os famintos e os sedentos (10,42; Lc 3,11; 14,12-14; At 6,1-3; Rm 12,20; 1 Cor 11,33; cf. Jo 4,7; Sl 42,3), exercer a hospitalidade (10,40-42; Gn 18,2ss; Lv 19,34; Rm 12,13; Cl 4,10; 1Pd 4,9; Hb 13,2; cf. Mt 10,14; Lc 9,53s), vestir pessoas necessitadas (Tb 4,16; Ez 18,16; Lc 3,11; 15,22; At 9,36.39; Tg 2,15-16), cuidar dos doentes (Lc 10,33-35; Mc 6,13; Tg 5,14).

Divergindo do judaísmo, Jesus não fala aqui da assistência à viúva nem da educação dos órfãos (talvez para não confundir o sentido amplo de “menores” em v. 40; cf. 18,1-5; Mc 9,36s; Tg 1,27), nem do sepultamento dos mortos (cf. 26,10; Tb 1,17.19; Mc 15,42-47; At 8,2), mas menciona, em acréscimo, a visita aos prisioneiros (cf. 2Tm 1,16-18; Hb 13,3).

Na tradição cristã das obras da misericórdia, Lactâncio (250-320) acrescentou a sétima: “enterrar os mortos” (cf. Tb 1,17–20), St.º Agostinho (354-431) introduziu o paralelo entre as “obras espirituais” e as corporais; S. Tomás de Aquino (1225-1274) sistematizou-as. As sete obras espirituais da misericórdia (CIC 2447) são: aconselhar os indecisos, ensinar os ignorantes, admoestar os pecadores, consolar os aflitos, perdoar as ofensas, suportar com paciência as pessoas molestas, rezar a Deus pelos vivos e defuntos. Na arte cristã, as sete obras da misericórdia foram apresentadas contrastando os sete pecados capitais (orgulho, gula, avareza, luxúria, ira, inveja e preguiça).

O teólogo W. Kasper atualizou as obras da misericórdia (físicas, psíquicas, sociais, culturais). O Papa Francisco declarou um Ano da Misericórdia (08.12.2015-20.11.2016). Como o papa enfatiza: Quando tocamos nas feridas dos pobres e doentes, tocamos nas chagas de Cristo que se fez pobre (cf. 2Cor 8,9).

Então os justos lhe perguntarão: “Senhor, quando foi que te vimos com fome e te demos de comer? com sede e te demos de beber? Quando foi que te vimos como estrangeiro e te recebemos em casa, e sem roupa e te vestimos? Quando foi que te vimos doente ou preso, e fomos te visitar?” Então o Rei lhes responderá: “Em verdade eu vos digo, que todas as vezes que fizestes isso a um dos menores de meus irmãos, foi a mim que o fizestes!” (vv. 37-40).

Jesus identifica-se com os “menores de meus irmãos” (v. 40) e com os “mais pequenos” (superlativo de menores em v. 45), que não são mais os discípulos de 10,40-42, mas todas as pessoas necessitadas.

Depois o Rei dirá aos que estiverem à sua esquerda: “Afastai-vos de mim, malditos! Ide para o fogo eterno, preparado para o diabo e para os seus anjos. Pois eu estava com fome e não me destes de comer; eu estava com sede e não me destes de beber; eu era estrangeiro e não me recebestes em casa; eu estava nu e não me vestistes; eu estava doente e na prisão e não fostes me visitar”. E responderão também eles: “Senhor, quando foi que te vimos com fome, ou com sede, como estrangeiro, ou nu, doente ou preso, e não te servimos?” Então o Rei lhes responderá: “Em verdade eu vos digo, todas as vezes que não fizestes isso a um desses pequeninos, foi a mim que não o fizestes!” Portanto, estes irão para o castigo eterno, enquanto os justos irão para a vida eterna (vv. 41-46).

Como em Dt 27-28, a sentença é pronunciada em forma de benção e maldição: “benditos” (v. 34; cf. Sl 115,15; Is 65,23) e “malditos” (v. 41; cf. Jr 17,5; Sl 37,22). A sentença é “herdar o Reino” (v. 34; cf. 1Cor 6,9; 15,50; Gl 5,21; cf. Lc 12,82) ou o “castigo eterno” (v. 46), isto é o “fogo eterno” (v. 41; 18,8; cf. 13,40-43; Is 66,24; Dn 7,11; 12,2; Ap 20,10).

A cena nos faz compreender que muitos, mesmo sem conhecer a pessoa de Jesus, se ajustam aos valores dele, no esfera do amor ao próximo.

Então há salvação fora da igreja? O Concilio Vaticano II afirma: quem não conhece Jesus, mas segue a sua própria consciência (reconhecendo a lei natural, por ex. a Regra de Ouro em Mt 7,12) pode ser salvo, sim (cf. LG 16; cf. CIC 846-848). Então a fé não importa no juízo final? Importa, sim (cf. 10,32s), mas fé cristã significa compromisso com a pessoa concreta de Jesus, e onde está Jesus? Só no céu? Através da sua encarnação e sua cruz, ele se identifica com os seres humanos que sofrem, os pobres e necessitados, marginalizados por uma sociedade baseada na riqueza, no poder e no bem-estar egoísta.

Por isso, o julgamento será sobre a realização de uma prática de justiça em favor dos pobres, conforme a vontade do Pai (cf. 5,3; 7,21). Esta prática central da fé, desde o início apresentada por Mt como cerne da atividade de Jesus, é “cumprir toda a justiça” (3,15). A justiça de Deus é a misericórdia em Jesus. Ele será nosso juiz e espera que nós tenhamos a mesma opção preferencial pelos pobres que ele demonstrou por sua vida. “Bem-aventurados os misericordiosos, eles alcançarão misericórdia” (5,7).

O site da CNBB comenta: Jesus nos mostra no Evangelho de hoje que a verdadeira religião não é aquela que é marcada por ritualismos e cumprimento de preceitos meramente espirituais, afinal de contas ele não nos perguntará no dia do julgamento final se nós procuramos cumprir os preceitos religiosos, mas sim se fomos capazes de viver concretamente o amor. É claro que a religiosidade tem sentido, principalmente porque é através do relacionamento com Deus que recebemos as graças que nos são necessárias para a vivência concreta do amor, mas a religiosidade sozinha, desvinculada da prática do amor, é causa de condenação e não de salvação.

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