29 de março de 2017 – Quarta-feira, Quaresma 4ª semana

Leitura: Is 49,8-15

Ouvimos uma leitura de Deutero-Isaías (Segundo Isaías) que escreveu no exílio na Babilônia, cerca de 550 a.C., dando esperança e consolo ao seu povo desterrado.

Isto diz o Senhor: “Eu atendo teus pedidos com favores e te ajudo na obra de salvação; preservei-te para seres elo de aliança entre os povos, para restaurar a terra, para distribuir a herança dispersa; para dizer aos que estão presos: “Saí”! e aos que estão nas trevas: “Mostrai-vos” (vv. 8-9a).

Ainda que o povo de Deus sofresse no cativeiro da Babilônia e o profeta carregasse uma barra pesada, não só como judeu, mas como “servo” de Deus (cf. vv. 3.6; cf. 42,1; 52,13; 53,11), ele ouviu uma resposta consoladora (cf. 40,1s) à sua prece e a proclama como palavra de Deus: “Eu atendo teus pedidos com favores e te ajudo na obra da salvação”; outra tradução (Bíblia de Jerusalém): “No tempo do meu favor te respondi, no dia da salvação te socorri” (cf. 2Cor 6,2). “Preservei-te para seres elo da aliança entre os povos”. A aliança de Deus com o povo eleito não foi cancelada, foi violentada pelos pecados, mas a culpa está perdoada pela servidão no exílio (40,2). Isso Deutero-Isaías está anunciando, “para dizer aos que presos: ‘Saí!’ e os que estão nas trevas: ‘Mostrai-vos’” (vv. 8-9a; cf. 61,1). O profeta vislumbra o fim do exílio dos judeus pela ascensão do rei persa, Ciro, que conquistará a Babilônia e deixará os exiliados (“presos”) voltar a sua terra.

No trecho anterior, Javé Deus falou a seu servo para ser a “luz das nações, a fim de que minha salvação chegue até as extremidades da terra” (v. 6)

E todos se alimentam pelas estradas e até nas colinas estéreis se abastecem; não sentem fome nem sede, não os castiga nem o calor nem o sol, porque o seu protetor toma conta deles e os conduz às fontes d’água. Farei de todos os montes uma estrada e os meus caminhos serão nivelados. Eis que estão vindo de longe, uns chegam do Norte e do lado do mar, e outros, da terra de Sinim” (vv. 9b-12).

De todos os cantos do mundo, o Senhor recolherá seu rebanho “do norte e do lado do mar e outros da terra de Sinim” (vv. 11-12; Sinim talvez fosse Assuan no sul do Egito onde havia uma colônia israelita; cf. Jr 44,1; Ez 29,10; 30,6).

Como a libertação da escravidão no Egito séculos antes (por volta de 1250 a.C.), deve acontecer um novo êxodo (=saída), uma longa caminhada (“estrada”) à pátria em terra prometida. Das “trevas” do exílio na Babilônia, o servo de Deus deve conduzir os cativos (v. 9: “presos”) para fora da Babilônia, como Moisés conduziu os israelitas para fora do Egito. Só, desta vez, o caminho não leva pelo deserto por quarenta anos. O Senhor o conduzirá por caminhos planos: “Farei de todos os montes uma estrada e os meus caminhos serão nivelados” (v. 11; cf. 40,3s; Mc 1,3p se refere a João Batista).

Louvai, ó céus, alegra-te, terra; montanhas, fazei ressoar o louvor, porque o Senhor consola o seu povo e se compadece dos pobres (v. 13).

A criação é convidada a aclamar esta ação divina: “Louvai, ó céus, alegre-te, terra; montanhas, fazei ressoar o louvor.” Os céus e a terra, com frequência invocados como testemunhas (cf. Sl 19; Dt 4,26; 30,19; 31,28; 32,1), são convidados para amplificar o louvor junto com outros elementos da natureza (v. 13; 44,23; 55,12; cf. o cântico dos três jovens Dn 3,51-90). No pós-exílio, o Trito-Isaías (terceiro Isaías) também relacionará a grandeza do céu e da terra ao cuidado do Senhor para com os humildes (cf. Is 66,1; Mt 5,3).

“Disse Sião: ‘O Senhor abandonou-me, o Senhor esqueceu-se de mim!’ Acaso pode a mulher esquecer-se do filho pequeno, a ponto de não ter pena do fruto de seu ventre? Se ela se esquecer, eu, porém, não me esquecerei de ti” (vv. 14-15).

Os exilados chegarão de todas as partes a Jerusalém, antes destruída e abandonada.  Mas a comunidade judaica simbolizada por “Sião”, o nome do morro em Jerusalém, onde estava o templo, ainda lamenta o abandono do Senhor (cf. v. 14). O templo e a cidade estão em ruínas.

Mas o profeta dá ânimo, afirmando que o amor de Deus é mais forte do que o amor de uma mãe. É um dos poucos textos na Bíblia em que se expressa o amor de Deus em termos femininos (mãe) numa cultura empregada pelo machismo. É fato que uma mãe abandona menos um filho (e a família) do que um homem, porque ela está ligada com um sentimento mais profundo (desde o seu ventre) à criança.

A palavra “misericórdia” em hebraico rahamim, está ligada ao “útero”, significa sentir “compaixão” nas estranhas. Nosso Deus é um pai todo-poderoso (onipotente), mas também misericordioso (como uma mãe). O ser humano é imagem de Deus como homem e como mulher também (cf. Gn 1,27).

Evangelho: Jo 5,17-30

A cura do paralitico (cf. evangelho de ontem) provocou a hostilidade dos judeus, porque aconteceu num sábado (vv. 1-16).

Jesus respondeu aos judeus: “Meu Pai trabalha sempre, portanto também eu trabalho” (v. 17).

Jesus se defende com uma frase notável: “Meu Pai trabalha sempre, portanto também eu trabalho”. Os rabinos (mestres judaicos) já diferenciaram a atividade criadora de Deus que termina no sexto dia (cf. Gn 1) da atividade permanente de Deus como juiz.

A frase de Jesus abre espaço para uma interpretação moderna da criação. O mundo ainda não está pronto, o universo ainda está em obras e em expansão. Entendendo os relatos de Gn 1-2 de maneira simbólica (poesia de mito, não ciência exata) e no contexto da época histórica, podemos aceitar as teorias da ciência como o Big-Bang (primeiramente apresentado em 1927 por um padre católico, Georges Lemaitre, que o chamou de átomo primitivo), a evolução das espécies (Charles Darwin em 1859), etc.

Então, os judeus ainda mais procuravam matá-lo, porque, além de violar o sábado, chamava Deus o seu Pai, fazendo-se, assim, igual a Deus (v. 18).

O evangelista nos apresenta o motivo mais profundo da perseguição de Jesus: “além de violar o sábado, chamava Deus o seu Pai, fazendo-se, assim, igual a Deus”. A afirmação de Jesus de estar em relação direta, imediata com Deus, parece ser uma blasfêmia aos ouvidos dos judeus. A profissão de fé do AT, que os judeus costumam colocar em pequenos caixinhas na testa durante a oração e nas portas das suas casas, é: “Ouve Israel, Javé, nosso Deus, é o ÚNICO Senhor” (Dt 6,4; citado por Jesus em Mc 12,29). Outra religião monoteísta, o islã (ou islamismo; fundador Moamé, séc. VI d.C.) com seus adeptos (os muçulmanos) aceita Jesus como profeta, mas rejeita a divindade dele.

Tomando a palavra, Jesus disse aos judeus: ”Em verdade, em verdade vos digo, o Filho não pode fazer nada por si mesmo; ele faz apenas o que vê o Pai fazer. O que o Pai faz, o Filho o faz também. O Pai ama o Filho e lhe mostra tudo o que ele mesmo faz. E lhe mostrará obras maiores ainda, de modo que ficareis admirados. Assim como o Pai ressuscita os mortos e lhes dá a vida, o Filho também dá a vida a quem ele quer (vv. 19-21).

Jesus continua discursando sobre a relação estreita do Pai e do Filho: como o Pai, o Filho também pode ressuscitar os mortos, julgar e dar vida eterna, mas tudo isso ele só pode em sintonia com o Pai que o enviou (cf. 3,35s). Esta sintonia tem sua causa mais profunda no amor do Pai: “O Pai ama o Filho e lhe mostra tudo o que ele mesmo faz” (v. 20). Aqui se fala em “obras” (vv. 20.36; 14,12), não em “sinais” (cf. 2,11; 4,48.54). Jesus não só cura, mas trabalha na obra da salvação.

De fato, o Pai não julga ninguém, mas ele deu ao Filho o poder de julgar, para que todos honrem o Filho, assim como honram o Pai. Quem não honra o Filho, também não honra o Pai que o enviou. Em verdade, em verdade vos digo, quem ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou, possui a vida eterna. Não será condenado, pois já passou da morte para a vida. Em verdade, em verdade, eu vos digo: está chegando a hora, e já chegou, em que os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus e os que a ouvirem, viverão (vv. 22-25).

Em escritos apócrifos judaicos (Henoc), Deus entrega o juízo final ao “Filho do homem” (cf. v. 27; cf. Dn 7,13s). No evangelho de João, há uma escatologia presente (desde “já”): “Quem ouve minha palavra e crê naquele que me enviou, possui a vida eterna. Não será condenado, pois já passou da morte para a vida” (v. 24; cf. 3,18). “Está chegando a hora, e já chegou, em que os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus” (v. 25).

Porque, assim como o Pai possui a vida em si mesmo, do mesmo modo concedeu ao Filho possuir a vida em si mesmo. Além disso, deu-lhe o poder de julgar, pois ele é o Filho do Homem. Não fiqueis admirados com isso, porque vai chegar a hora, em que todos os que estão nos túmulos ouvirão a voz do Filho e sairão: aqueles que fizeram o bem, ressuscitarão para a vida; e aqueles que praticaram o mal, para a condenação. Eu não posso fazer nada por mim mesmo. Eu julgo conforme o que escuto, e meu julgamento é justo, porque não procuro fazer a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou (vv. 26-30).

Depois, uma redação tardia parece ter corrigido apresentando a mais tradicional escatologia futura (ainda não): “Vai chegar a hora em que todos os que estão nos túmulos ouvirão a voz do filho e sairão: aqueles que fizeram o bem ressuscitarão para a vida e aqueles que praticaram o mal, para a condenação” (vv. 28-29).

“Meu julgamento é justo”; Jesus é “justo”, não cumpriu a lei do sábado, mas procura fazer a vontade do Pai que está na base da lei. Em 4,36, Jesus declarou: “O meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou e levar a termo a sua obra”.

Neste cap. 5, vemos as três etapas em que o quarto evangelho foi escrito: 1) A “fonte dos  sinais” (apresenta sete milagres como sinais) narrou a cura do cego. 2) O discurso do teólogo “discípulo amado” (cf. 21,24) acrescenta palavras sobre a divindade de Jesus (preexistente, cf. 1,1; 10,30; 14,9; 20,28); não fala de sinais, mas de obras (vv. 20.36; 14,12) e apresenta a escatologia presente (“desde já”). 3) A redação eclesial quer preservar unidade com a Igreja de Pedro (cf. caps. 15; 21) e apresenta temas tradicionais (escatologia futura, “ainda não”, cf. vv. 28-29) contra interpretações heréticas (cf. 1-3 Jo).

No discurso teológico, o evangelista quer demonstrar que não há contradição entre a fé judaica no único Deus (monoteísmo) e a fé cristã em Jesus Cristo, o Filho de Deus. São duas pessoas (Pai, Filho), mas em perfeita união e sintonia. Nos primeiros Concílios da Igreja, a questão será aprofundada na doutrina da Santíssima Trindade (um só Deus, mas em três pessoas, cf. Credo Niceno-Constantinopolitano).

O site da CNBB comenta: Jesus começa aos poucos a manifestar a sua origem e a sua natureza divina. Ele de fato é o Filho de Deus, que veio ao mundo para fazer a vontade do Pai e realizar a sua obra, que é a salvação de todas as pessoas, salvação que significa ressurreição e vida eterna, libertação do jugo do pecado e da morte. Mas esta obra é somente para quem crê que Jesus é o Filho de Deus, é para quem crê que ele veio ao mundo para fazer a vontade do Pai e vê na sua ação a ação divina em favor dos homens, de modo que a fé é essencial para a nossa salvação, para a nossa ressurreição e para que vivamos eternamente.

Voltar