29 de Fevereiro de 2020, Sábado depois das cinzas: Jesus respondeu: “Os que são sadios não precisam de médico, mas sim os que estão doentes. Eu não vim chamar os justos, mas sim os pecadores para a conversão” (vv. 31-32).

Quaresma – Sábado depois das cinzas

Leitura: Is 58,9b-14

A leitura de hoje continua com a advertência de Is 58 sobre o verdadeiro jejum que agrada a Deus (cf. vv. 1-9a; leitura de ontem). Como outros profetas (cf. Am 5,21-25), Is afirma que não são exercícios religiosos e rituais que agradam a Deus, mas a prática da justiça e da misericórdia tem sua preferência (cf. Os 6,6).

Se destruíres teus instrumentos de opressão, e deixares os hábitos autoritários e a linguagem maldosa; se acolheres de coração aberto o indigente e prestares todo socorro ao necessitado, nascerá nas trevas a tua luz e tua vida obscura será como o meio-dia (vv. 9b-10).

Procurar a Deus é praticar o direito e a justiça, ou seja, destruir os “instrumentos de opressão” e deixar os “hábitos autoritários e a linguagem maldosa” (v. 9b). Para quem agir com misericórdia (como o bom samaritano em Lc 10,25-37), “acolher de coração aberto o indigente e prestar socorro ao necessitado, nascerá nas trevas a tua luz…” (v. 10; cf. v. 8; 9,1; Jo 8,12), semelhante à luz que resplandecerá sobre Jerusalém (60,1-2).

O Senhor te conduzirá sempre e saciará tua sede na aridez da vida, e renovará o vigor do teu corpo; serás como um jardim bem regado, como uma fonte de águas que jamais secarão (v. 11).

Quem age com justiça e misericórdia, torna-se uma benção para os outros, mas receberá também as bênçãos: como no êxodo, Deus o “conduzirá” sempre, saciara sua “sede” e “será como jardim bem regado, como uma fonte de águas que jamais secarão” (v. 11; cf. Jo 4,14).

Teu povo reconstruirá as ruínas antigas; tu levantarás os fundamentos das gerações passadas: serás chamado reconstrutor de ruínas, restaurador de caminhos, nas terras a povoar (v. 12).

Em vez da terra prometida a ser conquistada (na época de Josué em 1200 a.C.), agora é a cidade de Jerusalém que será reconstruída (v. 12; cf. 61,4), porque em 586 a.C., o exército de Nabucodonosor a tinha destruído e levado o povo judeu para exílio na Babilônia. Como vemos, o autor desta leitura bíblica (Tritoisaías = Terceira Isaías, caps. 56-66) escreve depois da volta do exílio (538 a.C.), mas antes da construção da muralha por Neemias em 445-443 a.C. (cf. Ne 2,11-7,3), talvez antes ainda da reconstrução do templo em 520-525 (cf. Esd 4,24-6,18).

Se não puseres o pé fora de casa no sábado, nem tratares de negócios em meu dia santo, se considerares o sábado teu dia favorito, o dia glorioso, consagrado ao Senhor, se o honrares, pondo de lado atividades, negócios e conversações, então te deleitarás no Senhor; eu te farei transportar sobre as alturas da terra e desfrutar a herança de Jacó, teu pai. Falou a boca do Senhor (vv. 13-14).

Os vv. 13-14 falam de outro assunto e foram acrescentados provavelmente posteriormente quando se tornou necessário reafirmar o terceiro mandamento (Ex 20,8; Dt 5,12). O sábado cresceu em importância durante e depois do exílio (cf. Is 56). Como o templo é um espaço reservado a Deus, assim o sábado é um tempo subtraído aos interesses humanos e dedicado a Deus. É conquista da liberdade de não trabalhar de segunda a segunda, mas professar um valor mais alto que a produtividade e a agitação “pé fora de casa” (v. 13; cf. At 1,12: no sábado, era permitido só um quilômetro de passeio fora de casa).

No sábado, o ser humano reencontra os mais profundos valores de sua existência e reparte com irmãos e irmãs o dom da vida; cessando o comércio e o trabalho, os homens podem se encontrar como iguais, para fruírem gratuitamente de um relacionamento que faz crescer juntos. Por isso, o sábado (para nós cristãos é o domingo, devido à ressurreição; cf. Jo 20), deve ser considerado o “dia favorito, … o dia glorioso, … consagrado ao Senhor…”, então “te deleitarás no Senhor” (cf. Sl 37,4; Jó 22,26).

Evangelho: Lc 5,27-32

Jesus não só tem poder de perdoar pecados (5,17-26), mas também transforma o pecador em discípulo (já na vocação de Pedro em 5,8-10 e depois na de Saulo-Paulo em At 9).

Jesus viu um cobrador de impostos, chamado Levi, sentado na coletoria. Jesus lhe disse: “Segue-me.” Levi deixou tudo, levantou-se e o seguiu (vv. 27-28).

Lc copiou o relato de Mc sobre a vocação de “um cobrador de impostos chamado Levi” (v. 27; cf. Mc 2,14: “Levi, filho de Alfeu”; Mt 9,9 substituiu o nome por “Mateus”). Como na vocação dos primeiros discípulos pescadores, Jesus chamou Levi no lugar do trabalho dele, na coletoria de impostos. Só disse: “Segue-me” (v. 27p), e Levi “levantou-se e o seguiu” (v. 28p). Lc acrescentou ainda que “deixou tudo” como os primeiros discípulos (5,11; cf. 9,57-62; 12,33).

Levi, porém, não exercia uma profissão honrada. Os romanos terceirizaram o sistema de arrecadação de impostos; o cargo era recebido em arrendamento (cf. 15,1; 18,10-14; 19,1-10; Mt 5,46; 18,17; 21,21). Para os judeus, os coletores de impostos (publicanos) eram pecadores públicos, porque estavam a serviço do Império Romano, tratavam com não-judeus e abusavam da função, provocando ódio do povo, pois exploravam sob proteção dos soldados romanos. O chamado de Jesus prescinde de preconceito e vence a cobiça que é uma forma de idolatria (cf. Cl 3,5; Ef 5,5; Mt 6,24).

Depois, Levi preparou em casa um grande banquete para Jesus. Estava aí grande número de cobradores de impostos e outras pessoas sentadas à mesa com eles (v. 29).

Na casa dele, Levi faz uma festa de despedida (cf. 1Rs 19,19-21) com muitos colegas de profissão e classe (desclassificados em v. 30 de “pecadores”). Lc, o autor escrevendo na língua grega sofisticada, classifica a festa como “grande banquete” (costume greco-romano; cf. o diálogo sobre amor durante uma festa, na obra de Platão com o título sympósion), o qual demonstra certa riqueza (cf. 16,19; 19,1-10).

Os fariseus e seus mestres da Lei murmuravam e diziam aos discípulos de Jesus: “Por que vós comeis e bebeis com os cobradores de impostos e com os pecadores?” (v. 30).

Jesus e seus discípulos participam do banquete, mas os fariseus ficam escandalizados e “murmuravam” (v. 30). Lc usa esta palavra típica do descontentamento dos israelitas no deserto (cf. 19,7; Ex 15,24; 16,2.7.8s.12; Nm 17,5.10; cf. 1Cor 10,10). A expressão “cobradores de impostos e pecadores” já era bem comum na boca do povo (v. 30p; 7,34; 15,1; Mt 11,19; cf. Lc 18,11; 19,7).

A palavra “fariseu” em hebraico significa “separado” (talvez um apelido, entre eles se chamavam “companheiro”. A palavra “companheiro” quer dizer alguém que compartilha o mesmo pão (do latim: cum pane = com pão).

Os fariseus se sentiam os guardiões da separação que garantia a pureza e com ela a santidade e consagração do povo; entre as separações, a mais importante era entre justos e pecadores (Sl 13,19-22; Pr 29,27). Compartilhar a mesa com pecadores era pecaminoso, pois participar da mesa significa ter comunhão, uma relação amistosa, selada pela benção sobre alimentos.

Jesus respondeu: “Os que são sadios não precisam de médico, mas sim os que estão doentes. Eu não vim chamar os justos, mas sim os pecadores para a conversão” (vv. 31-32).

Jesus responde com a atitude de anfitrião ou convidado especial (cf. Eclo 32,1), comparando-se com um médico de quem os sadios não precisam, mas os doentes (v. 17; cf. Eclo 38,1-15). Sua missão não é ordenar e separar, mas congregar e salvar (cf. Lc 15; Mc 10,45; 11,9; Jo 3,16-17; 10,8,1-11; Gl 3,28). Seu chamado é universal, porque pecadores são todos (cf.1Rs 8,46; Jo 8,7), mesmo os que não querem reconhecê-lo.

Em Mc e Mt, os fariseus reclamam que “o mestre come” com os pecadores, mas em Lc reclamam: “Porque vós comeis e bebeis…?” (v. 30), levantando a questão para a comunhão dentro da comunidade cristã. Como nós estamos lidando com pecadores, com divorciados, casais de segunda união, endividados, prostitutas, alcoólatras, drogados, detentos, etc. (cf. 7,36-50; 15,11-32; 23,39-43)?

Mt apresentou a citação de Os 6,6: “Misericórdia quero, mais que sacrifícios”. Lc, independente de Mt, acrescentou aqui no final o detalhe de que Jesus chama os pecadores “para conversão” (v. 32), quer dizer que não chama para eles fazerem parte da comunidade e continuarem no pecado e na corrupção, mas é preciso converter-se sempre (cf. a conversão do chefe dos cobradores de impostos em 19,1-10).

O site da CNBB comenta: Nós queremos afastar os pecadores da Igreja e isso é o maior erro que podemos cometer. Jesus acolhia todos os pecadores e pecadoras e comia com eles, sendo que muitas vezes como, por exemplo, no evangelho de hoje, os chamava para ser seus seguidores, e até mesmo apóstolos. A nossa prática, no entanto, está na maioria das vezes fundamentada na discriminação das pessoas por causa de determinados tipos de pecado, e isso faz com que sejamos iguais aos fariseus do tempo de Jesus, que discriminavam os pecadores, os expulsavam do Templo e consideravam impuras todas as pessoas que se relacionavam com eles. Devemos acabar com o farisaísmo que muitas vezes marca a Igreja na discriminação dos pecadores e termos a atitude da acolhida que Jesus tinha.

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