27 de Fevereiro de 2019, Quarta-feira: Jesus disse: “Não o proibais, pois ninguém faz milagres em meu nome para depois falar mal de mim. Quem não é contra nós é a nosso favor” (vv. 39-40).

Leitura: Eclo 4,12-22 (grego 11-19)

Continuamos na leitura de Eclo. Depois de ter falado, o mestre Jesus Ben Sirac, autor do livro em hebraico (entre 190 e 165 a.C.), cede a palavra à Sabedoria personificada, que pronuncia seu primeiro discurso (imitando Pr 3; 8; 9). A numeração dos versículos difere por causa da tradução grega do neto de Ben Sirac (cf. comentário de segunda-feira passada).

A sabedoria comunica a vida a seus filhos e acolhe os que procuram (v. 12).

A Sabedoria é aqui personificada, como como mãe que educa os filhos (cf. Pr 1,23-25; 8,12-21; 9,1-6). O ensinamento dela não é puramente teórico, mas incita e exorta.

“Comunica a vida”, hebraico: educa. Mas o verbo grego, segundo outros empregos no texto siríaco, não fala de educação; significa enobrecer, engrandecer alguém. Os “filhos” da sabedoria são os seus discípulos que a estudam e a praticam (cf. Mt 11,19p; Lc 7,35). Como o mestre judaico quem acolhe seus discípulos (cf. 2,1; 3,1) que o procuram, na academia (Ben Sirac administrava uma, cf. 51,23-30).

Os que a amam, amam a vida; os que a procuram desde manhã cedo, serão repletos de alegria pelo Senhor. Quem a ele se apega, herdará a glória; para onde for, Deus o abençoará. Os que a veneram, prestam culto ao Santo; pois Deus ama os que a amam (vv. 13-15).

Ainda fala o mestre (a versão grega o põe na boca da Sabedoria, na primeira pessoa). Os “filhos” (v. 12) da sabedoria personificada são “os que a amam, … procuram, … se apegam,… a veneram” (vv. 12-14) e, por isso, recebem grandes coisas: “vida… alegria… glória… e benção de Deus” (vv. 13-14; cf. Pr 3,16-18.35; Sb 6,17).

Estes três versículos mostram passos do aprendizado: o primeiro é o amor e interesse (Sb 7,10, “procuram desde manhã cedo”, cf. Is 50,4), segue-se a busca com êxito, depois vem a constância, “se apega” (Pr 3,18), e assim se chega ao serviço estável. Este tem algo de sacerdotal,“culto ao Santo”. Deus toma como feito a si o que se faz pela Sabedoria (Sb 7,28).

No início desta primeira sequência está o ser humano que procura e ama a sabedoria, no final, é Deus que o ama (v. 15). Mas o que é a sabedoria? Ela se apresenta como algo próprio, mas está intimamente ligada a Deus, como uma forma do agir divino. É Deus que dá a sabedoria e se identifica com ela: “Os que a veneram, prestam culto ao Santo” (v. 15).

O amor à Sabedoria soa muito parecido ao grego filo-sofia, mas o tradutor emprega o verbo agapein, usado no NT para o amor a Deus e ao próximo.

Quem a escutar, julgará as nações; quem a ela se dedicar, viverá em segurança. Se alguém confiar nela, vai recebê-la em herança; e na sua posse continuarão seus descendentes. No começo, ela o acompanha por caminhos contrários, trazendo-lhe temor e tremor; começa a prová-lo com a sua disciplina, até que ele a tenha em seus pensamentos e nela deponha a sua confiança. Então voltará a ele em linha reta, o confirmará e lhe dará alegria, lhe revelará os seus segredos e lhe dará o tesouro da ciência e da compreensão da justiça. Se, porém, se desviar, ela o abandonará e o entregará às mãos de seu inimigo (vv. 16-22).

Na segunda parte (vv. 16-22), a sabedoria fala em primeira pessoa (imitando Pr 1,22-33; 8,1-9,18): “Quem me escutar, …”  (no texto hebraico, v. 15); o texto litúrgico segue as traduções grega e latina que continuam na terceira pessoa: “Quem a escutar,…” (v. 16 no texto grego). O v. 17 não existe no texto hebraico.

Aqui começa seu breve discurso, prometendo o resultado final: julgar com equidade (conforme o hebraico; o grego tem “as nações”), vida em “segurança” e “descendentes” sábios (vv. 16-17), mas “no começo, ela o acompanha por caminhos contrários, trazendo-lhe temor e tremor” (vv. 18-19). Seria mais fácil seguir o conselho dos ímpios e andar pelo caminho mais largo dos pecadores (cf. Sl 1)?

Mas Jesus adverte: “Entrem pela porta estreita, porque é larga a porta e espaçoso o caminho que levam para a perdição, e são muitos os que entram por ela! Como é estreita a porta e apertado o caminho que levam para a vida, e são poucos os que a encontram!” (Mt 7,13s). Eclo afirma que superando as provações com esta disciplina, a sabedoria “voltará a ele em linha reta… dará alegria, … o tesouro da ciência e da compreensão da justiça” (vv. 20-21).

A Bíblia do Peregrino (p. 1582s) comenta os vv. 18-22: O breve discurso se desdobra numa parte positiva e outra negativa. A primeira descreve o aprendizado como caminhada pelo deserto, tempo clássico das provas (Ex 16,4; 20,20; Dt 8,2) e da revelação divina. A Sabedoria parece desempenhar a função do “anjo do Senhor”, mediador e guia: Ex 23,23; 32,34. A segunda parte retoma termos da pregação deuteronômio sobre a lei.

No entanto, o homem é livre, e para sua própria frustração, pode recusar o caminho que a sabedoria indica: “Se, porém, se desviar, ela o abandonará e o entregará as mãos de seu inimigo” (v. 22). O texto hebraico acrescenta: “se de mim se afastar, mandá-lo-ei embora e o deixarei à mercê dos ladrões”.

Evangelho: Mc 9,38-40

Não só o desejo de conseguir os primeiros lugares e querer ser o primeiro entre os discípulos (cf. evangelho de ontem) é um obstáculo para entender e seguir o caminho de Jesus, mas também o fechamento e a falta de generosidade como demonstra a continuação do Evangelho hoje.

João disse a Jesus: “Mestre, vimos um homem expulsar demônios em teu nome. Mas nós o proibimos, porque ele não nos segue” (v. 38).

A capacidade de cura em Jesus ganhou tanta fama que seu nome se tornou uma palavra mágica que outras pessoas ou grupos usavam para suas atividades de cura e exorcismo (cf. At 19,13s). O apóstolo João reclama de um homem que expulsava demônios em nome de Jesus: “Mas nós o proibimos, porque não ele não nos segue” (v. 38). O fato de ser a única vez nos quatro evangelhos que o apóstolo “João” fala aqui sozinho, pode ser mera coincidência, mas existe no quarto evangelho uma tendência dualista, ou seja, fechar-se no seu mundo espiritual contra um mundo mau de fora.

Jesus disse: “Não o proibais, pois ninguém faz milagres em meu nome para depois falar mal de mim. Quem não é contra nós é a nosso favor” (vv. 39-40).

Jesus não resolve o problema, mas dá uma regra generosa: “Não o proibais, pois ninguém faz milagres em meu nome para depois falar mal de mim” (v. 39). Quem se refere ao nome de Jesus, está ligado a ele de certo modo, mesmo não pertencendo ao grupo dos apóstolos. É um apelo à tolerância que nem sempre foi ouvido na história da Igreja. Quantas vezes foram proibidos, condenados e até mortos diversos grupos ou pessoas que não seguiram em tudo à doutrina oficial.

Jesus conclui: “Quem não é contra nós, é a nosso favor”, mas também diz em Mt 12,30: “Quem não está comigo, está contra mim. E quem não recolhe comigo, espalha.” Não há contradição, porque em Mc, se fala da tolerância na Igreja (“nós”), enquanto em Mt se trata da mediação única da pessoa de Jesus (“comigo”), único caminho ao Pai (cf. Jo 14,6).

Na visão de Jesus, a Igreja oficial não deve ser uma panela intolerante que exclui e proíbe tudo que não está 100% sob seu controle. Papa Francisco fala que a Igreja não é uma alfândega que quer controlar tudo. O nome (e a pessoa) de Jesus não é uma marca registrada pertencente somente à Igreja Católica, mas pertence à humanidade, e o Espírito sopra onde ele quer, não só onde a Igreja quer. É necessário definir a doutrina para maior clareza e evitar confusão, mas há de reconhecer também que existem elementos de verdade e santidade em outras religiões, embora somente na Igreja Católica encontrem-se todos os meios para salvação. Assim falam os documentos do Concílio Vaticano II (LG, UR, NA) que nos animam no caminho do diálogo inter-religioso (entre diversas religiões) e ecumênico (entre aqueles que creem em Cristo, ou seja, Igrejas cristãs). A existência de outras igrejas e religiões pode nos desafiar e incomodar, mas por outro lado, a liberdade e a concorrência num mercado (estado) livre estimulam também para melhor qualidade. A Igreja Católica não se deve subestimar, mas também não acomodar na tradição. Jesus quer liberdade e tolerância, generosidade e qualidade.

O site da CNBB comenta: Uma das maiores dificuldades que podemos encontrar para a compreensão da ação divina no mundo encontra-se no fato de querermos submetê-la aos nossos critérios de inteligibilidade, principalmente no que diz respeito à religião institucional. O que acontece é que muitas vezes o agir divino fica vinculado a critérios meramente humanos ou a ritualismos que estão mais para prática de magia, alquimia e bruxaria do que para um relacionamento filial, de confiança e entrega. Outras vezes, esse agir divino é condicionado ao cumprimento de princípios legais que determinam se Deus pode agir ou não. Devemos nos lembrar que o Senhor é Deus e não nós.

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