29 de janeiro de 2017 – 4º Domingo Ano A

 

1ª Leitura: Sf 2,3; 3,12-13

A 1ª leitura foi escolhida em vista das bem-aventuranças no evangelho de hoje que promete o reino de Deus aos “pobres em Espírito” (Mt 5,3). Esta expressão corresponde aos pobres e humildes na profecia de Sofonias.

Este profeta é contemporâneo de Jeremias e atua entre 640 e 620 a.C. durante a menoridade do rei Josias, colocado no trono com apenas oito anos pelo “povo da terra” (2Rs 21,24; 22,1). A Nova Bíblia Pastoral (p. 1155) comenta: Este grupo, defensor da dinastia de Davi, era constituído de grandes proprietários da terra, que com outros dirigentes de Jerusalém oprimiam e exploravam o povo (cf. Ez 22,29). A população camponesa tinha que fornecer alimentos para manter o comércio e sustenta o luxo e mordomia da core e das elites (1,8).

Sofonias denuncia a concentração de riquezas na capital e anuncia um terrível “Dia do Senhor” (1,7.14-18; 2,2): “Eu vou acabar com tudo o que existe sobre a face da terra…” (1,2). Não é essencialmente o fim do mundo e da história, mas a transformação do povo de Deus e o fim de uma era de corrupção e idolatria (adoração de outros deuses, de dinheiro e de poder).

A única possibilidade de salvação são os “pobres da terra” (2,3) que, destituídos do poder e riqueza, depositam sua confiança no Senhor. São eles os únicos que poderão formar um “resto de gente humilde” (3,12) para conduzir na história o projeto de Deus, e assim fazer com que o Dia do Senhor se torne um dia de alegria e restauração e não de destruição (3,9-20; acréscimo posterior do pós-exílio).

Buscai o Senhor, humildes da terra, que pondes em prática seus preceitos; praticai a justiça, procurai a humildade; talvez achareis um refúgio no dia da cólera do Senhor (2,3).

Em 2,1-3 o profeta se dirige a dois grupos opostos: um é o “povo desprezível”, que é ameaçado pelo “incêndio do dia da cólera do Senhor” (v. 2). Aliás, o “dies irae” tornou-se uma peça clássica nas missas de réquiem.

Outro grupo são “os pobres/humildes da terra”, praticantes do direito. Eles são convidados a “buscar” o Senhor e a pobreza/humildade (partilha e solidariedade; cf. Pr 15,33; 18,12; 22,4), não os ídolos nem potências humanas. No dia fatal terão um “refúgio”, formarão uma exceção no juízo universal; como Noé, “justo e honrado” (Gn 5,8s), que se salvou na arca com sua família (cf. Is 26,20s). Aliás, “Sofonias” (Zefanya) significa: “o Senhor (Javé) protege” ou “esconde”.

A Nova Bíblia Pastoral (p. 1156) comenta: A mensagem e a linguagem de Sofonias foram influenciadas pelo grupo do profeta Amós (cf. Am 5,14-15), quanto ao “Dia de Javé” (Am 5,20) e aos “pobres da terra” (Am 8,4), ao “direito” e à “justiça” (Am 5,7).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 964) comenta: Os “humildes” opõem-se em Sf, a todos aqueles que encontraram força em si mesmos: os dignitários (1,8-9), os ricos (1,10-11), que não precisam de Deus (1,12). O profeta revira os valores: a única atitude que pode manter o homem em vida é “procurar” o Senhor.

A Bíblia de Jerusalém (p. 1796) comenta: “pobres” ou “humildes”, em hebraico ‘anawîm.  Os pobres ocupam um lugar especial na Bíblia. Se a literatura sapiencial considera, às vezes, a pobreza, rêsh, como consequência da preguiça, Pr 10,4 (mas cf. Pr 14,21; 18,12), os profetas sabem que os pobres são antes de tudo oprimidos, aniyyîm, e reclamam justiça para os fracos e os pequenos, dallîm, e para os indigentes, ‘ebyônîm (Am 2,6ss, Is 10,2; cf. Jó 34,28s; Eclo 4,1s; Tg 2,2s). O Deuteronômio, na linha de Ex 22,20-26; 23,6, lhe faz eco com sua legislação humanitária (Dt 24,10s). Com Sofonias, o vocabulário da pobreza toma uma coloração moral e escatológica 3,11s; cf. Is 49,13; 57,14-21; 66,2; Sl 22,27; 34,3s; 37,11s; 69,34; 74,19; 149,4; ver também Mt 5,3+; Lc 1,52; 6,20; 7,22). Os ‘anawîm são, em resumo, os israelitas submissos a vontade divina. Na época da Setenta, o termo ‘anaw (ou ‘anî) exprimia cada vez mais uma ideia de altruísmo (Zc 9,9; cf. Eclo 1,27). Aos “pobres” será enviado o Messias (Is 61,1; cf. 11,4; Sl 72,12s; Lc 4,18). Ele mesmo será humilde e manso (Zc 9,9; cf. Mt 11,29; 21,5) e até será oprimido (Is 53,4; Sl 22,25).

E deixarei entre vós um punhado de homens humildes e pobres. E no nome do Senhor porá sua esperança o resto de Israel. Eles não cometerão iniquidades nem falarão mentiras; não se encontrará em sua boca uma língua enganadora; serão apascentados e repousarão, e ninguém os molestará (3,12-13).

Este oraculo foi acrescentado no pós-exílio, anuncia a realização do ideal proposto em 2,3 e oferece uma das descrições mais perfeitas do espirito de pobreza no AT (Antigo Testamento).  A profecia de Sofonias foi relida pelo “resto de Israel” (cf. Is 1,9; 4,3; Am 5,15 etc.) que experimentou a catástrofe do exilio provocado pelas iniquidades, mentiras e soberba dos seus governantes em Jerusalém.

Para os redatores, “o resto da casa de Judá”, “o resto do meu povo”, “um povo pobre e fraco, o resto de Israel” (2,7.9; 3,12), é sinal de ”esperança” nos tempos difíceis de calamidade nacional: a destruição de Jerusalém, o exilio e a dominação dos babilônios e depois dos persas.

Por meio desse resto, Javé restaura Israel, onde o povo pobre, humilde e justo pode viver em plenitude (cf. Am 9,13-15; Ez 34, 14s; Sl 23; Is 65,17-25; Ap 14,5; 21,1-22,5) em Jerusalém (cf. v. 11) como a cidade da justiça. Essa transformação será feita a partir de “um punhado (resto) de homens humildes e pobres (um povo pobre e fraco)”, a semente do renovado Israel (cf. 2,3; Jr 40,11), pois Deus ama e protege o povo pobre, e está no meio dele (3,5.15.17).

A Bíblia do Peregrino (p. 2273) comenta: O povo novo é o interpelado em 2,3. A escolha é uma seleção. Nada de bravatas; antes, ser humilde e refugiar-se no Senhor. Protegido diretamente pelo Senhor, o rebanho humilde poderá viver em paz. É o povo eleito do futuro. Este versículo é capital.

2ª Leitura: 1Cor 1,26-31

Nos domingos do Tempo Comum, a 2ª leitura apresenta trechos em sequência contínua da carta de um apóstolo, sem nexo com o evangelho ou a 1ª leitura. Hoje, porém, o texto de Paulo que fala da humildade da comunidade em Corinto que combina muito bem com os “pobres em Espírito” do evangelho e dos “humildes” na profecia de Sofonias.

Na 2ª leitura de hoje, Paulo aplica sua teologia da cruz (vv. 18-25, cf. sexta-feira da 21ª semana do ano ímpar) ao caso concreto da comunidade de Corinto. A Nova Bíblia Pastoral (p. 1388) comenta a situação: Paulo havia partido de Atenas após uma experiência fracassada com os filósofos gregos (At 17,16-34). Agora, em Corinto, ele trabalha com uma comunidade pobre da periferia da cidade. Dessa dupla experiência, cresce a convicção de que Deus escolheu preferencialmente as pessoas pobres, simples e marginalizadas, pois é na fraqueza que se manifesta a força de Deus (2Cor 12,9). A partir daí, segue a argumentação através de um jogo de contrários ou antíteses. Significa que há uma contradição entre o projeto de Deus e o projeto humano. A cruz parece loucura, sinal de fraqueza e caminho de perdição. Mas Deus a transformou em sabedoria, sinal de força e caminho de salvação. No final, Paulo aplica suas considerações ao caso concreto da comunidade de Corinto, onde essa realidade pode ser constatada (2Cor 10,17).

Considerai vós mesmos, irmãos, como fostes chamados por Deus. Pois entre vós não há muitos sábios de sabedoria humana nem muitos poderosos nem muitos nobres (v. 26).

O paradoxo descrito no vv. anteriores, a força do fraco, o poder do crucificado (vv. 18.24), se prolonga e se manifesta na comunidade de Corinto, composta de gente socialmente sem importância (Tg 2,5; Mt 11,25): não são muitos os intelectuais, os poderosos, a nobreza.

“Sabedoria humana”, lit. segundo a carne (cf. Rm 1,3, etc.), isto é, de um ponto de vista meramente humano. Como outrora os escravos no Egito (Dt 7,7-8; Is 49,7), Deus escolhe agora os contrários: gente iletrada, sem influência, sem títulos.

Na verdade, Deus escolheu o que o mundo considera como estúpido, para assim confundir os sábios; Deus escolheu o que o mundo considera como fraco, para assim confundir o que é forte (v. 27).

Muitas vezes na história bíblica, Deus escolheu pessoas fracas e humildes para tarefas importantes: os migrantes Abraão e Sara em Gn 12,1-3; o fugitivo Moisés em Ex 3-4; o pastor Davi em 1Sm 16; profetas em Jr 1,6; Is 6,5; 52,13-55,12; Maria e José (Mt 1-2; Lc 1-2); apóstolos (cf. Lc 5,8; Mt 9,9-13); cf. Eclo 11,1-6; Jz 7,2; 1Sm 2; Jó 5,11; Lc 1,46-55; 6,20-26; 16,19-31).

Na Idade Média, só os palhaços na corte tinham a liberdade de dizer certas verdades sobre o rei. Na sua apologia de 2Cor 10-11, Paulo toma ao papel de palhaço fazendo um elogio próprio como seus adversários faziam (cf. 2Cor 11,16-21).

Deus escolheu o que para o mundo é sem importância e desprezado, o que não tem nenhuma serventia, para assim mostrar a inutilidade do que é considerado importante, para que ninguém possa gloriar-se diante dele (vv. 28-29).

“Deus escolheu o que para o mundo é sem importância”, lit. sem nascimento, por oposição às pessoas de famílias “nobres” do v. 26; “para assim mostrar a inutilidade do que é considerado importante”, ou: “para reduzir ao nada o que é”. A antítese dos filósofos, “o ser e o não ser” adquire outro sentido na ordem da salvação: ser cristão é ser nova criação (2Cor 5,17), existir em Cristo (v. 30).

Continua a antítese confundir/gloriar-se (vv. 19-21.27): com o fracasso, Deus confunde ou faz fracassar o forte; assim ninguém pode gloriar-se diante de Deus (Jr 9,22-23 sobre a falsa glória e a autêntica; cf. Dt 8,17-18), “para que ninguém (lit. nenhuma carne no sentido nenhuma criatura, cf. Rm 1,3) possa gloriar-se diante dele”.

É graças a ele que vós estais em Cristo Jesus, o qual se tornou para nós, da parte de Deus: sabedoria, justiça, santificação e libertação, para que, como está escrito, “quem se gloria, glorie-se no Senhor” (vv. 30-31).

“Vós estais em Cristo Jesus”, lit. “existis”. Este verbo tem sentido enfático e deve ser tomado no sentido rigoroso: Deus vos escolheu; vós existis agora em Jesus Cristo, vós que outrora não existíeis (sem nascimento, v. 28) aos olhos do mundo (vv. 26-29), ao passo que os que existem segundo o mundo estão reduzidos a nada (v. 28). É dessa existência nova em Jesus Cristo que vos deveis gloriar (v. 31) e tão-somente dela (cf. v. 29). Portanto, orgulhai-vos não do que sois por vós mesmos aos olhos dos homens, mas do que sois em Jesus Cristo aos olhos de Deus (vv. 29-31).

À sabedoria presunçosa da inteligência humana, com pretensões a ser regra absoluta, opõe-se a sabedoria provindo de Deus (“da parte de Deus”): em ação no desígnio de Deus, encarnada em Jesus, ela se torna manifesta na eleição dos cristãos de Corinto. A sabedoria cristã não é o resultado de um esforço humano “segundo a carne” (v. 26). Ela se encontra num ser humano que apareceu “na plenitude dos tempos” (Gl 4,4), Cristo, e que é preciso “ganhar” (Fl 3,8), para encontrar-se nele “todos os tesouros da sabedoria e da ciência” (Cl 2,3). Para os chamados, “é Cristo, poder e sabedoria de Deus” (v. 24).

Essa sabedoria implica uma salvação total: “justiça, santificação, redenção”. Estas três últimas palavras constituem os temas fundamentais da carta em elaboração na mente do apóstolo (cf. Rm 1,17; 6,19.22; 3,24).

A Bíblia do Peregrino (p. 2740) comenta: Por meio de Jesus Messias comunicam-se aos fiéis qualidades e ações de Deus: a sabedoria como sentido da vida (cf. Eclo 1,10), a justiça que nos faz justos em nossa relação com Deus (esta justificação é tema central da carta aos Romanos, cf. Jr 23,5s), a consagração (cf. Jo 17,19), o resgate como libertação da escravidão (cf. Dt 4,6.8; Sl 130,7; Rm 3,24; Gl 5,1).

“Quem se gloria, glorie-se no Senhor” Paulo cita Jr 9,22-23 livremente (repetida na sua apologia em 2Cor 10,17; cf. 2Cor 10,8.13.15-17;11,16-18.30; 12,1.5s.9).

Evangelho: Mt 5,1-12a

Nos próximos domingos ouvimos o primeiro de cinco discursos de Jesus no evangelho de Mateus, hoje o início do famoso “sermão da montanha” que abrange três capítulos (Mt 5-7) e nos será apresentado até o 9º domingo do Tempo Comum. Em Mt, Jesus expôs o espírito novo do reino de Deus (3,2; 4,17) neste discurso inaugural.

Em Lc, o mesmo discurso, porém menor, acontece “na planície” (Lc 6,17.20-49). Como se pode verificar nas diferenças entre os evangelhos de Mt e Lc (p. ex. na infância de Jesus e nas aparições do ressuscitado), ambos os evangelistas não se conhecem, escreveram independentemente um do outro, mas copiaram grande parte do evangelho mais velho, de Mc. Mas em Mc não temos este discurso. A teoria das duas fontes diz que Mt e Lc usaram ainda outra fonte escrita (além de Mc) que se perdeu na história. Os peritos da Bíblia a reconstruíram e a chamam de “Q” (da palavra alemã Quelle = fonte): uma coleção catequética de palavras (não de ações, mas de parábolas, ensinamentos) de Jesus (e algumas de João Batista). Outra teoria propõe que um redator (Deutero-Mc) poderia reeditado Mc com algumas mudanças e acréscimos (material de Q), porque chama atenção o fato de que o sermão está inserido, em Mt e Lc, praticamente no mesmo lugar da sequência de Mc que informa de onde veio a grande multidão que seguia Jesus: de todo Israel e até regiões vizinhos, “vinda da Galileia, da Judeia… até Sidônia” (Mc 3,7-10: Lc 6,17-19; Mt 4,23-25).

Vendo Jesus as multidões, subiu ao monte e sentou-se. Os discípulos aproximaram-se, e Jesus começou a ensiná-los (v. 1).

“Começou a ensiná-los” (vv. 1-2; lit. “abriu a boca” (cf. Is 53,7; Ez 3,27; Sl 78,2). Jesus não se retira da multidão (cf. 14,23p) e nem se senta apenas para descansar. A introdução própria de Mt quer lembrar a seus leitores judeu-cristãos a autoridade tradicional de Moisés no monte Sinai (cf. Ex 19-20). O sermão da montanha é como a constituição de um novo povo de Deus com Jesus promulgando a nova lei. Os rabinos (mestres judaicos) costumam sentar-se ao ensinar (daí a palavra “catedral”, é o lugar onde está a cátedra=cadeira=sede do bispo). Todo discurso é dirigido não só aos discípulos, como pode parecer aqui, mas ao povo todo, como consta no final do sermão (7,28).

O início desta nova (interpretação da) Lei não são mandamentos como na antiga Lei (no Sinai era o decálogo, ou seja, os 10 mandamentos; cf. Ex 20), mas felicitações: as oito (ou nove, com v. 11) bem-aventuranças. Em Mt, Jesus usa a terceira pessoa (“os”, só em v. 11 muda para “vós”), em Lc a segunda (“vós”). Enquanto Mt apresenta oito (ou nove) bem-aventuranças como caminho de vida ética e espiritual (Mt 5,3: “pobres em espírito”) e com promessas de recompensa celeste, Lc só conhece quatro bem-aventuranças (Lc 6,20-23) e preserve mais a versão original e social, a mudança de situações entre esta e a futura (cf. 16,25). Esta opinião de que a versão de Lc é mais perto das palavras originais de Jesus se baseia na observação de que é mais provável um evangelista (Mt) acrescentar algo às palavras de Jesus do que diminuir ou tirá-las (também os quatro ais em Lc 6,24-26 devem ser um acréscimo).

“Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos Céus. Bem-aventurados os aflitos, porque serão consolados. Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra (vv. 3-6).

Em Lc, os “pobres” (economicamente, cf. Dt 15,1-11; Is 29,10; Sl 72,4.13; 74,21; 1 Sm 2,8 e Lc 1,52-53) são também os “famintos” (Sl 58,7; Sl 107,9; Jl 2,26) e os “aflitos” que choram (Is 25,8; 30,19; Sl 56,9; 126,5-60), e sua situação está relacionada à posse do reino. Mt destaca mais a ética e espiritualiza, retrata as atitudes do próprio Jesus nestas bem-aventuranças indicando um caminho para qualquer discípulo que queira seguir.

O AT (Antigo Testamento) às vezes expressava felicitações como essas falando de piedade, de sabedoria e de prosperidade (Sl 1,1-2; 33,12; 127,5-6; Pr 3,3; Eclo 31,8; etc.). No espírito dos profetas, Jesus lembra que também os pobres participam das suas bênçãos: as três primeiras bem-aventuranças (Mt 5,3-5; Lc 6,20-21) declaram que pessoas comumente tidas como infelizes e amaldiçoadas são felizes, estão aptas para receber a benção do reino. As bem-aventuranças seguintes se referem mais diretamente a atitude moral do homem. Outras bem-aventuranças de Jesus se encontram em Mt 11,6; 13,16; 16,17; 24,46; Lc 11,27s; etc. (cf. Lc 1,45; Ap 1,3; 14,13; etc.)

Cristo retoma a palavra “pobre” com o sentido moral que já se percebe em Sofonias (cf. Sf 2,3), explicitado em Mt 5,3 pela expressão “em espírito”, que não ocorre em Lc 6,20. Despojados e oprimidos, os “pobres” ou os “humildes” estão disponíveis para o reino dos céus (cf. Lc 4,18; 7,22; Mt 11,5; Lc 14,13; Tg 2,5). A “pobreza” sugere a mesma ideia que a “infância espiritual”, necessária para entrar no reino (Mt 18,1; Mc  9,33s, cf. Lc 9,46; Mt 19,13; 11,25), o ministério revelado aos “pequeninos” (cf. Lc 12,32; 1Cor 1,26s). Aos “pobres” corresponde ainda os “humildes” (Lc 1,48.52; 14,11; 18,14; Mt 23,12; 18,4), os últimos em oposição aos primeiros (Mc 9,35), os pequenos em oposição aos grandes (Lc 9,48; cf. Mt 19,30p; 20,26p; Lc 17,10). Embora a expressão de Mt 5,3 enfatize o espírito da pobreza tanto no rico como no pobre, o que Cristo quer salientar é uma pobreza efetiva particularmente para seus discípulos (Mt 6,19s; cf. Lc 12,33s; Mt 6,25p; 4,18s, cf. At 2,44s; 4,32s). Ele mesmo dá o exemplo de pobreza (Lc 2,7; Mt 8,10p) e de humildade (Mt 11,29; 20,28p; Mt 21,5; Jo 13,12s; cf. 2Cor 8,9; Fl 2,7s) identificando-se com os pequeninos e com os infelizes (Mt 25,45, cf. 18,5p).

Os “aflitos” comovem a Deus (cf. Ex 3,17; Is 48,10; 61,1-3) e “serão consolados” (v. 4; cf. Is 40,1; 2Cor 1,3-7; em Lc 6,21 “haverão de rir”).

Própria de Mt é a “herança” da terra aos “mansos”, aos injustamente despossuídos (v. 5; cf. Sl 37,11). Alguns anos antes da redação do evangelho por volta de 80 d.C., a Guerra Judaica, os seja, a luta violenta contra os romanos para conseguir a independência de Israel, acabou em derrota (destruição de Jerusalém e do templo em 70). Esse fato reforçou a posição pacífica de cristãos contra o movimento nacionalista dos judeus (p. ex. zelotas; cf. o conselho de Gamaliel em At 5,34-39).

Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados (v. 6).

Mt não só fala dos famintos, mas dos que têm “fome e sede de justiça” (v. 6). Como metáfora, fome e sede podem ter como objetivo o próprio Deus (Sl 42,2; 63,2: cf. Jo 6), aqui é a justiça que corresponde ao reino de Deus (cf. 5,20; 6,1.25.31.33).

Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia (v. 7).

A “misericórdia” (v. 7) é um atributo principal de Deus (cf. Ex 34,6) e é aconselhada também ao homem, inclusive como bem-aventurança em Sl 41,2. O passivo tem Deus como agente (cf. 6,12; 18,23-35; Pr 14,31; 19,17).

Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus (v. 8).

Os “puros de coração” (v. 8) são sinceros com Deus e com as pessoas (cf. Sl 24,4; Pr 12,11), não são corruptos. Esta pureza interior se opõe à pureza meramente externa e ritualista (23,25-28). “Verão a Deus”, ver a Deus é desejo e esperança suprema (Sl 11,7; 17,15; 63,3) que nem Moisés alcançou (Ex 33,20; cf. Jo 1,14.18; 14,9). Também em 1Jo 3,2s se relaciona a visão beatífica à pureza.

Bem-aventurados os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus (v. 9).

A “paz” e não a violência (cf. 5,38-48; 26,52) faz parte essencial das profecias sobre o messias (cf. Is 2,2-5; 9,5; 11,1-9; 42,1-4). Como o messias (“Cristo”) é o Filho de Deus com o Espírito de paz (cf. o símbolo da pomba em 3,16s), seus discípulos (“cristãos”, At 11,26) também “serão chamados filhos de Deus”.

Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos Céus. Bem-aventurados sois vós, quando vos injuriarem e perseguirem, e mentindo, disserem todo tipo de mal contra vós, por causa de mim. Alegrai-vos e exultai, porque será grande a vossa recompensa nos céus” (vv. 10-12a).

Aos “perseguidos por causa da justiça” (v. 9), por serem justos ou vítimas inocentes (cf. Sb 2), pertence o reino como em v. 3.

Em v. 11, Mt passa para a segunda pessoa (“vós”), acrescentando uma ampliação à oitava bem-aventurança. A chave está na mudança da causa, agora “sois vós”, perseguidos “por causa de mim”, Jesus Cristo (vv. 11-12). Mas “alegrai-vos e exultai, porque será grande a vossa recompensa nos céus, pois foi assim que perseguiram os profetas que vieram antes de vós” (a segunda parte deste v. 12 é omitida pela liturgia de hoje, talvez por querer um final positivo ou um final atualizado: antes de nós hoje não vieram os profetas do AT, mas 2000 anos de história da Igreja). Os discípulos de Jesus são sucessores dos profetas. No AT, os profetas foram perseguidos por cumprirem sua missão (11,47; 2Cr 36,16), desde Elias por Jezabel (1Rs 19) até a figura exemplar de Jeremias, “o profeta queimado”, passando por Amós (Am 7). A perseguição por causa de Jesus e seu evangelho é uma constante da Igreja desde a época dos Atos dos Apóstolos e tem lugar importante no Apocalipse (cf. 10,23; 23,34; 1Pd 4,4.12-19).

No estado laico de hoje, os cristãos não são perseguidos, mas às vezes discriminados quando querem se manifestar publicamente (alega-se que religião seja coisa apenas privada) ou por defender a ética frente à corrupção da maioria. Mas ainda existe perseguição de cristãos em alguns países (p. ex. islâmicos, comunistas).

O site da CNBB comenta: O sermão da montanha nos mostra a moral da Nova Aliança e começa com as bem-aventuranças, apresentadas no Evangelho de hoje, e que nos mostram as motivações e as virtudes que nos são necessárias para que assumamos os valores do Reino de Deus e possamos viver de forma madura o que nos é proposto por Jesus.

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