29 de agosto de 2017 – Terça – feira, Martírio de São João Batista

Enquanto a festa alegre do nascimento do Batista (Lc 1,57-66) é bem conhecida e celebrada em todo o país (seis meses antes de Natal, cf. Lc 1,28.36), a memória da sua morte no dia de hoje caiu no esquecimento. Mas João é “precursor” de Jesus não só no nascimento, mas também na pregação intrépida (Mt 3,2-15; Lc 3,7-20) e sua consequência, a morte no martírio.

Leitura: Jr 1,17-19

O texto da leitura faz parte da vocação do profeta Jeremias à qual se introduz:

Naqueles dias a Palavra do Senhor foi-me dirigida (cf. vv. 4.11.13)

Em Jr (também em Ez, Zc e Ag), esta fórmula introduz, com frequência, a exposição de quanto Javé (o Senhor) revelou ao profeta (vv. 4.11.13; 2,1; 13,3 etc.) e o enunciado das mensagens que ele lhe incumbe a transmitir (2,1 etc.). A expressão realça com força a Palavra em pessoa (!) e a sua ação (cf. v. 2; 14,1; 46,1; 47,1; 49,34; cf. Jo 1,1-3).

Os vv. 2-3 (omitidos na liturgia) datam a vocação do profeta entre 627 ou 626 a.C.. Jeremias nasceu por volta de 650 a.C. numa família sacerdotal em Anatot (vizinhança de Jerusalém). O jovem tentou em vão esquivar-se do domínio da Palavra que sempre triunfa (1,4-10; cf. Jn 1). De alma tenra, feita para amar, foi enviado para “amarrar e destruir, exterminar e demolir” (v. 10) e predizer, sobretudo a desgraça (20,8): a destruição de Jerusalém, capital de Judá (reino do Sul) devido ao mau comportamento dos seus dirigentes (5,1-6 etc.). Essa mensagem o colocou “à margem” da sociedade, na solidão de não ter o apoio de família (cf. o celibato do profeta em Jr 16), sempre lutando contra perseguições por parte do seu povo, da própria família (11,21; 21,6), dos sacerdotes, dos falsos profetas (23,9-32; 27-28) e dos reis (com exceção de Josias que realizou uma reforma religiosa quando foi redescoberto no templo o livro de Deuteronômio, cf. 2Rs 22-23).

Foi hostilizado e acabou sendo preso (37,11-39,14), atolado no lodo de uma cisterna (38,1-13). Depois da destruição de Jerusalém em 587 a.C. pelo exército do rei da Babilônia, Nabucodonosor que levou boa parte do povo para o exílio na Babilônia, Jeremias queria ficar na terra, mas foi arrastado por um grupo de judeus para o Egito, onde se perdeu seu rastro. Seu secretário e discípulo Baruc guardou a memória de Jeremias, cuja influência se estende ao exílio na Babilônia, onde escrevem depois Ezequiel e Deutero-Isaias (cf. Is 53 sobre um servo sofredor de Deus que salvou seu povo dos pecados). Como Elias e Jeremias, também João Batista e Jesus criticavam a corrupção dos governantes e dos sacerdotes do templo e pagaram o preço de seu sofrimento (cf. Mt 16,14).

“Vamos, põe a roupa e o cinto, levanta-te e comunica-lhes tudo que eu te mandar dizer: não tenhas medo, senão, eu te farei tremer na presença deles (v. 17).

O texto de hoje salienta a coragem que um profeta necessita, e João Batista era “o maior” deles, segundo as palavras do próprio Jesus em Mt 11,7-15p. O Senhor abandona os que não confiam nele (cf. Is 7,9), enquanto uma fé sólida dá grande segurança (cf. Gn 15,1; At 4,13; Mt 10,26-33p; Ef 6,10-17) igual ao fundamento seguro de uma rocha (cf. Dt 32,4; 1Sm 2,2; Is 17,10; 44,8; Sl 18,3; 19,15 etc., cf. Mt 7,24; 16,18).

“Levanta-te” (cf. Js 1,2; Jz 3,6; 1Rs 17,9; Ez 2,1; 3,22 etc.; Jn 1,2; 3,1; Mq 6,1). “Não tenhas medo”, esta frase faz parte de muitas vocações ou encontros com o divino (v. 8; cf. Gn 15,1; 21,17; 26,24; 46,3; Jz 6,23; Mt 1,20; Lc 1,13.30; 2,10; 5,10 etc.)

Com efeito, eu te transformarei hoje numa cidade fortificada, numa coluna de ferro, num muro de bronze contra todo o mundo, frente aos reis de Judá e seus príncipes, aos sacerdotes e ao povo da terra (v. 18).

Deus capacita àquele que chamou. O termo “povo da terra” pode significar “proprietários de terras” (34,19; 37,2; Ez 22,29) e também todos os “cidadãos” que podem interferir nos assuntos públicos e são obrigados ao serviço militar (44,21); em Esd e Ne, depois do exílio e sempre no plural, significa a população não-judaica morando na Palestina (cf. Lv 20,2).

Eles farão guerra contra ti, mas não prevalecerão, porque eu estou contigo para defender-te”, diz o Senhor (v. 19).

Nos vv. 17 e 19 repete-se o que já foi dito em v. 8: “Não tenha medo, porque estou contigo para te salvar (defender)”.

Mas em v. 19, bem no início do livro de Jr, uma alusão de um sítio da cidade: Jerusalém vai cair, enquanto as palavras de Jeremias permanecerão. Geralmente uma vocação ou um envio afirma a presença e o auxilio do Senhor (cf. Gn 26,24; 28,15; Ex 3,12; Js 1,5; Jz 6,12.16; Mt 28,20; Lc 1,28; At 18,10), cujo nome hebraico Javé (Yhwh) significa “eu estou aqui (para vocês)” (cf. Ex 3,14, em grego: Eu sou que sou). Quem leva como nome um simples “Sou” se fará sentir como um “Sou contigo”. Jeremias verá o modo paradoxal dessa realização. Quando Deus incumbe alguém de uma missão, ele promete ao mesmo tempo sua presença e torna-se o “Deus-com” Ima(nu)-El (Gn 26,24; 28,15: Ex 3,12; Jz 6,12.16; Is 7,14: 41,10; Mt 1,23; 18,20; 28,19-20; Lc 1,28; At 18,10; Rm 8,31). Para Jr, Deus é o Senhor todo-poderoso do universo e de todos os seus elementos (11,35), o senhor da história (cf. v. 10; 18,7-10) e de cada homem (11,20; 39,17-18; 45,5).

Evangelho: Mc 6,17-29

No evangelho de hoje, a morte de João Batista acontece dentro de um banquete de poderosos. Assim, o profeta que pregava o início de transformação radical pela vinda do messias é morto por aqueles que se sentem incomodados com essa transformação. Enquanto Herodes celebra o banquete da morte (de João) com os grandes, Jesus celebra o banquete da vida com o povo simples (logo em seguida em 6,30-44: a multiplicação dos pães).

Herodes tinha mandado prender João, e colocá-lo acorrentado na prisão. Fez isso por causa de Herodíades, mulher do seu irmão Filipe, com quem se tinha casado. João dizia a Herodes: “Não te é permitido ficar com a mulher do teu irmão”. Por isso Herodíades o odiava e queria matá-lo, mas não podia. Com efeito, Herodes tinha medo de João, pois sabia que ele era justo e santo, e por isso o protegia. Gostava de ouvi-lo, embora ficasse embaraçado quando o escutava (vv. 17-20).

Com grande maestria literária, Marcos nos conta o martírio do Batista. Começa descrevendo a situação na corte de Herodes. Não é o Herodes Grande que perseguiu o menino Jesus (Mt 2), mas um dos seus filhos que dividiram o governo sobre território do pai. Herodes Antipas era governador (“rei”; Mt 14,1: “tetrarca”) da Galileia e Pereia (Transjordânia) na época de Jesus.

O motivo da prisão nos evangelhos é a crítica de João a respeito do casamento ilegítimo do governador. Para o historiador contemporâneo, Josefo Flávio, o motivo era outro: Herodes prendeu João por sua crítica social e política.

Em Mc, mesmo na prisão, o profeta não se cala e continua falando. Herodes Antipas parece ter herdado um pouco do caráter psicótico do seu pai. Seu comportamento é ambíguo: gosta de escutar João, embora fique embaraçado; pela influência da sua mulher, colocou João na prisão, mas tem medo dele, porque era o homem de Deus (“justo e santo”).

A relação ilegítima de Herodes (Lv 18,16; 20,21), a admoestação franca de João (como a do profeta Natã a Davi, 2Sm 12), o rancor passional de Herodíades; isso lembra o drama do fraco rei de Israel, Acab, cuja esposa Jezabel o incitava ao crime, e o profeta justo e santo, Elias, acabou perseguido e ameaçado de morte (Elias é modelo do Batista, cf. 1Rs 18-19; 21; 2Rs 1,8; Mt 3,4; 11,14; 17,11-13).

A relação ilegítima de Herodes (Lv 18,16; 20,21), a admoestação franca de João (como a do profeta Natã ao rei Davi, 2Sm 12), o rancor passional de Herodíades; tudo isso nos lembra o drama do fraco rei Acab, cuja esposa Jezabel o incitava ao crime (1Rs 21), e o profeta justo e santo, Elias, acabou perseguido e ameaçado de morte (cf. 1Rs 18-19; 21; Elias é modelo do Batista, cf. 2Rs 1,8; Mt 3,4; 11,14; 17,11-13).

Finalmente, chegou o dia oportuno. Era o aniversário de Herodes, e ele fez um grande banquete para os grandes da corte, os oficiais e os cidadãos importantes da Galileia. A filha de Herodíades entrou e dançou, agradando a Herodes e seus convidados. Então o rei disse à moça: “Pede-me o que quiseres e eu to darei”. E lhe jurou dizendo: “Eu te darei qualquer coisa que me pedires, ainda que seja a metade do meu reino” (vv. 21-23).

A morte de João acontece dentro de um banquete de poderosos. Assim, o profeta que pregava a conversão, o início de transformação radical pela vinda do messias (cf. 1,4-8) é morto por aqueles que se sentem incomodados com essa transformação. Herodes celebra o banquete da morte (de João) com os grandes, Jesus celebrará o banquete da vida com o povo necessitado (a narrativa seguinte é a multiplicação dos pães em Mc 6,30-44).

Marcos segue a técnica narrativa bíblica: reprime suas emoções, como se narrasse a frio, e deixa que os fatos comovam o leitor. Muitos escritores e músicos exploraram o potencial dramático desse relato. Celebra-se o aniversário do rei, em clima de festa. É a ocasião de fazer benefícios e conceder perdão. A princesa faz o papel de bailarina (cf. Ct 7,1-7) num solo de exibição oferecido a um público masculino. O aplauso é geral, e o rei, numa demonstração de esplendidez, promete dar-lhe quanto pedir, e o jura ainda com uma fórmula hiperbólica (cf. Est 5,3.6; 7,2). Jurando (v. 29), Herodes abusa do nome divino, seu juramento leva ao crime. O nome da moça, Salomé, consta em documentos fora da Bíblia.

Ela saiu e perguntou à mãe: “O que vou pedir?” A mãe respondeu: “A cabeça de João Batista”. E, voltando depressa para junto do rei, pediu: “Quero que me dês agora, num prato, a cabeça de João Batista”. O rei ficou muito triste, mas não pôde recusar. Ele tinha feito o juramento diante dos convidados (vv. 24-26).

Herodíades aproveita a ocasião propícia. O inesperado pedido da princesa coloca o rei numa posição comprometida: dividido entre sua estima/temor pelo Batista e o juramento pronunciado diante dos convidados. O pedido invalida sem mais o juramento. Um juramento não pode justificar um crime de assassinato. Mas o rei cede à sensualidade e aos compromissos de corte.

Imediatamente, o rei mandou que um soldado fosse buscar a cabeça de João. O soldado saiu, degolou-o na prisão, trouxe a cabeça num prato e a deu à moça. Ela a entregou à sua mãe. Ao saberem disso, os discípulos de João foram lá, levaram o cadáver e o sepultaram (vv. 27-29).

A festa tem um final macabro. O quadro denuncia sem afetação a imoralidade e corrupção dos dirigentes. Uma cena semelhante, embora de signo contrário, é Judite levando e mostrando a cabeça de Holofernes (Jt 13). Uma tradição judaica sobre Ester fala da cabeça da rainha Vasti (cf. Est 1,9-2,1) levada numa bandeja à sala. A princesa Salomé levando o prato com a cabeça de João Batista cortada tem acendido a fantasia de escritores e artistas e convertido João e Salomé em figuras arquetípicas. Mas o fim trágico de João está prefigurando antes de tudo a morte de Jesus e também sua sepultura:

O site da CNBB comenta: Todos nós temos dificuldades para viver a radicalidade exigida pelo Evangelho e diversas vezes nos acovardamos diante das ameaças. Uma das maiores ameaças que sofremos hoje, quando procuramos viver o Evangelho, encontra-se no fato de que a sociedade ridiculariza todos aqueles que não fundamentam a sua vida nos valores do mundo. Mas isso também acontecia nos tempos de Jesus, como podemos perceber na narrativa da morte de João Batista e no julgamento do próprio Jesus. Mas nós não podemos ceder aos mecanismos que são usados pelo mundo moderno contra o Evangelho; devemos expor com coerência as verdades da nossa fé.

 

Voltar