28 de junho de 2016 – 13ª semana 3ª feira

Leitura: Am 3,1-8; 4,11-12

Ouvimos nessa semana leituras da profecia de Amós (cf. a introdução no comentário de ontem). Amos era um sitiante (7,14) chamado Amós “caiu na armadilha” de Deus (3,5), deixou sua vida tranqüila no reino do Sul e foi anunciar e denunciar no reino do Norte, onde reinava Jeroboão II (1,1; por volta de 760 a.C.). Um «leão começava a rugir» (3,8): era Javé colocando em polvorosa todo um regime de injustiças. Falou o Senhor Deus, quem não será seu profeta?

Ouvi, filhos de Israel, a palavra que disse o Senhor para vós e para todas as tribos que eu retirei do Egito: ”Dentre todas as nações da terra, somente a vós reconheci; por isso usarei o castigo por todas as vossas iniqüidades (3,1-2).

Na última parte do v. 1, o profeta parece dirigir-se as “todas as (doze) tribos” de Israel, não só ás 10 tribos que compõem o reino do norte. Talvez seja releitura judaica destinada a aplicar, depois do desaparecimento do reino do norte (em 722; cf. 2Rs 17), a palavra de Amós ao reino do sul (Judá; cf. 2,4s).

Em v. 2, “somente a vós reconheci”, lit. conheci”, é o significado bíblico de escolher, discernir, amar (Gn 18,19; Dt 9,24; Sb 10,5; Jr 1,5; Os 13,4). Aos olhos de Amós a eleição de Israel não é privilégio (9,7), mas significa para o povo uma exigência de fidelidade e de justiça, uma responsabilidade.

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p.911) comenta: O verbo “conhecer” exprime a relação que nasce de uma iniciativa que conduz ao encontro pessoal de comunhão e amor entre dois seres vivos: a relação conjugal (Gn 4,1; Lc 1,34), o amor do pai a seu filho (Is 63,16), o apego entre o pastor e seu rebanho (Jo 10,4-14). Aqui, caracteriza a relação criada pela libertação do Egito, quando o Senhor escolheu definitivamente Israel para ser seu povo (ver 9,7; Ex 19,5; Dt 7,7-8; Rm 8,29). Este tema não é novo (Gn 18,19; Ex 3,7; 4,22) e será retomado pelos profetas posteriores a Amós (Os 11,1; 13,5; Is 5,1-7; Jr 2,2-3; Ez 16,6; Is 41,8-9). Mas enquanto os contemporâneos do profeta enxergam nesta relação uma fácil garantia de salvação, Amós revela nela o fundamento da responsabilidade de Israel diante do Deus que o elegeu e libertou; compare Mt 7,23; 25,12.

Quase na forma de aforismo, estes dois vv. apresentam um grande princípio: escolha é responsabilidade, por isso vai “usar o castigo” ou “pedir contas” aos escolhidos nos vv. seguintes (cf. 4,12; 9,7). A intervenção da qual Deus toma a iniciativa visa ”pedir contas”: ela traz salvação e graça ou, então castigo. Fiel às suas promessas, Deus recompensa quem ficou fiel e castiga quem traiu a aliança. Em alguns casos, como aqui em nossa leitura, o verbo poderia ser traduzido por “castigar” em outros contextos significa “manifestar seu favor, abençoar” (cf. Ex 3,16; Rt 1,6).

Se duas pessoas caminham juntas, não é porque estão de acordo? Se o leão ruge na selva, não é porque encontrou a presa? Se no covil rosna o filhote do leão, não é porque agarrou sua parte? Acaso, sem armadilha, se prende uma ave no chão? Acaso dispara a armadilha, antes de capturar a presa? Se ressoa na cidade o toque da trombeta, não fica a população apavorada? Se acontece uma desgraça na cidade, não foi o Senhor que fez? Pois nada fará o Senhor Deus, que não revele o plano a seus servos, os profetas. Ruge o leão, quem não terá medo? Falou o Senhor Deus, quem não será seu profeta?” (3,3-8).

Toda essa séria justifica a intervenção do profeta. Não há efeitos sem causa (vv. 5c-6.8a). Se o profeta profetiza, foi Javé quem falou, e se Deus fala, o profeta não pode deixar de profetizar (vv. 7-8b; cf. Jr 20,7-9; 1Cor 9,16). A escolha das comparações deixa pressentir uma mensagem de calamidade.

A imagem do leão a “rugir” (cf. 1,2) ilustra a força irresistível de Javé e o terror que provoca quando manifesta sua soberania absoluta (cf. Os 11,10; Is 5,29). Ao contrário, no NT, a imagem do leão a rugir simboliza o diabo ameaçador, mas vencida pela fé (1Pd 5,8; 2Tm 4,17: muitos cristãos sofreram o martírio ao serem jogados aos leões nos circos romanos; cf. Sl 22,22; Dn 6,17).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p.911) comenta: Inicio de uma série ritmada de sete constatações (vv. 3-6), colhida de campos muito diversos da vida, mas ligada entre si por um fio comum que o leitor deve descobrir. É o gênero sapiencial de enigma numérica (ver Pr 30,18-31). Todas estas situações têm em comum que um dos dois fatos, aquele que aparece, leva o homem atento a descobrir um outro fato, que não se deixa observar diretamente, mas que explica o primeiro. A aplicação vem no v. 8: a presença de um profeta leva à descoberta deste fato estarrecedor: o Senhor mesmo está agindo agora!

A Bíblia do Peregrino (p.2210s) comenta: Por que Amós fala? Quais sãos as suas credencias? Responde uma auto-apresentação do profeta com recursos sapienciais. Por ora vamos prescindir do versículo 7, que parece acréscimo explicativo. Lemos cinco versículos que começam com ha interrogativo e outros quatro que começam com alef (primeira letra do alfabeto hebraico). A regularidade da forma serve para debulhar uma série à primeira vista heterogênea. A conexão de dois membros as unifica como causa (ou condição) e efeito: X não acontece sem a causa Z, ou X não acontece sem o efeito Z. Os dos membros vão juntos porque estão de acordo, como diz o primeiro versículo.

No conteúdo, a série é impressionista: um rugido, sua resposta, uma ave que cai, uma armadilha que se desarma, um toque de corneta, pânico. O leão ruge perto… é o Senhor. O significado é enigmático. Os dois que caminham juntos, de acordo, têm de ser Amós e o Senhor.

O profeta embocará a trombeta e dará o toque de alarme, não pode negar-se (7,16s); ainda há tempo para salvar-se, porque o Senhor controla os acontecimentos; só será armadilha para os incautos que não se protegem devidamente.

Em vv. 7 e 8, a palavra “falar” significa uma intervenção reveladora de Deus; um acontecimento histórico pode ser uma “palavra” de Deus (cf. Gn 1: Deus fala, logo acontece).

O v. 7 deve ser um acréscimo posterior, porque explica em prosa, elevando a princípio geral o que Amós apenas indicava como fato. O profeta como confidente universal de Deus é reflexão tardia e generalizadora. “Nada fará o Senhor Deus, que não revele revela seu plano”, lit. não faz palavra alguma sem revelar seu “segredo”. O termo significa os encontros confidenciais entre amigos em vista de uma ação concertada e inesperada (Pr 15,22; Sr 8,17) do mesmo modo, Deus delibera em segredo com ele mesmo antes de agir (Jr 23,18; Jó 15,8), mas inclui os profetas na sua confidência (Jr 23,22); estes sabem com antecedência quais são os pensamentos e desígnios de Deus. Tal graça é concedida em plenitude pelo Pai ao Filho (Jo 17,10) e pelo Filho aos seus apóstolos (Jo 15,17; 17,8): “mistério” revelado pela Igreja aos pagãos (Rm 16,25-26; Ef 3,3-13).

Nossa leitura salta praticamente um capítulo (contra a corrupção, o luxo e as mulheres ricas de Samaria, contra o culto de Betel e Guilgal) e continua com o endurecimento que trará castigo.

”Eu arrasei-vos, como arrasei Sodoma e Gomorra, e ficastes como um tição, retirado da fogueira; e, contudo, não voltastes para mim”, diz o Senhor. Por isso, assim te tratarei, Israel; e, porque sabes como te vou tratar, prepara-te, Israel, para ajustar contas com o teu Deus (4,11-12).

A catástrofe de Sodoma e Gomorra já é conhecida (Gn 19,24-28) e tornou-se proverbial (Dt 29,22; Is 1,7; 13,19; Jr 49,18; 50,14). É um tipo de julgamento que atinge uma cidade (região) inteira, particularmente culpada. Pode ser uma alusão a um terremoto acontecido nos meados do séc. VIII, na época de Amós (cf. 1,1; 9,5; Sl 75,4; Mq 1,4 etc.). Original é fixar-se no tição tirado do fogo (cf. Zc 3,2).

A descrição da condenação é substituída por uma ameaça de desgraça indeterminada (“assim”), mas que se pressente mais grave do que as anteriores. A Bíblia do Peregrino (p.2213s) comenta: O anúncio contém dois termos: “assim, isso”. A que se referem? Dão-se três respostas possíveis. a) Um fato histórico não mencionado, que desconhecemos. b) A lamentação que se segue imediatamente, 5,1-3, como se a desgraça já tivesse acontecido. c) Saltando-se a lamentação, o convite de 5,4-6, que em sua forma negativa e positiva coloca diante do povo a escolha da vida ou morte.

“Prepara-te”, o verbo designa uma mobilização militar ou convocação litúrgica (Ex 19,11; 2 Cr 35,4). Aqui é um apelo ao arrependimento (“não voltastes para mim”) em vista ao encontro pessoal com o Juiz (cf. o grito de João Batista em Mt 3,2-3p, cuja “voz que grita no deserto” foi comparada com o rugir de um leão ao associar este animal como emblema do evangelista Mc; pela primeira vez por St.º Irineu citando Ap 4,6s; Ez 1,5-21; 10,14).

Evangelho: Mt 8,23-27

Ouvimos hoje a história de Jesus acalmando a tempestade e o mar na versão de Mateus.

Jesus entrou na barca, e seus discípulos o acompanharam (v. 23).

Mt encontrou esta história já em Mc 4,35-41. Ao copiá-la, Mt encaixou um dialogo sobre as exigências do seguimento no meio (vv. 19-22 par Lc 9,57-60, evangelho de ontem). A ordem de ir para outro lado do mar já foi dada em v. 18 (Mc 4,35). Só depois do diálogo, em v. 23, realmente “Jesus entra na barca e seus discípulos o acompanharam.” Quer dizer, pela mudança do contexto, Mt talvez quisesse relacionar a tempestade que se segue com as dificuldades e o medo dos discípulos ao seguirem Jesus, deixando o lar e a família e vivendo sem segurança econômica. Além disso, no outro lado do mar da Galileia (ou lago Genesaré) está a Decápolis, uma região de dez cidades gregas. Significa para os discípulos irem à terra estrangeira, pagã, desconhecida (cf. 28,19), onde homens imundos e ferozes podem aparecer (os endemoninhados de Gerasa/Gadara; cf. evangelho de amanhã: 8,26-34p).

E eis que houve uma grande tempestade no mar, de modo que a barca estava sendo coberta pelas ondas (v. 24).

Em vez de “tempestade”, Mt usa a palavra “tremor, sismo”, porque lembra as tribulações dos últimos tempos (cf. 24,7; 27,54; Ap 6,12; 8,5; 11,13.19; 16,18). Este fenômeno acompanha as teofanias no Sinai (Ex 19,18; 1Rs 19,11), a revelação de Javé diante de Jó (Jó 38,1; 40,6) e a ressurreição de Jesus (Mt 27,51.54; 28,2.4).

O mar na sua realidade empírica pode ser força destruidora, incontrolável para o homem (cf. Sl 69,3.16; 107,23-30), águas e ondas podem ser ameaçadoras (Sl 18,5; 32,6; 40,3; 42,8; 46,3-4; 66,12; 69,2-3; 88,18; 130,1; Jó 7,12; 22,11; 27,20; Is 8,7; 30,28; Dn 7,2-3; Jn 2,6; Ap 17,15). Até aí, os pescadores do lago seriam um caso a mais. Mas o mar apresenta outro aspecto no AT: é a potência rebelde, caótica, ameaça que Deus submete e domestica (Sl 93; 104,6-7; etc.).

Jesus, porém, dormia. Os discípulos aproximaram-se e o acordaram, dizendo: “Senhor, salva-nos, pois estamos perecendo!” Jesus respondeu: “Por que tendes tanto medo, homens fracos na fé?” Então, levantando-se, ameaçou os ventos e o mar, e fez-se uma grande calmaria (vv. 24b-26). 

Jesus “dormia” despreocupado como Jonas (Jn 1,5). Mt não menciona o travesseiro (Mc 4,38), talvez porque já anotou que “o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça” (v. 20). De qualquer modo, Jesus é dono da situação, “Senhor” dos elementos. Os discípulos o chamam “Senhor“ (cf. evangelho de ontem; aqui alude á “Javé”, traduzido sempre no AT por “Senhor”).  A maneira como agem os discípulos, lembra uma liturgia: “aproximaram-se …, dizendo: ‘Senhor, salva-nos, pois estamos perecendo!’” (v. 25).

Além da dimensão cristológica que mostra aqui o poder divino em Jesus, temos a dimensão eclesiológica, ou seja, da Igreja: a interpretação do texto sempre identificava a barca com a Igreja. Na antiguidade, a barca podia ser símbolo da alma (no mar da vida), e o navio era símbolo do estado. Como a Igreja nasceu na comunidade dos primeiros discípulos que eram pescadores, facilmente se vê na barca de Pedro a própria Igreja, e aqui no texto, a comunidade com medo, medo principalmente das perseguições (cf. Mt 5,11-12; 10,16-39; 23,34-37). Por isso, o Senhor lhes disse, ainda antes de acalmar os elementos (em Mc 4,40, disse depois): “Por que tendes tanto medo, homens fracos na fé?”, ou seja, “gente de pouca fé”, uma expressão predileta do evangelista (6,30; 8,26; 14,31; 16,8; 17,20; cf. Lc 12,28).

Jesus atende o pedido da oração e cria um grande silêncio através da sua palavra, “ameaçou o vento e o mar, e fez-se uma grande calmaria” (v. 26), como o Senhor repreende a maré dos povos (Is 17,12-13), o mar (Na 1,4) ou o mar Vermelho (Sl 106,9). Assim se revela dominador dos elementos cósmicos (como Deus em Sl 104,7-9). Jesus que antes estava dormindo/adormecido (morto), agora se levanta (ressuscita) e cria grande calmaria (paz) tirando o medo dos discípulos.

Os homens ficaram admirados e diziam: “Quem é este homem, que até os ventos e o mar lhe obedecem?” (v. 27).

Os presentes entrevem em Jesus um poder sobre-humano superior aos ventos (Sl 104,4). Quem são “os homens”? Pelo contexto, só os discípulos estão presentes (cf. Mc 4,41: “diziam uns aos outros”). Com os “homens”, Mt costuma designar os não-crentes (5,13; 10,17.32s), os que precisam do evangelho (4,19; 5,16.19; 6,12 etc.), os que falam de Jesus como de fora (16,13), ou mesmo que nada compreendem das cosias de Deus. Aqui, Mt quer sair do contexto histórico e sugere a maneira geral, como nós, os leitores, devemos reagir ouvindo este milagre que mostra a divindade em Jesus.

A fé é fraca quando não se seguem obras (cf. Tg 2,14-26), mas também quando os discípulos não confiam no poder e na presença do Senhor que, para eles, parece despreocupado, indiferente, dormindo/adormecido, ausente (cf. 1Rs 19,11-13). Portanto, aumenta a fé quando a comunidade se aproximar mais ao Senhor e confiar ser sustentada por ele. O evangelho de hoje, como outro de 14,22-33p (Jesus ausente e depois andando sobre o mar), testemunha a presença do Senhor “até o fim do mundo” (28,20).

O site da CNBB comenta: A nossa vida é constantemente marcada por turbulências que nem sempre são fáceis de serem vencidas, sendo que algumas vezes temos a impressão de que seremos engolidos. São situações que nos desafiam e exigem de nós muito mais do que somos capazes de realizar. É justamente nessas situações que a nossa fé deve falar mais alto. É claro que devemos reconhecer a nossa impotência diante de determinadas situações, mas a vida de quem realmente crê em Deus não pode ser marcada pelo medo, pela covardia ou pela transferência da responsabilidade do dia a dia para Deus. É assumir com coragem os desafios na certeza de que Deus é o grande parceiro e que seremos sempre vitoriosos porque não realizamos uma obra que é nossa, mas somos protagonistas de uma obra que é o próprio Deus quem realiza.

Voltar