27 de janeiro de 2017 – Sexta-feira, 3ª semana

 

Leitura: Hb 10,32-39

Depois da parte central do seu sermão sacerdotal (7,1-10,18), o autor de Hb começou exortar os destinatários que estavam desanimados por causa das perseguições. Mas eles têm o privilégio de participar do sumo sacerdócio de Cristo e ter acesso a Deus num “caminho novo e vivo” (v. 20) e devem perseverar com fé e coragem.

Lembrai-vos dos primeiros dias, quando, apenas iluminados, suportastes longas e dolorosas lutas. Às vezes, éreis apresentados como espetáculo, debaixo de injúrias e tribulações; outras vezes, vos tornáveis solidários dos que assim eram tratados. Com efeito, participastes dos sofrimentos dos prisioneiros e aceitastes com alegria o confisco dos vossos bens, na certeza de possuir uma riqueza melhor e mais durável (vv. 32-24).

Depois de alertar seriamente aqueles que depois da sua conversão e seu batismo continuavam pecando (“castigo bem mais severo merecerá aquele que pisou o Filho de Deus, que profanou o sangue da aliança” v. 29; cf. 6,4-6), o autor lembra o passado da comunidade e a elogia bastante. Lembra os “primeiros dias, quando apenas iluminados”, iluminados pelo batismo (6,4; Ef 5,14) e animados pela esperança do futuro, “suportastes longas e dolorosas lutas, … injurias e tribulações, … sofrimentos dos prisioneiros e aceitastes com alegria o confisco dos nossos bens na certeza de possuir uma riqueza melhor e mais durável” (vv. 32-34; cf.13,3; Mc 13,9; Mt 5,11-12; 2Cor 4,8-9; 6,4-10; 1Ts 2,14).

Não abandoneis, pois, a vossa coragem, que merece grande recompensa. De fato, precisais de perseverança para cumprir a vontade de Deus e alcançar o que ele prometeu. Porque ainda “bem pouco tempo, e aquele que deve vir, virá e não tardará. O meu justo viverá por causa de sua fidelidade, mas, se esmorecer, não encontrarei mais satisfação nele.” Nós não somos desertores, para a perdição. Somos homens da fé, para a salvação da alma (vv. 35-39).

No momento atual e no futuro a comunidade não deve desanimar nem relaxar (cf. vv. 23-25), mas continuar com “fé” (v. 39; cf. v. 22), “coragem” (v. 35) e “perseverança para cumprir a vontade de Deus e alcançar que lhe prometeu” (vv. 35-36). O tema da “perseverança” (paciência, persistência) se desenvolverá em 12,1-13. As provações não devem ser para os cristãos motivo de desânimo, mas de esperança mais fundado (cf. v. 23; 11,1).

O tempo de provação não durará muito, segundo uma citação dos profetas Is 26,20 e Hab 2,3s: “Bem pouco tempo e aquele que deve vir virá e não tardará, o meu justo vivera por sua fidelidade.” Is 26,20 é um texto escatológico que recomenda refugiar-se até que passe o castigo, esperando a libertação próxima. O autor de Hb aplica Hb 3,3-4 à “fidelidade” (constância), mas Paulo o aplica à fé em Rm 1,17 e Gl 3,11 “O justo viverá por sua fé”.

O encontro com o Senhor que vem é a “grande recompensa” (v. 35) para os que perseverem e não se tornarem “desertores” voltando atrás para sua perda. O último versículo desta leitura poderia ter sido um lema para o Ano da Fé (2013): “Somos homens da fé, para salvação da alma (vida)” (cf. 1Pd 1,9).

Evangelho: Mc 4,26-34

Com duas pequenas parábolas, Jesus conclui seu discurso de parábolas em Mc 4 em que compara o reino de Deus com a agricultura da Galileia.

Jesus disse à multidão: “O Reino de Deus é como quando alguém espalha a semente na terra. Ele vai dormir e acorda, noite e dia, e a semente vai germinando e crescendo, mas ele não sabe como isso acontece. A terra, por si mesma, produz o fruto: primeiro aparecem as folhas, depois vem a espiga e, por fim, os grãos que enchem a espiga. Quando as espigas estão maduras, o homem mete logo a foice, porque o tempo da colheita chegou” (vv. 26-29).

Como na primeira parábola do semeador (vv. 1-9), o desenvolvimento da semente é o ponto de comparação. Mas desta vez descreve-se o comportamento do semeador de trigo. Depois do plantio, a semente germe e cresce independentemente do agricultor. A semente contém um princípio de desenvolvimento, uma força interior, secreta: o agricultor “não sabe como isso acontece” (v. 27c). Bem, hoje se sabe muito mais, e através da ciência e tecnologia (agronomia) usam-se adubos, fertilizantes, defensivos e até modifica-se a estrutura genética das plantas (transgênicas). Em Mc, o agricultor, depois de semear, só “vai dormir e acorda, noite e dia” (v. 27a). É porque “a terra, por si mesma produz o fruto… Quando as espigas estão maduras, o homem mete logo a foice, porque o tempo da colheita chegou” (vv. 28-29).

Parece que os outros evangelistas, Mt e Lc, não concordaram com esta parábola, porque Mt a transforma em outra parábola, a do joio e do trigo: Como em Mc, o lavrador não deve interferir: não arrancar o joio para não prejudicar o trigo (Mt 13,24-30), ou seja, reconhecemos que existem pecadores no mundo e na Igreja, mas não devemos usar de violência contra eles (fanatismo, guerras santas, inquisição, …). No final dos tempos (na colheita), Deus separará o joio (os maus) do trigo (dos bons; cf. Mt 13,36-43). Lc omitiu a parábola de Mc por completo, talvez achando que promovesse a preguiça, ou seja, o “ócio” da elite enquanto o trabalho era para os escravos, o “neg-ócio” (Lc 12,16-21 conta a parábola de um rico fazendeiro).

Hoje podemos descobrir o valor da parábola da Mc de novo. Mc, ou melhor, o próprio Jesus que trabalhava com as próprias mãos, não quer promover a preguiça, mas mostrar que devemos confiar (ter fé) na palavra (semente) de Deus que criou o mundo e atua de maneira irresistível e misteriosa em Jesus (cf. Gn 1; Jo 1,1-18). A atitude certa é ter fé e esperar com serenidade até a colheita (julgamento de Deus). Não precisa ficar nervoso e precipitar-se. “Tudo tem o seu tempo” (Ecl 3).

Nem Deus criou o mundo em um só dia; tudo o que é bom precisa do seu tempo. Mas hoje a propaganda consumista nos leva a um imediatismo que afeta até as relações humanas e destrói o meio ambiente. O capitalismo coloca o lucro acima das pessoas e da natureza. Só funciona com a economia sempre crescendo. Mas o que é crescimento e o que é desenvolvimento? Se a economia cresce desrespeitando os limites da natureza, é como um câncer que crescendo destrói a própria vida. Neste sentido, a economia do índio que não produz commodities é melhor, porque não destrói a base da vida.

Em 2013, no Fórum Econômico Mundial (FEM) em Davos (Suíça), se colocou na pauta pela primeira vez, que a maior ameaça à economia global serão os custos financeiros das mudanças climáticas. “Duas tempestades – ambiental e econômica – estão a caminho de uma colisão. Se não alocarmos os recursos necessários para mitigar o crescente risco de eventos climáticos severos, a prosperidade global para futuras gerações pode ser ameaçada. Líderes políticos, líderes empresariais e cientistas precisam se unir para administrar esses riscos complexos”, comentou John Drzik, diretor executivo do FEM. A parábola nos ensina que existem outros valores do que só trabalho e consumo desenfreados num desenvolvimento insustentável. Não é só uma questão econômica, mas ética.

E Jesus continuou: “Com que mais poderemos comparar o Reino de Deus? Que parábola usaremos para representá-lo? O Reino de Deus é como um grão de mostarda que, ao ser semeado na terra, é a menor de todas as sementes da terra. Quando é semeado, cresce e se torna maior do que todas as hortaliças, e estende ramos tão grandes, que os pássaros do céu podem abrigar-se à sua sombra” (vv. 30-32).

A segunda parábola que ouvimos hoje é a última do discurso de Mc 4, mas foi transmitida também pela fonte Q (coleção antiga de palavras que se preservou em partes de Mt e Lc) junto com outra parábola pequena, a do fermento que a mulher mistura com uma porção maior de farinha (Mt 13,31-33; Lc 13,18-21). Como o grau de mostarda e o fermento, o reino de Deus tem um começo modesto, mas um grande desenvolvimento.

O grão de mostarda tem um tamanho menor que 1 mm, mas a planta madura pode alcançar uma altura de 4 metros nas hortas da Galileia e “estende ramos tão grandes que os pássaros do céu podem abrigar-se à sua sombra” (v. 32b; cf. Ez 17,23; Dn 4,9.18). Is 5 comparou Israel com uma videira (cf. Jo 15; Mc 12,1-9p); Ez 17 comparou o povo de Deus com uma árvore replantada. Dn 4 comparou o império babilônico de Nabucodonosor com uma “árvore… cuja grandeza chegou até o céu”, e os pássaros seriam as outras nações que se abrigam nela. Mas o Senhor mesmo o destronará e plantará um broto “sobre um alto monte de Israel. Ele deitará e produzira frutos do modo que à sua sombra habitará toda espécie de pássaros” (Ez 17,23). Deus como rei já era celebrado em tempos antigos (cf. Ex 15,18; Nm 23,21; Sl 47; 93; 96–99; cf. Sl 95; 24; 29; Is 52,7 etc.), mas o termo próprio “reino de Deus” só aparece neste contexto tardio do AT (cf. Dn 2,44; 4,14.31; 7,13-14; Sb 10,10).

A novidade de Jesus é que não se inaugure o reino de Deus num grande evento apocalíptico (cf. Mc 13,7-5.10.24-27.32), mas já começa pequeno, já está perto e no meio de nós (cf. Mc 1,15; Lc 17,20-21) na pessoa de Jesus Cristo, no cotidiano da vida cristã.

Sem confundir o reino de Deus com a Igreja, podemos afirmar que o começo modesto e o crescimento enorme se verificaram de certo modo: Um menino pobre em Belém estava no início de um movimento que evoluiu de doze apóstolos na periferia do Império Romano para uma organização internacional (Igreja Católica) que some mais de um bilhão de pessoas e junto com outros “ramos” (igrejas ortodoxos, protestantes,…) é um terço da população do planeta (dois bilhões de cristãos).

Podemos tirar um resumo destas duas parábolas e do discurso todo. Para fazer parte do reino de Deus precisa ter abertura, serenidade e confiança (fé) na Palavra de Jesus que cresce com uma força misteriosa apesar de parecer insignificante, pequena (semente de mostarda), sem ter sucesso imediato (o agricultor semeia e sabe aguardar até a colheita). Nunca devemos desprezar o pequeno, o humilde, o menor (cf. 9,41-42; 10,13-16; Mt 10,42; 25,31-46; Lc 1,48.52; 2,12; Jo 1,46; …).

Jesus anunciava a Palavra usando muitas parábolas como estas, conforme eles podiam compreender. E só lhes falava por meio de parábolas, mas, quando estava sozinho com os discípulos, explicava tudo (vv. 33-34).

O final do evangelho de hoje é a conclusão do discurso. “Jesus só lhes falava em parábolas” (v. 34a). As multidões só entendem parábolas, metáforas ou histórias do seu cotidiano (como hoje preferem novelas na TV). A Palavra de Deus vem do céu (o espírito é universal, cf. Jo 3,8; At 2), mas sempre se adapta (encarnação, inculturação) às limitações dos seres humanos de certa época, cultura ou região da terra, “conforme eles podiam compreender” (v. 33b). Assim Jesus falava em parábolas agrícolas para os pobres da Galileia. Depois, para as comunidades das cidades greco-romanas, o apóstolo Paulo fazia discursos mais sofisticados (cf. At 17,16-34) e escreveu suas cartas, as vezes difíceis de entender, como admite a própria Bíblia (2Pd 3,16s)

Nós devemos traduzir a Palavra de Deus não somente para nossa língua, mas adaptar à nossa situação e aos nossos conceitos atuais, para não fazer leitura fundamentalista (“ao pé da letra” sem levar em conta o contexto histórico). Jesus, “quando estava sozinho com os discípulos, explicava tudo” (v. 34b). Mc faz esta distinção entre “os de fora” e “os de dentro” (vv. 11-12; 3,31-34). Jesus chamou os discípulos “para que ficassem com ele” (3,13; cf. 6,31, 9,2.30; 10,32) e aprendessem os valores (mistérios) do reino (4,11). Nós como discípulos e missionários de Jesus devemos procurar aprofundamento da palavra de Deus no estudo e nos círculos bíblicos da comunidade. O mesmo Espírito Santo que inspirou os autores bíblicos (2Tm 3,16-17) nos explicará tudo (cf. Jo 14,26; 16,13-15).

O site da CNBB resume: Muitas vezes tentamos explicar a realidade do Reino de Deus de uma forma muito complicada, repleta de elaborações doutrinais e de palavras com significados bem específicos que exigem dicionários e conhecimentos específicos em várias ciências para a sua compreensão. Jesus não age assim. Ele procura revelar as verdades do Reino de forma muito simples, compreensível para todas as pessoas, para que os simples e humildes possam acolher a proposta divina e dar a sua adesão a esta proposta sem desanimar diante de dificuldades teóricas e científicas.

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