29 de junho de 2016 – 13ª semana 4ª feira

Leitura: Am 5,14-15.21-24

Continuamos nesta semana com as profecias de Amós, um vaqueiro do reino do Sul (Judá) chamado por Deus para criticar as injustiças sociais no reino do Norte (Israel). Depois de guerras entres os dois pequenos reinos, a grande potência Assíria interveio e o território de Israel ficou reduzido, só restou pouca terra ao redor da capital Samaria (cerca de 730 a.C.).

Buscai o bem, não o mal, para terdes mais vida, só assim o Senhor Deus dos exércitos vos assistirá, como tendes afirmado. Odiai o mal, amai o bem, restabelecei a justiça no julgamento, talvez o Senhor Deus dos exércitos se compadeça do resto da tribo de José (vv. 14-15).

Nesta situação difícil, as pessoas em Israel buscavam a assistência do “Senhor Deus dos exércitos”. Israel crê que sua eleição garante uma proteção incondicionada de Javé (5,18; 9,10; Mq 3,11), mas Amós exorta: a eleição está ligada à responsabilidade e à ética (cf. leitura de ontem e anteontem).

Como condição de salvação, Amós não responde com uma doutrina teológica nem recomenda sacrifícios ou exercícios religiosos, mas responde com o princípio de toda ética: “buscar o bem e não o mal” (cf. Os 6,6; Mq 6,6-8; cf. a regra de ouro em Mt 7,12 e o critério da misericórdia no juízo final em Mt 25,31-46).

Bem e mal são especificados no terreno da justiça (cf. a acusação em 2,6s; 5,12 etc.). Tal é a condição para que o Senhor esteja com eles. Mas, como já violaram tais normas, só resta a conversão eficaz e esperar pela “compaixão” e perdão do Senhor. Mencionar o “resto” (cf. 1,8) supõe alguma catástrofe já acontecida: o reino do norte, diminuído por todos os castigos que Javé lhe infligiu (4,6-11) e vai ainda infligir (3,11; 5,3). Tudo parece perdido para Israel, culpado e impenitente (cf. 3,12).

Amós fala ao “resto da tribo de José”. José é ancestral do reino do Norte (duas tribos no centro do reino têm o nome dos filhos de José: Efraim e Manassé, cf. Gn 48; Os 11,3). Pela primeira vez aparece aqui o uso profético da doutrina do “resto salvo”: Israel infiel será castigado, mas porque Deus ama seu povo, um pequeno resto escapará da espada dos invasores (cf. Is 4,3; 6,13; 7,3; 10,19-21; 28,5s; 37,4.31s; Mq 4,7; 5,2; Sf 2,7.9; 3,12; Jr 3,14; 5,18; Ez 5,3; 9). Mas enquanto para Isaías esta salvação é certa, ela permanece, aqui, muito hipotética: pode ser concedida a quem se arrepende, mas depende exclusivamente da liberdade da graça de Deus. Mas esta revelação inesperada e decisiva trazida pelos profetas permanecerá: a esperança (e depois a certeza no anexo posterior, cf. 9,8) de que um resto será salvo.

Depois da invasão do reino do Sul e da destruição de Jerusalém, o resto se encontrará entre os exilados e se converterá (Ez 6,8-10; 12,,16; Br 2,13; Dt 30,1s) e Deus quis reuni-lo para a restauração messiânica (Is 11,11.16; Jr 23,3; 31,7; 50,20; Ez 20,37; Mq 2,12s). Depois de voltar ao exílio, o resto, sendo infiel de novo, será ainda dizimado e purificado (Zc 1,3; 8,11; 13,8s; Ag 1,12; Ab 17; Jl 3,5). O messias será o verdadeiro rebento do novo e santificado Israel (Is 11,1.10; cf. 4,2; Jr 23,3-6). As nações pagãs, porém, não terão “resto” (Am 1,8; Ab 18; Is 14,22.30; 15,9; 16,14; Ez 21,37).

Aborreço, rejeito vossas festas, não me agradam vossas assembleias de culto. Se me oferecerdes holocaustos, não aceitarei vossas oblações e não farei caso de vossos gordos animais de sacrifício. Livra-me da balbúrdia dos teus cantos, não quero ouvir a toada de tuas liras. Que a justiça seja abundante como água e a vida honesta, como torrente perene (vv. 21-24).

Esta denúncia das cerimônias litúrgicas (cf. 4,4-5; 5,5) coloca um problema capital e duradouro: a relação entre culto e justiça social. Tema atestado na literatura profética (Is 1,10-20; Jr 7), nos salmos (Sl 50), na literatura sapiencial (Pr 15,8; 21,3.27; Eclo 34,18-35,8). Se o homem pratica o culto que ele inventou para garantir a si o favor de Deus, sem mudar de conduta, essa prática é farsa, é tentativa de suborno; Deus não aceita. A injustiça vicia o culto. O povo que presta culto a Deus deve também praticar a justiça social, sinal da solidariedade entre os membros da aliança (cf. 2,6-8; 5,7.12; 8,4-8). Em v. 24 poderia traduzir: “e o direito brotará…”.

“Holocaustos” são sacrifícios “queimados inteiros” no altar para Deus (Lv 1; cf. Gn 22,2), os “gordos animais” são os melhores para o sacrifício, porque a gordura era considerada a melhor parte (Lv 3,3-5; 4,8-10; cf. Eclo 47,2; Lc 15,23); as “oblações” são oferendas de produtos do solo (Lv 2).

A abundância e a escolha dos termos evocam aqui o inchaço de um culto que se tornou o orgulho de Israel. As cerimônias religiosas incluíram cantos e música (1Sm 10,5; 2Sm 6,5.15). Observe também os pronomes possessivos “vossos…, teus…”, este culto não é de Deus e lhe inspira apenas horror e desgosto. O que ele pede é a obediência à sua lei de justiça (v. 24) e um culto despojado pelo qual se exprime a total dependência dele, como no tempo de Israel no deserto (v. 25, omitido pela leitura de hoje). Em At 7,42s, o diácono Estevão citará os vv. seguintes 25-27 que anunciam a deportação do povo para Assíria (vv. 5.27; cf. 2Rs 17).

 

Evangelho: Mt 8,28-34

Ouvimos hoje um exorcismo de Jesus em terra pagã. Mt copia quase todo conteúdo do evangelho de Mc, mas geralmente o resume um pouco. Em Mc 5,1-20, a primeira atuação de Jesus em terreno pagão era logo um exorcismo de dimensão colossal e descrito com muitos detalhes e vivacidade. Mt é bem mais sóbrio e reduz este relato de Mc pela metade (Mt já omitiu o exorcismo na sinagoga e Cafarnaum narrado por Mc 1,21-28).

Não só de Jesus, mas também de outras pessoas contemporâneas se contava este tipo de curas, principalmente na cultura helenista. No Antigo Testamento, poucos demônios são mencionados, pertencem às crenças populares ou são às vezes identificados com deuses estrangeiros (cf. Lv 16,8.10; 17,7; Dt 8,15; Is 13,21; 30,6; 34,12.14; 1Rs 9,8; Sf 2,15; Ps 91,6; 106,37; cf. Gn 6,1-4). A música de Davi curou o rei Saul de um espírito mau (cf. 1Sm 16,14-23). Para o evangelista Mt e Paulo, a obediência (Mt 7,22s) e a caridade (1Cor 12,28-14,1) valem mais do que o exorcismo.

Havia um gênero de relatos de exorcismo com os seguintes passos: a descrição e a aproximação do possuído (v. 28), o conhecimento sobrenatural da identidade (v. 29), a revelação do nome (“Legião” em Mc 5,9, omitido por Mt), a ordem do exorcista (v. 32), a demonstração da cura através de um gesto do demônio (ex.: gritar, sacudir; aqui a manada dos porcos se afoga, vv. 30-32) e do comportamento normal do ex-possesso (Mc 5,15, omitido por Mt), a reação do povo ao redor (vv. 33s).

Quando Jesus chegou à outra margem do lago, na região dos gadarenos, vieram ao seu encontro dois homens possuídos pelo demônio, saindo dos túmulos. Eram tão violentos, que ninguém podia passar por aquele caminho (v. 28).

Depois da tempestade perigosa no mar da Galileia (lago de Genesaré; cf. evangelho de ontem), Jesus e seus discípulos chegaram à “outra margem” do lago, isto é, à terra estrangeira, “na região dos gadarenos”. Mc 5,1 e Lc 8,26 trazem aqui o termo “gerasenos” ou “gergesênios” que não combinam bem com a geografia. Como Gerasa fica 50 km distante do lago, Mt mudou para “gadarenos”. Gadara, na Transjordania, 10 km a sudeste do lago Genesaré, também fica na Decápole (região das “dez cidades” de cultura e língua gregas). Importa que, para os judeus, é terra dos pagãos.

Mt tem o costume de duplicar as pessoas: em Mc, era um só endemoniado, descrito com muitos detalhes, em Mt são dois endemoniados, em lugar de um só como em Mc e Lc. Do mesmo modo, Mt apresenta dois cegos em Jericó (20,29-31) e dois cegos em Betsaida (9,27-31; aqui duplicou até o milagre que não passa de um decalque do anterior). Esse desdobramento de personagens é um recurso de estilo dentro da liberdade de expressão artística (cf. Lc 24,4; Mt 26,60; Lc 7,18). Mt como judeu-cristão poderia pensar no testemunho que é só vale com duas pessoas (18,16; cf. Dt 19,15).

Eles então gritaram: “O que tens a ver conosco, Filho de Deus? Tu vieste aqui para nos atormentar antes do tempo?” (v. 29).

As palavras “aqui” e “antes do tempo” são peculiares a Mt, nesta narrativa. A palavra “aqui” acentua que Jesus age em território pagão, “antes do tempo” pode se referir ao tempo do juízo final, em que os demônios serão todos reduzidos a impotência. Mas em 10,5, Jesus envia os discípulos: “Não tomeis o caminho dos gentios, nem entreis em cidade de samaritanos. Dirigi-vos, antes, às ovelhas perdidas da casa de Israel.” Entendemos “aqui” e “antes do tempo” dentro do esquema do evangelho de Mt como antecipação da libertação de todas as nações, que chegará só depois da sua ressurreição (28,19s). Antes, Jesus tem de ser revelado a Israel como seu messias prometido pelos profetas. Depois, a salvação se dirige também aos cristãos de origem pagã.

A Bíblia do Peregrino (p.2335) comenta: Segundo a concepção da época, o mundo dos espíritos perniciosos ou malévolos se associa com o contaminado que mancha também o território pagão, com o doente que contagia (Lv 11,7; Sl 91,6), com o mundo infernal que devora (Jó 18,13). Os demônios sentem a presença de Jesus, reconhecem-no e o confessam filho de Deus, ou Messias. Confissão pesarosa e forçada como a dos inimigos derrotados no AT, “e saberão que eu sou o Senhor” (frequente em Ez). Confissão de impotência e medo, que não vale: “também os demônios creem e tremem de medo” (Tg 2,19).

A Bíblia de Jerusalém (p.1853) comenta: Enquanto esperam o dia de julgamento, os demônios gozam de certa liberdade para exercerem as suas sevícias na terra (Ap 9,5), o que eles fazem de preferência possuindo seres humanos (12,43-45). Frequentemente, essa possessão vem acompanhada de uma doença, que como resultado do pecado (9,2), é outra manifestação da ação de satanás (Lc 13,16). Assim os exorcismos do evangelho que, em alguns casos, como aqui, se apresentam no estado puro (cf. 15,21-28p; Mc 1,23-28p; Lc 8,2) apresentam-se, muitas vezes, sob a forma de cura (9,32-34; 12,22-24; 14-18p; Lc 13,10.17). Por seu poder sobre os demônios, Jesus destrói o império de satanás (12,28p; Lc 10,17-19; cf. Lc 4,6; Jo 12,31) e inaugura o reino messiânico do qual o Espírito Santo é a promessa distintiva (Is 11,2; Jl 3,1s). Se os homens recusam a entendê-lo (12,24-32), os demônios as conhecem bem, como aqui e ainda em Mc 1,24p; 3,11p; Lc 4,41; At 16,17; 19,15. Jesus comunica esse poder de exorcismo aos seus discípulos juntamente com o poder de cura miraculosa (10,1-8p), que se prende àquele (8,3; 4,24; 8,16p ; Lc 13,32).

Ora, a certa distância deles, estava pastando uma grande manada de porcos. Os demônios suplicavam-lhe: “Se nos expulsas, manda-nos para a manada de porcos.” Jesus disse: “Ide.” Os demônios saíram, e foram para os porcos. E logo toda a manada atirou-se monte abaixo para dentro do mar, afogando-se nas águas (vv. 30-32).

Do relato de Mc 5,1-20, Mt omitiu não só a descrição psicológica do possuído e sua conduta, também omite o diálogo (o nome dos demônios, “Legião”, talvez fosse político demais após a guerra perdida dos judeus contra os romanos). Mt concentra tudo no poder da palavra de Jesus, aliás, é sua única palavra ,“ide (embora)” (cf. 4,10; 16,23), que vai desterrando o poder demoníaco: empurrando-o ao reino do impuro (porcos, cf. Is 66,3.17), ao abismo da perdição (precipício, mar).

Mt só acrescentou que os porcos estavam “a certa distância”. Talvez Mt não quisesse associar o messias de Israel, Jesus, perto dos porcos (cf. 7,6). Os judeus não comiam porcos considerando-os impuros (Lv 11,7), enquanto os pagãos os comiam e os sacrificaram também a seus deuses.

Já em Mc, o afogamento no mar lembra o dos inimigos egípcios em Ex 14,27-30; Mt que apresenta Jesus como novo Moisés (cf. caps. 2 e 5), deve ter gostado e não omite este detalhe que demonstra a gravidade da possessão e sua superação (insinuando que são os demônios que morrem).

Os homens que guardavam os porcos fugiram e, indo até à cidade, contaram tudo, inclusive o caso dos possuídos pelo demônio. Então a cidade toda saiu ao encontro de Jesus. Quando o viram, pediram-lhe que se retirasse da região deles (vv. 33-34).

Em Mt não consta mais o bom comportamento do curado que queria seguir Jesus, mas Jesus o enviou de volta para evangelizar sua família e região (Mc 5,15.18-20). Em Mt, ainda era “antes do tempo” (v. 29) da missão aos pagãos (10,5s; 28,19).

A Bíblia do Peregrino (p.2335) comenta: Os moradores não demonstram apreciar tal libertação, a sua atitude contrasta com a admiração de outros ante o poder de Jesus. Está bem libertar de demônios dois homens e de sustos a população, mas negócio é negócio.

Mt não menciona o número do prejuízo (Mc 5,13: 2000 porcos). Os antigos interpretaram de várias maneiras: O mundo devia ver o tamanho da maldade desses demônios. Um único homem salvo vale mais do que uma manada de porcos (cf. o lema do fundador da Juventude Operária Cristã, Joseph Cardijn: “Um único operário vale mais do todo ouro do mundo”). Os porcos simbolizam os homens cheios de vícios que perecerão ao final.

Para Mt, porém, o essencial é o poder da palavra de Jesus. Este voltará porque é o messias enviado para curar a Israel (cf. 4,23; 8,1-17). Assim o próximo v. poderia ser conclusão melhor do evangelho de hoje: ”Entrando em um barco, Jesus atravessou para a outra margem do lago e foi para a sua cidade” (9,1; sua cidade é Cafarnaum: 4,13).

O site a CNBB comenta: Apesar de toda evidência do amor de Jesus, existem pessoas que não o aceitam, e fazem isso porque consideram a aceitação de Cristo e de suas exigências como perda de algo a que estão apegados como uma verdadeira idolatria. Para os gadarenos, parece que é melhor ficar com os porcos, mesmo que seja com o diabo junto, do que aceitar um irmão resgatado e reconhecer a manifestação do amor salvífico de Deus. De fato, rejeitar Jesus em vista de algum bem material constitui-se em uma atitude diabólica, uma verdadeira idolatria.

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