28 de março de 2017 – Terça-feira, Quaresma 4ª semana

Leitura: Ez 47,1-9.12

“No país dos caldeus”, ou seja, no exílio babilônico, Javé Deus colocou a mão sobre o sacerdote Ezequiel que estava entre os primeiros deportados de 597 a.C. Em “visões divinas” (cf. 1,1-3) viu como a glória de Javé estava abandonando o templo de Jerusalém.

Em 573 a.C., exatos catorze anos após a queda de Jerusalém e a destruição do templo (cf. 40,1), Ezequiel recebeu outra visão no seu exílio. Agora sonha com a cidade onde se estabelecerá renovação e a nação revigorada. O centro desta nova Jerusalém é o novo Templo. Neste sai uma fonte que se tornará um rio sarando a terra.

O anjo fez-me voltar até a entrada do Templo e eis que saia água da sua parte subterrânea na direção leste, porque o Templo estava voltado para o oriente; a água corria do lado direito do Templo, a sul do altar. Ele fez-me sair pela porta que dá para o norte, e fez-me dar uma volta por fora, até à porta que dá para o leste, onde eu vi a água jorrando do lado direito (vv. 1-2).

Um anjo (lit. “homem”) que parecia de bronze guia e explica ao profeta a sua visão (40,3). O papel de intérprete, devolvido aos anjos, é um traço do profetismo tardio (cf. Dn 8,16. 9,21; Zc 1,8s; Ap 1,1; 10,1-11, etc.). Depois de mostrar o novo templo, para onde a glória de Deus voltará (cap. 40-43), se passa a seus efeitos vivificantes (cf. cap. 36-37: vento-espírito e água, duplo princípio da nova vida). Os vv. 1-12 devem ser aproximados de 43,1s: esse rio maravilhoso manifesta a bênção trazida à terra pela habitação renovada de Deus no meio do seu povo. A imagem será retomada por Ap 22,1-2: “mostrou-me um rio de água brilhante como cristal, que saiu do torno de Deus e do Cordeiro…” (uma passagem trinitária, porque as águas vivas e vivificantes significam o Espírito; cf. Jo 4; 7,37-39).

O anjo conduziu o profeta e o fez ver “que saia água… do lado direito do Templo, a sul do altar” (v. 1). Nós estamos acostumados contemplar mapas se orientam para o norte (“norteados”), mas o homem da Bíblia costumava se orientar olhando ao leste para o sol nascente (“oriente”), nesta posição, o seu lado direito aponta ao sul.

A água avança “na direção leste”, talvez por ser a região mais árida, talvez imaginando uma localização oriental do paraíso (cf. Gn 13,10). “O Templo estava voltado para o oriente”; as igrejas cristãs orientavam-se ao oriente, celebrando o culto em direção ao “sol nascente” (cf. Ml 1,11; 3,20; Mc 16,2p; Lc 1,78;), ou seja, ao Cristo que vem.

Olhando para leste, a direção sul fica à direita: “a água corria do lado direito do Templo, a sul do altar”. O evangelho de João fez uma alusão ao corpo de Jesus crucificado como novo templo (Jo 2,20-22): “Um soldado abriu o lado com a lança, e imediatamente jorrou sangue e água” (Jo 19,35).

Quando o homem saiu na direção leste, tendo uma corda de medir na mão, mediu quinhentos metros e fez-me atravessar a água: ela chegava-me aos tornozelos. Mediu outros quinhentos metros e fez-me atravessar a água: ela chegava-me aos joelhos. Mediu mais quinhentos metros e me fez-me atravessar a água: ela chegava-me à cintura. Mediu mais quinhentos metros, e era um rio que eu não podia atravessar. Porque as águas haviam crescido tanto, que se tornaram um rio impossível de atravessar, a não ser a nado (vv. 3-5).

Depois de 500 metros, a água chega só aos tornozelos, mas com cada passo a água aumenta e depois de 2000 metros tornou-se “um rio impossível de atravessar, a não ser a nado” (v. 5). Sabemos hoje da importância de cuidar bem das nascentes dos nossos rios, porque, no início, todo rio é fraco e vulnerável.

Ele me disse: “Viste, filho do homem?” (v. 6a)

Com frequência em Ez, o profeta é chamado “filho do homem” (2,1 etc.); ainda não é o juiz apocalíptico (cf. Dn 7,13s; Mc 13,26; Mt 25,31), mas significa simplesmente ser humano (em hebraico: “filho de Adão; cf. Sl 8,5; 90,3).

Depois fez-me caminhar de volta pela margem do rio. Voltando, eu vi junto à margem muitas árvores, de um e de outro lado do rio. Então ele me disse: “Estas águas correm para a região oriental, descem para o vale do Jordão, desembocam nas águas salgadas do mar, e elas se tornarão saudáveis. Onde o rio chegar, todos os animais que ali se movem poderão viver. Haverá peixes em quantidade, pois ali desembocam as águas que trazem saúde; e haverá vida onde chegar o rio. Nas margens junto ao rio, de ambos os lados, crescerá toda espécie de árvores frutíferas; suas folhas não murcharão e seus frutos jamais se acabarão: cada mês darão novos frutos, pois as águas que banham as árvores saem do santuário.  Seus frutos servirão de alimento e suas folhas serão remédio” (vv. 6b-9.12).

Num país tal seco como Israel, tanta abundância de água lembra a descrição dos rios no paraíso (Gn 2,10-14). Também as arvores frutíferas em ambos os lados do rio lembram o jardim Éden, “suas folhas não murcharão e seus frutos jamais se acabarão: cada mês darão novos frutos” (v. 12). O rio não só traz prosperidade, mas também a saúde. A região se transforma em paraíso. Os frutos de todas as suas arvores serão comestíveis; as folhas medicinais afastarão a morte (cf. Ap 22,2).

As águas “descem para o vale do Jordão, desembocam nas águas salgadas do mar. O mar é o mar Morto, símbolo de maldição por ter água com tanta concentração de sal que não há vida nele (cf. Gn 19,23-26), por est rio que sai do santuário e se junto ao rio Jordão, as águas deste mar vão ser tornadas salubres, “saudáveis” (lit. “curadas”; cf. 2Rs 2,21s; Ex 15,23-25). “Haverá peixes em quantidade, haverá vida aonde chegar o rio” (v. 11). A bênção desta fonte inicialmente pequena se dá por causa da sua origem: “as águas… saem do santuário” (v. 12).

Renasce prodigiosamente a vida, como em nova criação (cf. Gn 1,20s). A água doce (Apsu) vence a água salgada (Tehom). Nos vv. 10-11 (omitidos) mencionam-se pescadores e umas reservas de sal que serão preservadas.

No NT, o rio Jordão e o batismo cristão representam nova criação (cf. 2Rs 5; Mt 3p; Rm 6,4; 2Cor 5,17). Vemos a influência desta visão nos escritos joaninos: há “água” que é “viva” e “jorra para vida eterna” (Jo 4,10-14; 7,37-38) e que sai do lado do corpo de Jesus na cruz (19,34). Lembrando que o Corpo de Cristo é o novo Templo (cf. 2,21), isso pode ser uma alusão a esta visão de Ezequiel. Na cidade celeste de Jerusalém, onde não há mais templo, porque “o seu templo é o próprio Senhor” (Ap 21,22), um “anjo” (21,9) mostra ao vidente um “rio de água vivificante… que brotava do trono de Deus e do Cordeiro… em ambas as partes do rio cresce a árvore de vida. Frutificando doze vezes por ano, produzindo cada mês o seu fruto, e suas folhas servem para curar as nações. Já não haverá maldição alguma” (Ap 22,1-3a; cf. 21,6; 22,17).

A Bíblia do Peregrino (p. 2122) comenta:

Água como no paraíso (Gn 2,10-14): em vez de quatro rios, quatro etapas crescentes. Água na cidade santa (Is 30,25; JI 4,18; Zc 14,8): o templo está na plataforma superior, sobre as plataformas do átrio interno, do externo e do terreno circundante. Água derramada pelo Senhor (Sl 65,10). Água que transforma o deserto (Is 35). Porque o Senhor é “fonte de água viva” (Jr 2,13; 17,13). 

Água de vida: contínua, crescente, invasora, comunicada. Comunica-se às plantas, produzindo um parque maravilhoso; comunica-se aos animais, fazendo com que o mar Morto pulule de seres vivos; comunica-se aos homens em forma de alimento e remédio. O profeta sentirá no corpo o poder da água: o resto o escuta dos lábios do acompanhante.

 

Evangelho: Jo 5,1-16

Depois de ouvirmos da água vivificante de um rio que sai do templo na visão de Ezequiel (cf. leitura), o evangelho de hoje nos apresenta Jesus curando na piscina de Betesda em Jerusalém. É o terceiro milagre (“sinal”; cf. 2,11; 4,54) neste evangelho.

Houve uma festa dos judeus, e Jesus foi a Jerusalém (v. 1).

A “festa dos judeus” em v. 1 não é especificada. Uma tradição antiga e alguns manuscritos informam que era Páscoa. Por esse dado e porque a multiplicação dos pães acontece na Galileia (próxima da Páscoa, cf. 6,4), alguns exegetas invertem a ordem dos capítulos 5 e 6. O texto do relato só esclarece que “era um sábado” (v. 10). O capítulo se situa pouco antes da Páscoa; os cap. 7-8 pertencem à festa das Tendas e 10,22-39 à festa da Dedicação. Assim João distribuiu a atividade de Jesus pelas tradicionais festas judaicas.

Existe em Jerusalém, perto da porta das Ovelhas, uma piscina com cinco pórticos, chamada Betesda em hebraico. Muitos doentes ficavam ali deitados – cegos, coxos e paralíticos -, esperando que a água se movesse. De fato, um anjo descia, de vez em quando, e movimentava a água da piscina, e o primeiro doente que aí entrasse, depois do borbulhar da água, ficava curado de qualquer doença que tivesse (vv. 2-4).

Jesus foi a Jerusalém (cf. 2,13) pela segunda vez. Escavações recentes comprovaram a existência de uma piscina, chamada Betesda, perto da porta das Ovelhas, a nordeste do Templo. “Muitos doentes ficavam ali deitados: cegos, coxos e paralíticos” (v. 3; cf. Is 35,5-6). O v. 4 falta nos manuscritos mais antigos, é uma anotação posterior que prepara a narração que vem depois e explica a crença na origem sobrenatural (“anjo”) da movimentação da fonte.

Aí se encontrava um homem, que estava doente havia trinta e oito anos. Jesus viu o homem deitado e sabendo que estava doente há tanto tempo, disse-lhe: “Queres ficar curado?” O doente respondeu: “Senhor, não tenho ninguém que me leve à piscina, quando a água é agitada. Quando estou chegando, outro entra na minha frente” (vv. 5-7).

Jesus viu um paralítico ou aleijado crônico, impedido fisicamente e também com uma falta notável de iniciativa. Jesus sabia que ele estava doente “havia trinta e oito anos” e toma iniciativa, perguntando: “Queres ficar curado?“ (v. 6). Soa como desafio ou como repreensão: Queres de fato? Fazes algo para consegui-lo? Sua resposta só obtém uma desculpa que sublinha a desgraça, está impossibilitado: “Não tenho ninguém que me leve” (v. 7); expressão clássica da oração (Sl 22,12; 107,12-34; cf. Is 63,5; Lm 1,7), de modo que Jesus vai ser a sua única salvação.

Jesus disse: “Levanta-te, pega a tua cama e anda.” No mesmo instante, o homem ficou curado, pegou a sua cama e começou a andar (vv. 8-9a).

O evangelho de João nada diz de possessões demoníacas ou de espíritos imundos (aliás, o AT também quase nada), mantém-se no plano simples da doença. A palavra de Jesus brota da compaixão e é eficaz. Apenas a palavra de Jesus efetua a cura (cf. 4,50-53, evangelho de ontem): “Levanta-te, pega a tua cama e anda” (v. 8). Estas palavras e a cena lembram a cura do paralítico em Cafarnaum (Mc 2,1-12p), que também precisava de homens para ser carregado e onde também se provocou um conflito com os mestres da lei em seguida.

Ora, esse dia era um sábado. Por isso, os judeus disseram ao homem que tinha sido curado: “É sábado! Não te é permitido carregar tua cama.” Ele respondeu-lhes: “Aquele que me curou disse: Pega tua cama e anda.” Então lhe perguntaram: “Quem é que te disse: Pega tua cama e anda?” O homem que tinha sido curado não sabia quem fora, pois Jesus se tinha afastado da multidão que se encontrava naquele lugar (vv. 9b-13).

O evangelista chama os opositores “os judeus”, designando os representantes do judaísmo que excluíram os cristãos na época dele (cf. 9,22.35). Eles disseram: “É sábado! Não te é permitido carregar tua cama” (v. 10). O descanso sabático era um dos preceitos mais sagrados dos judeus, e somente o perigo de morte suspendia sua vigência. A mishna (a “cerca” em volta da Lei de Moisés, ou seja, a tradição dos fariseus colocada por escrito no século II) especifica que é proibido transportar fardos (cf. Jr 17,19-27). O ex-paralítico responde com lógica elementar: se a saúde obedeceu ao mandato deste homem, porque não deverá obedecer àquele que recuperou a saúde? (cf. v. 11; 9,24-25.31-33).

Mais tarde, Jesus encontrou o homem no templo e lhe disse: “Eis que estás curado. Não voltes a pecar, para que não te aconteça coisa pior”. Então o homem saiu e contou aos judeus que tinha sido Jesus quem o havia curado. Por isso, os judeus começaram a perseguir Jesus, porque fazia tais coisas em dia de sábado (vv. 14-16).

Jesus toma a iniciativa de novo e, mais tarde, o encontra no Templo. Apoiado na tradição que vincula doença com o pecado (cf. Mc 2,5, diferente: Jo 9,1-3), o exorta a uma conversão radical e cura mais profunda do espírito: “Não voltas a pecar, para que não te aconteça coisa pior” (v. 14; cf. 8,11; Sl 31,38). Assim o homem vem saber quem é que o curou e o conta ingenuamente “aos judeus”, ou seja, às autoridades judaicas que “começaram a perseguir Jesus” (vv. 15-16).

Para Jesus, um homem doente vale mais do que o pé da letra de uma lei que devia estar a serviço da vida e da liberdade (cf. Dt 5,15) dos homens em vez de impedi-las (cf. Mc 2,27-28).

O site da CNBB comenta: Muitas vezes, as pessoas que sofrem diferentes formas de males possuem uma fé muito grande no poder de Deus, mas de algumas formas são impedidas de chegar até ele e receber as suas graças, condição indispensável para a superação de seus males e sofrimentos. É o caso do paralítico, que acreditava no poder de Deus e na cura que viria pela ação do anjo ao agitar a água, mas era impedido pelos outros que entravam primeiro na piscina. Assim também acontece hoje quando criamos uma série de regras e preceitos humanos que dificultam a participação de muitos na vida divina e um relacionamento pessoal com ele, que é a fonte de todas as graças que nos dão vida em abundância.

Voltar