29 de Setembro 2019, Domingo: Quando o pobre morreu, os anjos levaram-no para junto de Abraão. Morreu também o rico e foi enterrado (v. 22).

26º Domingo do Tempo Comum 

 

1ª Leitura: Am 6,1a.4-7

A 1ª leitura e o evangelho de hoje (Lc 16,19-31) falam da sorte de ricos que não se preocupam com os pobres. Como no domingo passado (Am 8,4-7), a leitura é tirada o profeta Amos que vivia no reino do Norte (Israel, capital: Samaria) por volta de 750 a.C. e criticava a elite que vivia no luxo à custa dos pobres.

A Bíblia do Peregrino (p. 2217) comenta esta leitura: Contra os ricos que esbanjam em luxos e vivem seguros em suas riquezas injustamente adquiridas. O pecado é estilado numa série de particípios descritivos; o castigo corresponde ao delito.

(Assim diz o Senhor todo-poderoso:) Ai dos que vivem despreocupadamente em Sião, os que se sentem seguros nas alturas de Samaria! (v. 1a).

A introdução “Assim diz o Senhor todo-poderoso” é tirada do v. anterior (5,27). “Ai” pertence ao gênero de lamentação profética e maldição, em Am ligada ao terrível “dia do Senhor” (5,16.18; 6,1.3; cf. Is 5,8-23; 10,1; Hab 2,7-20; Os 7,13; no NT, cf. Mt 11,21; 18,7; 23,13-32; 24,19; 26,24).

“Daqueles que estão tranquilos em Sião”. A menção de “Sião” (morro de Jerusalém, capital do reino do Sul, Judá) é suspeita, embora Amós possa ter-se ocupado de sua pátria (Amos era natural do sul, Judá, mas foi enviado ao norte, Israel: 1,1; 7,12-15). Mas o mais provável é que uma releitura judaica, ou seja, depois do desaparecimento do reino do Norte em 722, o texto tenha sido manipulado para estendê-lo aos judeus do reino do Sul (cf. 3,1; Os 1,7),

“Se sentem seguros nas alturas de Samaria”. O monte de Samaria, capital do reino do Norte, se considerava inexpugnável (a conquista pelos assírios demorou três anos em 724-722 a.C., cf. 2Rs 17,5s). Seus chefes desfrutam de grande prestigio fora e dentro da nação. Mas o v. 2 (omitido) menciona três cidades vizinhas, ameaçadas e depois dominadas pela Assíria. Portanto, não há motivo para confiar no poder da capital. A segurança dos chefes é um sinal de obcecamento, que os lançará na desgraça (v. 3, omitido).

Os que dormem em camas de marfim, deitam-se em almofadas, comendo cordeiros do rebanho e novilhos do seu gado; os que cantam ao som das harpas, ou, como Davi, dedilham instrumentos musicais; os que bebem vinho em taças, e se perfumam com os mais finos unguentos e não se preocupam com a ruína de José (vv. 4-6).

A política estatal do rei de Israel, Jereboão II, beneficia apenas a elite dirigente. O luxo e a riqueza de Samaria são adquiridos à custa da exploração e do empobrecimento da maioria pobre (2,6-8; 4,1-3; 5,11-12; 8,4-6).

“Os que cantam ao som das harpas, ou, como Davi, dedilham instrumentos musicais”. Davi é modelo dos salmistas e dos cantores (cf. 1Sm 17,14-23).

A Bíblia do Peregrino (p. 2217) comenta: Adornado com peças ou incrustações de marfim. Descreve festins e banquetes: comida, bebida (Eclo 31,25-31), música (Eclo 32,5s), perfumes (Lc 7,46). A referência a Davi poderia ser glosa, conforme 1Cr 23,5. A despreocupação é necessária para não atrapalhar o desfrute.

“Não se preocupam com a ruína de José”, ou seja, com o fim eminente do reino de Israel. O patriarca José teve dois filhos, Manassés e Efraim, que deram origem a duas tribos que se assentaram no centro de Israel.

Por isso, eles irão agora para o desterro, na primeira fila, e o bando dos gozadores será desfeito (v. 7).

É possível que a alusão a Sião (v. 1a), citadas duas vezes neste livro (1,2; 6,1), bem como a menção a “Davi” (v. 5) e, aqui, ao “desterro” (exilio; v. 7), sejam acréscimos posteriores.

2ª Leitura: 1Tm 6,11-16

Continuamos lendo a primeira carta de Paulo a Timóteo, seu discípulo fiel. Muitos peritos, porém, atribuem esta carta a terceira geração, ou seja, escrita por discípulos de Paulo usando seu nome (pseudografia) para demonstrar continuidade com o espírito apostólico.

Na época (cerca de 90 d.C.), a autenticidade da Igreja e sua doutrina (v. 3: “sãs palavras de nosso Senhor”, cf. 1,10; 2Tm 4,3; Tt 1,9; 2,1; variantes: 1Tm 6,3; 2Tm 1,13; Tt 1,13; 2,2) é ameaçada por falsos doutores e sua cobiça, “homens de espírito corrupto e desprovidos de verdade, supondo que a piedade é fonte de lucro” (v. 5). O autor quer ajudar discernir doutrinas (religiões) verdadeiras e falsas a partir da conduta dos seus dirigentes e seu amor ao dinheiro (vv. 3-11, cf. Mq 3,1-3).

Tu que és um homem de Deus, foge das coisas perversas, procura a justiça, a piedade, a fé, o amor, a firmeza, a mansidão. Combate o bom combate da fé, conquista a vida eterna, para a qual foste chamado e pela qual fizeste tua nobre profissão de fé diante de muitas testemunhas (vv. 11-12). 

Timóteo contrasta com os falsos doutores. O verdadeiro doutor é aquele que foge da ambição e vive com sobriedade. Em vez de ir atrás de dinheiro e coisas perversas, ele deve procurar as virtudes que edificam a comunidade: “a justiça, a piedade, a fé, o amor, a firmeza (perseverança), a mansidão” (cf. 2Tm 2,22; 1Cor 13,4-7). Seu compromisso primeiro é com a verdade (testemunho, profissão de fé), a qual se manifesta no ministério de Cristo, relembrado numa doxologia (hino em vv. 15-16).

“Homem de Deus” é título que alguns profetas têm (Dt 33,1; 1Sm 2,21; 1Rs 13,1; 17,24; 2Rs 4,7 etc.). “Fizeste tua nobre profissão de fé diante de muitas testemunhas”; não sabemos exatamente a que circunstância da vida de Timóteo o autor da carta faz alusão aqui: ao batismo ou sua consagração para o ministério (4,14)?

“Combate… conquista”, Paulo gostava de comparações esportivas ou militares (cf. 1Cor 9,24-27; Gl 5,7; Fl 3,14; 1Ts 5,8; Ef 6,11-17): “Combater o bom combate” reaparece no seu testamento em 2Tm 4,7. Um tarefa tão difícil tem como recompensa a “vida eterna” (cf. 2Tm 2,11; cf. o prêmio em 1Cor 9,24s; Fl 3,14).

Diante de Deus, que dá a vida a todas as coisas, e de Cristo Jesus, que deu o bom testemunho da verdade perante Pôncio Pilatos, eu te ordeno: guarda o teu mandato íntegro e sem mancha até à manifestação gloriosa de nosso Senhor Jesus Cristo (vv. 13-14).

Chamado “homem de Deus” (v. 11), como alguns profetas no Antigo Testamento, Timóteo recebe aqui as instruções finais (2Tm 2,22; 4,1s). A profissão de fé de Timóteo (v. 12) tem como exemplo o “bom testemunho da verdade” que Jesus pronunciou “perante Pôncio Pilatos” (cf. Jo 18,36s; Lc 21,12s): proclamação de sua realeza messiânica e sua missão de revelar a verdade. A menção de Pôncio Pilatos reforça o tom “oficial” deste testemunho, tipo da profissão de fé do cristão, ao batismo ou diante dos perseguidores. Escritas na terceira geração cristã, as cartas Pastorais (1-2Tm, Tt) dão recomendações como os cristãos devem se comportar no Império Romano (do qual Pilatos era representante).

Timóteo deve guardar seu “mandato” (mandamento) “íntegro e sem mancha” (ou: irrepreensível, imaculado), são eufemismos para o serviço fiel perseverante e sincero. O mandamento/mandato pode ser a lei geral da aliança (cf. 1,8-11) ou a missão especial de Timóteo recebida de Deus (4,13s).

Como Paulo, esta missão está ligada à vinda (parusia) de Cristo, sua “manifestação/aparição gloriosa” (cf. 2Tt 2,11.13). Este termo (usado em 2Ts 2,8 a propósito do ímpio) é adotado pelas Cartas Pastorais, de preferência à “vinda” (1Cor 15,23) e “revelação” (1Cor 1,7), para designar a manifestação de Cristo, seja no seu triunfo escatológico (aqui e em 2Tm 4,1.18; Tt 2,13; Hb 9,28), seja na sua obra redentora (2Tm 1,10;cf. Tt 2,11; 3.4). Será num tempo oportuno, ou seja, quando Deus, senhor do tempo e da história, julgar bom manifestar seu Filho (cf. Tt 1,3; At 1,7). A função de invocar o julgamento divino em relação a missão da pessoa (em especial dos líderes) é comum nas cartas (5,21; 2Tm 4,1; cf. 1Cor 4,1-5; 1Ts 2,4).

Esta manifestação será feita no tempo oportuno pelo bendito e único Soberano, o Rei dos reis e Senhor dos senhores, o único que possui a imortalidade e que habita numa luz inacessível, que nenhum homem viu, nem pode ver. A ele, honra e poder eterno. Amém (vv. 15-16). 

O hino final é sem dúvida inspirado num hino litúrgico (cf. 1,17). Compreende sete fórmulas de inspiração bíblica, típica da doutrina monoteísta (1,17; 2,4s), transposta em linguagem helenística, contra todo culto prestado a homens e toda pretensão de compreender o mistério de Deus.

Estas aclamações provêm do repertório de orações em uso nas sinagogas do mundo grego: “Soberano” (2Mc 12,15), “reis dos reis e senhor dos senhores” (Sl 136,3; Ap 17,14), “morada da luz” (Sl 104,2), “ninguém o viu” (Ex 33,20; Jo 1,18). A afirmação da realeza universal de Deus (cf. Dt 10,17; Sl 136,3; 2Mc 13,4) opõe-se ao culto pagão prestado aos imperadores; a afirmação de sua transcendência e de sua inacessibilidade afronta as pretensões gnósticas de “conhecimento” divino (cf. a falsa ciência em 6,20).

A leitura da primeira carta a Timóteo chega hoje ao seu fim. Nossa liturgia omite a admoestação “aos ricos este mundo” e a recomendação final a Timóteo de “guardar o depósito” da fé frente à falsa ciência (vv. 17-21), mas termina com este hino. Nos próximos domingos ouviremos 2Tm.

Evangelho: Lc 16,19-31

O evangelho de hoje sobre o rico esbanjador e pobre Lázaro não é um relato histórico nem uma parábola para comparar o reino de Deus. É uma narrativa didática em duas partes (como a parábola do filho pródigo, cf. 15,11-32).

Para Lc, a justiça social e a partilha de bens são importantes (cf. 11,41; 12,16; 16,9; At 2,44s; 4,32.34-36). A primeira parte da parábola (vv. 19-25) se inspira num tema conhecido no Egito antigo e no judaísmo, a mudança de situação provocada pela passagem deste mundo para o outro. É o que as bem-aventuranças e mal-aventuranças proclamam (6,20-24) e Ana e Maria cantavam (1Sm 2; Lc 1,52s). Está mudança, se não ocorrer nesta vida, há de acontecer num “além” imaginado e descrito conforme as crenças judaicas da época em apelo à conversão.

Havia um homem rico, que se vestia com roupas finas e elegantes e fazia festas esplêndidas todos os dias. Um pobre, chamado Lázaro, cheio de feridas, estava no chão à porta do rico. Ele queria matar a fome com as sobras que caíam da mesa do rico. E, além disso, vinham os cachorros lamber suas feridas (vv. 19-21).

Nossa leitura é a única parábola em que um protagonista tem um nome (além de Abraão que é conhecido, v. 22): “Lázaro” (do hebraico Eliazar = Deus auxilia), enquanto o rico permanece anônimo (uma tradução o chama de “Epulão”, fazendo do latim epulo = comilão, um nome próprio). Como a narrativa termina falando da ressurreição (vv. 27-31), pode-se pensar numa relação (pobre, doente, morto) com a ressurreição de Lázaro em Jo 11,1-45. Alguns trechos do evangelho de João parecem ter uma influência ou tradição comum com Lucas (Jo 11,1.20; 12,2-3; 20,3; cf. Lc 10,38-40; 24,12).

O fato de que o pobre na parábola tem nome e o rico não o tem já é bastante significativo, porque, no mundo, os nomes dos ricos são conhecidos (“celebridades ilustres”), enquanto os pobres ficam no anonimato. Deus, porém, conhece o pobre e o chama pelo nome (cf. Is 43,1).

A parábola se coloca no terreno das posses, na oposição entre ricos e pobres. Apresenta um rico pecador e um pobre (suposto justo) e afirma castigo e prêmio após a morte. O pecado consiste em entregar-se a boa vida sem preocupar-se com os necessitados (Is 22,13; Am 6,4-6; Sb 2). “Este foi o pecado de Sodoma: soberba abundancia e despreocupação, mas não deu uma mão ao infeliz e pobre” (Ez 16,49), e qual foi o castigo? “Do céu o Senhor fez chover fogo e enxofre sobre Sodoma e Gomorra e arrasou aquelas cidades” (Gn 19,24-25). Uma riqueza empregada assim é injusta. A narrativa ilustra uma frase conclusiva da parábola anterior: “Usai o dinheiro injusto para fazer amigos, e assim quando este acabar, eles vos acolham nas tendas eternas” (v. 9).

De Lázaro, a narrativa só conta só o sofrimento, não as virtudes (estas podem ser deduzidas pelo fato de ele ser elevado ao céu pelos anjos, v. 22). Aqui na terra não consegue afugentar os “cães”, considerados na Bíblia como animais repugnantes e maus (Sl 22,17-21; Pr 26,11; Mt 7,6).

Quando o pobre morreu, os anjos levaram-no para junto de Abraão. Morreu também o rico e foi enterrado (v. 22).

“Quando o pobre morreu, os anjos levaram-no para junto de Abraão“ (v. 22), lit. “ao seio de Abraão”, isto é o lugar de honra no banquete presidido pelo ancestral do povo eleito, o patriarca Abraão (cf. 13,28). Conforme o costume da época, os convidados estão reclinados sobre almofadas, Lázaro ao direito de Abraão, em cuja almofada se apoia com o cotovelo esquerdo (cf. Jo 13,23; 1,18; Mt 8,11). A imagem expressa intimidade e corresponde à antiga expressão bíblica “reunir-se a seus pais”, isto é, aos ancestrais, aos patriarcas (Jz 2,10; cf. Gn 15,15; 47,30; Dt 31,16). O “paraíso” é para certos judeus da época o lugar onde os justos falecidos esperam a ressurreição e que se imagina, segundo o significado da origem da palavra, como “parque” (jardim); não se usa a palavra aqui, mas a ideia (cf. 23,43; Gn 2,8; 2Cor 12,4; Ap 2,7; 22,2).

“Morreu também o rico e foi enterrado” (v. 22b); pode-se pensar num funeral luxuoso com muitas pessoas ilustres, enquanto não se menciona o enterro do pobre.

Na região dos mortos, no meio dos tormentos, o rico levantou os olhos e viu de longe a Abraão, com Lázaro ao seu lado. Então gritou: “Pai Abraão, tem piedade de mim! Manda Lázaro molhar a ponta do dedo para me refrescar a língua, porque sofro muito nestas chamas”. Mas Abraão respondeu: “Filho, lembra-te que tu recebeste teus bens durante a vida e Lázaro, por sua vez, os males. Agora, porém, ele encontra aqui consolo e tu és atormentado. E, além disso, há um grande abismo entre nós: por mais que alguém desejasse, não poderia passar daqui para junto de vós, e nem os daí poderiam atravessar até nós” (vv. 23-26).

“Na região dos mortos, no meio dos tormentos, … sofro muito nestas chamas” (vv. 23.24). Salvo raras exceções (Jó 14,22), o sheol (ou xeol) do AT (hades em grego, traduzido por “mansão dos mortos”) não é lugar de tormentos e sim de existência sem vida (cf. Is 38,18; Sl 88,11; Pr 1,12; Dn 12,2; Mt 16,18). Um apócrifo judaico (4 Esd) a representa com fogo de forno instalado no vale de Enon (geena, traduzido por “inferno”) perto de Jerusalém onde crianças foram sacrificadas e queimadas e depois se tornou lugar de lixo e maldição (Dt 12,31; 2Rs 16,3; Jr 7,31; Mt 5,22; Ap 14,10). O fogo como tormento é raro, é o elemento divino (Gn 15,17; Ex 3,2; 19,18; Dn 7,10; At 2,3 etc.), inacessível (Is 33,14) e aniquilador (Sl 68,3; Is 66,24; Mc 9,48).

O rico pede consolo: “Manda Lazaro molhar a ponta do dedo para me refrescar a língua” (v. 24). Abraão responde com o tema clássico da inversão da situação além da morte, desmentindo a teoria da retribuição nesta vida (cf. Sl 1; 49; 73). Pobreza e riqueza estão em correlação. A riqueza de uma desfrutada com egoísmo, provoca a pobreza do outro. “Agora, porém, ele encontra aqui consolo e tu és atormentado” (v. 25b; cf. 6,21.24). Nesta vida convivem ricos e pobres, maus e bons. Na vida futura, a separação é definitiva e insuperável. A exclusão do pobre em nossa terra através de muros, grades, cadeias, cães etc. tornou-se um “grande abismo” (v. 26), insuperável no além, só que agora o excluído é o rico excludente.

O rico insistiu: “Pai, eu te suplico, manda Lázaro à casa do meu pai, porque eu tenho cinco irmãos. Manda preveni-los, para que não venham também eles para este lugar de tormento” (vv. 27-28).

Por um momento, o rico atormentado torna-se mais humano, deixa seu egoísmo de lado e intercede por sua família: “Manda Lázaro a casa do meu pai, porque eu tenho cinco irmãos, manda preveni-los” (v 28).

Mas Abraão respondeu: “Eles têm Moisés e os Profetas, que os escutem!” O rico insistiu: “Não, Pai Abraão, mas se um dos mortos for até eles, certamente vão se converter”. Mas Abraão lhe disse: `Se não escutam a Moisés, nem aos Profetas, eles não acreditarão, mesmo que alguém ressuscite dos mortos” (vv. 29-31).

Abraão, porém, indica a Escritura: “Se não escutarem a Moisés nem os profetas, eles não acreditarão, mesmo que alguém ressuscite dos mortos” (v. 31). O sinal mais decisivo para atrair a fé não é o milagre, nem o mais sensacional da ressurreição (cf. Jo 11), mas a Palavra de Deus na Escritura (cf. 24,27-44), ou seja, a coerência da mensagem revelada. Jesus falou da ineficácia dos milagres para as cidades da Galileia (10,13) e da superioridade da fé na palavra sobre sinais físicos (12,29-32; Jo 14,11; 20,29).

Ao pecado do luxo desenfreado sem dar a mínima atenção misericordiosa aos pobres acrescenta-se que o rico e seus irmãos não fazem caso da Sagrada Escritura. “Moisés e os profetas” (vv. 29-31) representam todo AT (Antigo Testamento, cf.  9,30p; 16,16; 24,27.44; cf. Mt 7,12; 11,13; 22,40). No culto da sinagoga lê-se uma leitura da Lei, outra dos Profetas (cf. At 13,15). No AT, a exigência de socorrer os pobres é bastante clara e reiterada (Dt 15,1-11; Is 58,7.10, cf. Mt 25,31-46). Um belo exemplo da unidade da Bíblia: Jesus Cristo é centro e cume da revelação, mas o AT não é dispensável.

A parábola pode causar polêmica se for mal-entendida como informação exata sobre a geografia no além. Os protestantes veem nela uma prova de que não existe um purgatório entre céu e inferno, portanto não faria mais sentido tentar mudar o destino dos falecidos através de orações. É verdade que a Bíblia não fala quase nada sobre a existência de um purgatório, um lugar de purificação necessária no além antes de poder entrar no céu. As únicas referências são 1Mc 12,43-46; Mt 12,32; 1Cor 3,15; 1Pd 1,7.

Mas o doutor da graça, Santo Agostinho, insiste na existência do purgatório como argumento que Deus é justo. Se o inferno é significa estar atormentado e separado de Deus por toda eternidade, o que Deus vai fazer com os cristãos medíocres como nós que merecemos nem o céu nem o inferno? O purgatório não é vingança de Deus, mas Boa Nova de que uma transformação do mal para o bem é possível para o pecador arrependido. Aliás, no paraíso – um lugar, ou melhor, uma situação sem males -, não devem entrar maus pensamentos, precisamos ser purificados deles, aqui, ou, se não merecemos o inferno, então no além.

Os dogmas da Igreja Católica afirmam a existência de um purgatório, mas entendem o fogo e o tempo de purificação apenas em sentido simbólico (cf. CIC 1030-1032; 1472), como imagens de reconhecimento da verdade justa e de intensidade do arrependimento.

A Igreja Católica canonizou muitas pessoas, ou seja, declarou-as santas, porque tem certeza de que estão no céu, mas nunca declarou que tem certeza de certas pessoas estarem condenadas definitivamente ao inferno, porque a Igreja não pode limitar a misericórdia de Deus (Papa Francisco disse em outro contexto: “Quem sou eu para julgar…”). Isso não quer dizer que todos serão salvos. A Igreja tem esperança da misericórdia divina para com todos, mas impossível ter certeza.

Bem-entendida, a doutrina sobre o purgatório expressa a justiça divina com misericórdia respeitando as matizes e nuances e nossa possibilidade de orar pelos falecidos (cf. o trecho de 1Mc 12,43-46, num dos sete livros não reconhecidos na Bíblia dos protestantes e que representa certa espiritualidade judaica na época próxima de Jesus).

Mal-entendida, a doutrina do purgatório pode tirar a seriedade da possibilidade real do inferno, de se perder para sempre, e portanto, a urgência de se converter aqui e agora antes de ser tarde demais. Sem dúvida, neste sentido, a parábola de hoje quer, como muitos textos da Bíblia, incentivar uma conversão sincera e não um relaxamento na fé e na moral diante da urgência de mudança das pessoas e da sociedade.

O site da CNBB comenta: O tempo santo da quaresma é tempo de conversão. Quando falamos de conversão, precisamos pensar antes de tudo nas suas motivações, pois delas depende a sua perseverança. O Evangelho de hoje nos mostra um dos principais elementos que devemos levar em consideração no que diz respeito à motivação para a conversão que é a questão dos valores. Para o homem rico, os valores fundamentais eram a quantidade de bens materiais e os prazeres do mundo. De nada lhe adiantaram Moisés e os Profetas porque, como não havia comunhão de valores, estes se tornaram discursos vazios e a religião foi reduzida a ritualismos. Nesta quaresma, precisamos assumir como próprios de todos nós os valores do Evangelho para que de fato nos convertamos.

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