29 de novembro de 2017 – Quarta-feira, 34ª semana

Leitura: Dn 5,1-6.13-14.16-17.23-28

A narrativa da leitura de hoje, ligada aos caps. 2 (cf. leitura de ontem) e 4, dá um novo exemplo da clarividência profética concedida por Deus a Daniel. Não se trata mais de interpretar sonhos, mas de decifrar uma misteriosa inscrição traçada na parede do palácio real por uma mão sobrenatural, durante um banquete sacrílego na corte do rei Baltasar (diferente de Baltassar, segundo nome do próprio Daniel, 1,7; 4,6.16). Na verdade, este rei babilônico representa aqui o rei greco-sírio Antíoco IV Epifanes que profanou o templo de Jerusalém e queria obrigar os judeus a adotarem a religião grega na época do autor de Dn (séc. II a.C.; cf. 1Mc 1,23s; 2Mc 5,21; 6,4,7). No banquete da leitura de hoje, o rei ostenta seu apego ao paganismo e seu desprezo ao verdadeiro Deus. Daniel interpreta esse texto, que os adivinhos oficiais não podiam nem mesmo ler (v. 8): ele mostra aí o enunciado de um julgamento de Deus, que anuncia a queda próximo do rei.

A Bíblia do Peregrino (p. 2144) comenta: Literariamente o capítulo é memorável. Vários fatores concorrem para o acerto narrativo: o momento crítico e dramático em que um império desmorona, o mistério da mão que escreve uma mensagem incompreensível, o contexto frívolo e blasfemo de um banquete real, a terrível mensagem interpretada e a inutilidade de compreendê-la.

A encenação alucinante pode ser comparada à evocação do fantasma de Samuel pela bruxa necromante de Endor (1Sm 28) e deve ter inspirado vários filmes de terror.

O rei Baltasar ofereceu um grande banquete aos mil dignitários de sua corte, tomando vinho em companhia deles. Já embriagado, Baltasar mandou trazer os vasos de ouro e prata, que seu pai Nabucodonosor tinha tirado do templo de Jerusalém, para beberem deles o rei e os grandes do reino, suas mulheres e concubinas (vv. 1-2).

Na verdade, Baltasar não era filho de Nabucodonosor nem tinha o título de rei. A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 1375s) comenta sobre Baltasar (ou em hebraico Belshasar): A tradição mesopotâmica tinha guardado alguma recordação de Bel-shar-usur, filho e co-regente de Nabônides, o último rei da Babilônia. Mas nosso texto faz dele o filho de Nabucodonosor, que na literatura se tornou o tipo do soberano pagão (cf. cap. 3). Por trás dele, o autor visa com palavras veladas ao rei sírio contemporâneo, Antíoco IV Epífanes, que, em 169, despojara o Tempo de Jerusalém, esperando profaná-lo pela instalação dos cultos pagãos (1Mc 1,59,59; 2Mc 6,2-4). O banquete de Belshasar plagia essas orgias.

Os “mil dignitários” ou “grandes do reino” primeiro vão ser cúmplices de um sacrilégio, depois testemunhas de uma sentença. O “vinho” não era proibido no culto israelita (cf. Is 25,6); era utilizado provavelmente antes do século II na refeição pascal. Mas sabe-se que papel ele desempenhava nas orgias das bacanais (homenageando o deus grego do vinho da ebriedade, dos excessos, especialmente sexuais, Bachos ou Dionísio), que foram exatamente introduzidas em Jerusalém sob o reinado de Antíoco IV Epífanes (2Mc 6,7).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 1375s) comenta o sentido incerto das duas últimas palavras “mulheres e concubinas”: É pouco provável que a primeira designe “rainhas”, pois havia apenas uma com esse título. Quanto à segunda, é encontrada também nos papiros de Elefantina, onde designa um membro do pessoal do templo judaico e sua mulher (no século V a.C.); daí a tradução “mulheres de serviço”. Trata-se de todo caso de mulheres que participam da orgia com o rei e suas cortesãs. Em 2Mc 6,4, trata-se das meretrizes e das prostitutas sagradas, introduzidas no Templo de Jerusalém por Antíoco Epífanes.

Foram, pois, trazidos os vasos de ouro e prata, retirados do templo de Jerusalém, e deles se serviram o rei e os grandes do reino, suas mulheres e concubinas; bebiam vinho e engrandeciam seus deuses de ouro e prata, de bronze e ferro, de madeira e pedra (vv. 3-4).

Baltazar não pode humilhar o Deus de Jerusalém numa imagem, porque Javé não admite imagens (cf. Ex 20,4s), mas nos utensílios (vasos de ouro e prata) do templo, o rei despreza o Deus dos judeus e ao mesmo tempo exalta seus próprios deuses “de ouro e prata”.

Naquele mesmo instante, apareceram dedos de mão humana que iam escrevendo, diante do candelabro, sobre a superfície da parede do palácio, e o rei via os dedos da mão que escrevia. Alterou-se o semblante do rei, confundiram-se suas ideias e ele sentiu vacilarem os ossos dos quadris e tremerem os joelhos (vv. 5-6).

A Bíblia do Peregrino (p. 2144) comenta: O autor redige com sobriedade, convidando a imaginação do leitor. Como uma inscrição comemorativa num bloco de pedra, assim a escrita ressalta na parede branca e bem iluminada. O palácio, sinal de esplendor (4,27), se rende como pergaminho para receber uma assinatura. A sala do banquete se converte em sala do tribunal supremo, em que o rei será réu acusado. Com menos sobriedade se descreve em v. 6 a reação do rei, como que sublinhando sua fraqueza e desamparo perante o mistério.

Então Daniel foi introduzido à presença do rei, e este lhe disse: “És tu Daniel, um dos cativos de Judá, trazidos de Judá pelo rei, meu pai? Ouvi dizer que possuis o espírito dos deuses, e que em ti se acham ciência, entendimento e sabedoria em grau superior. Ora, ouvi dizer também que sabes decifrar coisas obscuras e deslindar assuntos complicados; se, portanto, conseguires ler o escrito e dar-me sua interpretação, tu te vestirás de púrpura, e levarás ao pescoço um colar de ouro, e serás o terceiro homem do reino.” Em resposta, disse Daniel perante o rei: “Fiquem contigo teus presentes e presenteia um outro com tuas honrarias; contudo, vou ler, ó rei, o escrito e fazer-te a interpretação (vv. 13-17).

Chamado pelo rei (v. 13), Daniel recusa a oferta de bens materiais (v. 17). A Bíblia do Peregrino (p. 2145) comenta: É próprio do profeta autêntico profetizar gratuitamente; Miquéias denuncia os profetas que graduam os oráculos conforme a recompensa (Mq 3,5).

Tu te levantaste contra o Senhor do céu; os vasos de sua casa foram trazidos à tua presença e deles bebestes vinho, tu e os grandes do reino, suas mulheres e concubinas; ao mesmo tempo, celebravas os deuses de prata e ouro, de bronze e ferro, de madeira e pedra, deuses que não veem nem ouvem, e nada entendem, – e ao Deus, que tem em suas mãos tua vida e teu destino, não soubeste glorificar. Por isso, foram mandados por ele os dedos da mão, que fez este escrito (vv. 23-24).

Daniel começa sua interpretação polemizando contra a idolatria (cf. Jó 12,9s; Sl 115,5-7; 135.14-17; Sb 13,10-16; Is 40,19s; 41,21-29; 44,9-20; Jr 10,1-16; 51,15-19; Br 6; At 17,24-29; 19,24-27; Rm 1,18-25). Se os deuses pagãos “têm mãos e não tocam” (Sl 115,7), essa mão escreveu sem ter corpo, age assim porque não é “produto de mãos humanas” (Sl 115,4).

Assim se lê o escrito que foi traçado: mâne, técel, pársin. E esta é a explicação das palavras: mâne: Deus contou os dias de teu reinado e deu-o por concluído; técel: foste pesado na balança, e achado com menos peso; pársin: teu reino foi dividido e entregue aos medos e persas” (vv. 25-28).

Daniel vê na parede os nomes ou os sinais de três moedas da época, os lê e traduz em termos políticos de teologia da história. A interpretação mais provável da escrita é a seguinte: o autor joga com paronomásias tiradas de três pesos ou moedas orientais: a primeira é a mina (cf. Lc 19,13), da raiz mnh – contar (como “conto de réis”, antiga moeda no Brasil); a segunda é teqel, da raiz  tql – pesar (como o “peso/peseta”, a “onça”); a terceira é peres, da raiz prs – dividir (como nossos “quartos”, “oitavas”, “centavos”), equivalente a meia mina. Além disso, a moeda peres joga com o nome dos persas: “perês (plural: parsin)”: “dividido” e “persas”.

Os próximos versículos (não transmitidos pela liturgia de hoje) narra o cumprimento desta profecia: “Nessa mesma noite, o rei Baltasar foi assassinado e Dario, o medo, tomou o poder” (5, 30; 6,1a). Tradições orientais relatam que a tomada de Babilônia em 539 a.C. pelo persa Ciro (não pelo medo Dario) aconteceu mesmo durante o banquete do último rei que morreu.

Para o autor de Dn, a morte de Baltazar anuncia, portanto, simbolicamente o destino de Antíoco IV Epífanes, sob o véu de uma ficção histórica. O autor não pretende escrever a crônica de fatos importantes, mas criar uma série de relatos exemplares, dotando-os de uma auréola de vagas referências históricas. O esquema do capítulo pode ser aplicado a qualquer troca de turno no cenário da história. Nenhum reino pagão é eterno, mas pode cair em qualquer momento. No imaginário apocalíptico que resiste à opressão, está a certeza de que o império de Antíoco IV terá o mesmo fim do império de Baltasar. A história está nas mãos de Deus que ajuda o seu povo. É importante perceber como na figura de Daniel, o autor elogia e estimula seu povo, mostrando que é capaz de discernir as situações e governar a própria vida.

Evangelho: Lc 21,12-19

Nesta parte do discurso escatológico (sobre o fim), Lc segue o roteiro de Mc (cf. Mc 13,9-13).

Antes que estas coisas aconteçam, sereis presos e perseguidos; sereis entregues às sinagogas e postos na prisão; sereis levados diante de reis e governadores por causa do meu nome. Esta será a ocasião em que testemunhareis a vossa fé (vv. 12-13).

Segundo os Atos, os apóstolos Pedro, João, Tiago e Paulo em particular (Fl 1,12-13), compareceram diante de tribunais religiosas e civis, deram testemunho de Jesus e anunciaram o evangelho diante deles; o diácono Estêvão (At 7) e o apóstolo Tiago (At 12,2) foram os primeiros mártires que morreram pela fé em Cristo. Ora, o que é história para Lucas se converte aqui em anúncio e exortação para os sucessores que lerem seu evangelho.

É a fase final que interessa aos ouvintes (v. 7), mas Jesus avisa que será precedida por um período histórico de testemunho da fé no meio das perseguições. Como o Cristo tinha que sofrer para entrar em sua glória (24,26), também os discípulos devem atravessar gloriosamente essa prova. Em At 25,13-26,32, Lc narra um destes testemunhos “diante de reis e governadores”: Paulo diante do rei Agripa e sua esposa Berenice na prisão do governador Festo em Cesareia.

Testemunhar é a função essencial dos doze apóstolos (Lc 24,28; At 1,8.22; 2.32; 3.15; 4.33; 5.32; 10.39; 13,31), de Estevão e de Paulo (22,15.20; 26,16; cf. 18,5; 20,21; 22,18; 23,11; 26,22; 28,23). Ele consiste em proclamar a ressurreição de Cristo e seu senhorio. A palavra grega martírion, traduzida por “testemunho”, toma nas gerações seguintes o sentido de “martírio” (ser morto por causa da sua fé).

Fazei o firme propósito de não planejar com antecedência a própria defesa; porque eu vos darei palavras tão acertadas, que nenhum dos inimigos vos poderá resistir ou rebater (vv. 14-15).

Não havia advogados defendendo o réu em processos judiciais da época, mas peritos jurídicos podiam aconselhá-lo. Jesus promete sua assistência (cf. Jo 14,18-21). Nos paralelos em Lc 12,11s; Mt 10,19s; Mc 13,11s, esta assistência é atribuída ao Espírito Santo (cf. At 6,10 e o Espírito paráclito em Jo 14,17.29; 15,26s; 16,8-11; paráclito significa consolador, defensor, advogado). Lc queria reservar aqui o anúncio do Espírito para o dia de Pentecostes (24,46; At 1,4-8; 2) ou relacionar estas palavras à paixão próxima de Jesus (caps. 22-23)?

A Bíblia do Peregrino (p. 2526) comenta: Equivale a um carisma de uma sabedoria superior: “Observando a ousadia de Pedro e João, e constatando que eram homens simples e iletrados, admiravam-se…” (At 4,13; 6,10; cf. Jó 32,13); como Moisés ou Salomão: “Vê, eu estarei em tua boca e te ensinarei o que terás de dizer” (Ex 4,11; 1Rs 5,14).

Sereis entregues até mesmo pelos próprios pais, irmãos, parentes e amigos. E eles matarão alguns de vós. Todos vos odiarão por causa do meu nome (vv. 16-17).

Até os próprios “parentes e amigos” podem tornar-se adversários (v. 16; cf. a traição dos parentes em Mq 7,6; Jr 12,6; Jó 6,15). O “ódio do mundo” (cf. Jo 15,18-19) é herança da origem judaica (os judeus eram odiados pelos outros povos por sua negação dos outros deuses).

Mas vós não perdereis um só fio de cabelo da vossa cabeça. É permanecendo firmes que ireis ganhar a vida! (vv. 18-19)

As testemunhas de Jesus “não perderão um só fio de cabelo” (cf. Lc 12,7; Mt 10,30, expressão proverbial, cf. 1Sm 14,45). Os Atos registram episódios de libertação milagrosa (At 5,19s; 12,6-11; 16,25s).

Do anúncio passa à exortação, que vale para os cristãos de qualquer época: “Ireis ganhar a vida pela perseverança” (21,19; cf. 8,15). A constância/perseverança é virtude capital. Este termo, próprio de Lc e familiar a Paulo (1Ts 1,3; 2Cor 1,6; 6,4; 12,12; Rm 2,7; 5,3s; 8,25; 15,4s; Cl 1,11), designa a resistência aos perigos que ameaçam a palavra.

O site da CNBB comenta: Ganhar a vida eterna significa ser capaz de lutar no dia a dia pelos valores que a caracterizam. Mas os valores que caracterizam a vida eterna são completamente diferentes dos valores que caracterizam a nossa sociedade de hoje, sendo que a consequência dessa diferença é o conflito, que é seguido da perseguição, do ódio e, muitas vezes, da morte. Mas quem de fato acredita na vida eterna e a deseja ardentemente para si assume o projeto de Deus e os valores do Reino dos céus e luta constantemente por eles, não temendo a perseguição e desafiando até mesmo a morte, porque sabe que nada o separará da vida e vida em abundância.

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