3 de Agosto 2019, Sábado: Herodes queria matar João, mas tinha medo do povo, que o considerava como profeta (v. 5).

17ª Semana do Tempo Comum

Leitura: Lv 25,1.8-17

O cap. 25 de Lv fala do ano sabático (vv. 2-7, omitido na leitura de hoje) e do ano de jubileu, do resgate das propriedades e de pessoas. O ano sabático significa que a cada sete anos a terra deve descansar, sem nenhum cultivo. Esta lei abre duas grandes perspectivas: o respeito para o ciclo da natureza (aspecto ecológico) e respeito para Deus, reconhecendo-o como único proprietário da terra (aspecto religioso). Ele a dá igualmente para todos, para que todos possam usufruir dela (aspecto social).

Estas leis afirmam o domínio absoluto de Deus sobre a terra santa: o próprio solo observará o sábado (cf. Ex 20,8). O ano sabático aparece desde o código da aliança, já antes do dia do sábado (Ex 23,10-12); a legislação é fixada aqui em Lv 25,1-7. Após o exílio a sua observância é confirmada em Ne 10,32 e 1Mc 6,49-53. Dt 15,1-11 acrescenta a remissão das dividas. Os escravos hebreus deveriam ser libertados no sétimo ano da sua servidão, mas sem relação necessária com o ano sabático (Ex 21,2; Dt 15,12-18). Esta prescrição era pouco observada (cf. Jr 34,8-16) e a fim de se tornar menos onerosa, ela foi ligada a um ciclo de 50 anos.

O ano de júbilo enfraquece bastante a legislação antiga do ano sabático, que previa a prática da libertação do escravo (não de mãos vazias, mas carregado com uma parte de bens materiais) a cada sete anos (cf. Dt 15,12-18). Esta nova legislação, provavelmente, prevê a recuperação das propriedades para os judeus que voltam do exílio na Babilônia. Não está claro se o descanso de 50 anos é cumulativo ou supre um dos sabáticos. Tampouco nos consta que tenha sido praticado com rigor. Nele confluem o descanso do campo, a libertação de escravos, o perdão de dividas. A terra de Canaã voltaria à sua suposta situação inicial, quando Josué o partiu por sorte (Js 13-21). Este ponto de referencia, uma volta cíclica a um momento ideal, deve regular as operações comerciais do tempo intermédio. Parece uma medida teórica para evitar o açambarcamento de terrenos e excessivo enriquecimento de alguns que os profetas denunciam e combatem (cf. a vinha de Nabot em 1Rs 21).

O Senhor falou a Moisés no monte Sinai, dizendo: (v. 1)

Na legislação do Sinai incluíram-se muitas leis e preceitos posteriores, um procedimento de regulamentos e determinações como se hoje anexa às leis. Na Bíblia, porém, foram anexados sem caracterizá-los como tais. Embora situado logo após o êxodo e atribuído a Moisés no Sinai, Lv foi escrito só depois do exílio babilônico.

“Contarás sete semanas de anos, ou seja, sete vezes sete anos, o que dará quarenta e nove anos. Então farás soar a trombeta no décimo dia do sétimo mês. No dia da Expiação fareis soar a trombeta por todo o país. Declarareis santo o quinquagésimo ano e proclamareis a libertação para todos os habitantes do país: será para vós um jubileu (vv. 1.8-10a).

A contagem é semelhante à da festa das semanas (cf. 23,15-16; leitura de ontem), sete semanas após a páscoa: sete vezes sete dias são quarenta e nove dias, o quinquagésimo (em grego: pentecostes) é santo. A celebração é solene. A Igreja retomou o costume de declarar um “Ano Santo”, antes de 50 a 50 anos, ultimamente de 25 a 25 anos (1975 e 2000). O Papa Francisco convocou para um “jubileu extraordinário, um ano santo da misericórdia” de 08/12/2015 (50 anos da conclusão do concílio Vaticano II) a 20/11/2016

No sétimo mês, isto é, depois da colheita, o ano jubilar começa no “dia da expiação” (cf. 23,7 e cap. 16), como se o perdão de todos os pecados acarretasse o perdão de toda a dívida. Anuncia-se com o toque especial de um instrumento feito de chifre de carneiro, Yobel, de onde procede nosso termo “jubileu, júbilo”. O “ano da graça” que virá com o messias alude ao ano de júbilo em Is 61,1s, citado por Jesus em Lc 4,18s em que se apresenta como portador da liberdade reencontrada dos pobres.

Cada um de vós poderá retornar à sua propriedade e voltar para a sua família (v. 10b).

É uma fórmula sintética, programática: a propriedade alienada retorna ao proprietário originário, o escravo retorna livre à sua família.

O quinquagésimo ano será para vós um ano de jubileu: não semeareis, nem colhereis o que a terra produzir espontaneamente, nem colhereis as uvas da vinha não podada; pois é um ano de jubileu, sagrado para vós, mas podereis comer o que produziram os campos não cultivados. Nesse ano de jubileu cada um poderá retornar à sua propriedade (vv. 11-13).

Esta lei compreendia além do repouso dos campos uma franquia geral das pessoas e dos bens, voltando cada um para seu clã e retomando seu patrimônio. Estas medidas tinham por fim assegurar a estabilidade da sociedade fundada sobre a família e o bem familiar. Mas na verdade isso não era senão um esforço tardio para tornar a lei sabática mais eficaz e parece que esta lei jamais foi observada.

Se venderes ao teu conterrâneo, ou dele comprares alguma coisa, que ninguém explore o seu irmão; de acordo com o número de anos decorridos após o jubileu, o teu conterrâneo fixará para ti o preço de compra, e de acordo com os anos de colheita, ele fixará o preço de venda. Quanto maior o número de anos que restarem após o jubileu, tanto maior será o preço da terra; quanto menor o número de anos, tanto menor será o seu preço, pois ele te vende de acordo com o número de colheitas. Não vos leseis uns aos outros entre irmãos, mas temei o vosso Deus. Eu sou o Senhor, vosso Deus” (vv. 14-17). 

As normas sobre compra e venda em vv. 14-17 são realistas. Mais importante é o espírito que o permeia: não prejudicar o próximo (“seu irmão”, vv. 14b.17a; cf. 19,18). O ano do júbilo tem duplo caráter, sagrado e social. Esta lei assegura a equidade das transações e ao mesmo tempo luta contra açambarcamento das terras denunciado por Is 5,8 e Mq 2,2.

Transposto para o plano espiritual, o ano santo e jubileu da Igreja dá aos cristãos periodicamente a ocasião de uma remissão das suas dívidas para com Deus incluindo indulgências. Mas também continua o aspecto socioeconômico: No ano 2000, a Igreja com sua instituição da Cáritas cujo presidente é o cardeal de Honduras, D. Oscar Maradiaga, lutou pelo perdão da dívida externa dos países mais pobres, e conseguiu isto em parte nas instituições internacionais. Hoje ele é um dos oito conselheiros do Papa Francisco.

A Nova Bíblia Pastoral (p. 147) comenta o cap. 25: Práticas camponeses relevantes ainda hoje: o ano de descanso para a terra (vv. 2-7.18-22); cf. Ex 23,10-13; 1Mc 6,53)´; a noção de que a terra é de Deus e somos hóspedes passageiros nela (v. 23); a instituição do go’el, espécie de padrinho que devia resgatar ou evitar que parentes endividados perdessem a terra (v. 25; cf. Rt 2,20; 4,1-14) ou fossem escravizados (vv. 47-49), freando a concentração de terras (Dt 19,14; 27,17; Is 5,8; Mq 2,2) e a exploração dos pobres (Is 10,1-2; Jr 22,13-17; Ez 22,6-12.25-29; Am 2,6-8; 2,10; Mq 3,1-3). Todavia, no pós-exílio, foram integradas no jubileu, que legitima o domínio da hierarquia sacerdotal sobre a terra (v. 23, cf. Ez 48,1-29) e inviabiliza o resgate da terra e da liberdade, pois passa a referência de seis anos (cf. Ex 21,1; Dt 15,12-18; Jr 34,14) para cinquenta colheitas anuais (vv. 23-28) ou cinquenta anos de salário de um diarista (vv. 47-54), favorecendo a exploração dos pobres e a concentração da terra, além de legitimar a escravidão dos estrangeiros (vv. 44-46; cf. 22,11; Dt 15,4), antes proibida (cf. 19,33-34; Ex 23,9; Dt 10,18-19; 24,14.17-18; Jr 7,7; Ez 22,7.29).

 

Evangelho: Mt 14,1-12

Este relato do martírio de João Batista que ouvimos hoje, Mt copiou de Mc 6,17-29 e o resumiu conforme seu costume, fazendo da morte do Batista um tipo de destino dos antigos profetas e do próprio Jesus.

Naquele tempo, a fama de Jesus chegou aos ouvidos do governador Herodes (v. 1).

O alcance da mensagem de Jesus se ampliou, até Herodes ouviu falar de Jesus. Não é o Herodes Magno (Grande) que perseguiu o menino Jesus (Mt 2), mas um dos seus filhos, o Herodes Antipas, o “governador” (lit. “tetrarca”, porque só reinava sobre um terço da área governada por seu pai) da Galileia e da Pereia (Transjordânia) entre 4 a.C. até 39 d.C.

Ele disse a seus servidores: “É João Batista, que ressuscitou dos mortos; e, por isso, os poderes miraculosos atuam nele” (v. 2).

Herodes não entende quem é Jesus, como muitos outros, que o confundem com João Batista ou Elias, Jeremias ou outro profeta (cf. 16,14p). João Batista e Jesus tinham quase a mesma idade e eram parentes (segundo Lc 1,36). João Batista deixou um impacto de modo que Jesus parecesse uma cópia dele (seguidor, “ressuscitado”), e não João como precursor de Jesus. Herodes e o povo não levam em conta as diferenças entre Jesus e João relatadas no quarto evangelho (João não realizou milagres e seu batismo não está ligado ao Espírito; o próprio Jesus não batizou, cf. Jo 1,19-36; 3,22-30; 4,1-2). Herodes achava que João ressuscitou em Jesus; somente agora o leitor de Mt sabe que João tinha morrido, mas não muito tempo atrás (cf. o final de v. 12, os discípulos de João “foram contar a Jesus o que tinha acontecido”; em 11,2s, da prisão, João enviou uma pergunta a Jesus através deles). As circunstâncias da morte do Batista são descritas em seguida em técnica retrospectiva.

De fato, Herodes tinha mandado prender João, amarrá-lo e colocá-lo na prisão, por causa de Herodíades, a mulher de seu irmão Filipe. Pois João tinha dito a Herodes: “Não te é permitido tê-la como esposa” (vv. 3-4).

De certo modo, é a continuação de 11,2-29, quando João Batista já estava na prisão (da fonte Q, cf. Lc 7,18-28). Já em 4,12, Jesus tinha ouvido da prisão de João e voltou à Galileia onde começou a pregar (4,17; cf. Mc 1,14s). O evangelista imagina a atividade pública de Jesus durante a prisão do Batista até este momento.

O motivo da prisão do Batista nos evangelhos é a crítica de João a respeito do casamento ilegítimo do governador com a esposa do seu irmão, o tetrarca Filipe que governava a Itureia e a Traconítide (cf. Lc 3,1). Para o historiador contemporâneo, Josefo Flávio, o motivo era político. A relação ilegítima de Herodes (Lv 18,16; 20,21), a admoestação franca de João (como a do profeta Natã o rei Davi, cf. 2Sm 12), o rancor passional de Herodíades (v. 8; cf. Mc 6,19); isso lembra o drama do fraco rei de Israel Acab (873-853 a.C.), cuja esposa Jezabel o incitava ao crime; então o profeta Elias que denunciou este crime acabou perseguido e ameaçado de morte (Elias é modelo do Batista, cf. 1Rs 21; 2Rs 1,8; Mt 3,4; 11,14; 17,11-13). No seu relato mais resumido que Mc, Mt diminui a intriga de Herodíades na morte de João e reforça o papel negativo de Herodes. Os leitores já sabem da perseguição de Herodes Pai (Mt 2) e não esperam nada de bom do filho dele.

Herodes queria matar João, mas tinha medo do povo, que o considerava como profeta (v. 5).

O medo diante da multidão, que Herodes sente, encontra-se depois nos dirigentes judaicos em Jerusalém (21,26.46). Nisso, Herodes Pai e Filho estão em sintonia com o povo judeu em ”toda Jerusalém” (cf. 2,3s).

Por ocasião do aniversário de Herodes, a filha de Herodíades dançou diante de todos, e agradou tanto a Herodes que ele prometeu, com juramento, dar a ela tudo o que pedisse. Instigada pela mãe, ela disse: “Dá-me aqui, num prato, a cabeça de João Batista” (vv. 6-8). 

A morte de João acontece durante um banquete de poderosos. Assim, o profeta que pregava o início da transformação radical é morto por aqueles que se sentem incomodados com essa transformação. Herodes celebra o banquete da morte (de João) com os grandes, mas Jesus celebra o banquete da vida com os pobres (a multiplicação dos pães, evangelho de segunda-feira próxima, 14,13-21 seguindo o mesmo contexto de Mc 6,30-44).

O aniversário do rei (Mt chama o governador/tetrarca de “rei” em v. 9, como Mc 6,14.22.26s) é ocasião de fazer benefícios e conceder perdão. A princesa Salomé (cujo nome não consta nos evangelhos, mas em outros registros) faz o papel de bailarina (cf. Ct 7,1-7) num solo de exibição oferecido a um público masculino. O rei, numa demonstração de esplendidez, promete dar-lhe quanto pedir, e ainda jura. Herodíades aproveita a ocasião propícia. O inesperado pedido da princesa coloca o rei numa posição comprometida: dividido entre estima/temor pelo Batista (em Mc 6,20.26) e o juramento pronunciado diante dos convidados.

O pedido invalidaria sem mais o juramento. Um juramento não pode justificar um crime de assassinato. Os leitores de Mt já sabem qual é a vontade de Deus a respeito do juramento (5,33-37). Jurando assim, Herodes abusa do nome divino, seu juramento leva ao crime.

O rei ficou triste, mas, por causa do juramento diante dos convidados, ordenou que atendessem o pedido dela. E mandou cortar a cabeça de João, no cárcere. Depois a cabeça foi trazida num prato, entregue à moça e está a levou para a sua mãe (vv. 9-11).

Mas o rei cede à sensualidade e aos compromissos de corte. O banquete tem um final macabro, “a cabeça foi levada num prato, foi entregue à moça, e está a levou para a sua mãe. ” Uma cena semelhante, embora de signo contrário, é Judite levando e mostrando a cabeça de Holofernes (Jt 13). Uma tradição judaica sobre Ester fala da cabeça da rainha Vasti (cf. Est 1,9-2,1) levada numa bandeja à sala. A moça levando a bandeja com a cabeça do Batista tem acendido a fantasia de escritores e artistas e convertido João e Salomé em figuras arquetípicas. Mas João está prefigurando antes de tudo a morte de Jesus e também sua sepultura.

Os discípulos de João foram buscar o corpo e o enterraram. Depois foram contar tudo a Jesus (v. 12).

Os discípulos de João já foram mencionados em 9,14 e 11,4. Para Mt, o Batista e Jesus pertencem juntos (cf. 3,14s): anunciam a mesma mensagem do reino (3,2; 4,17), têm os mesmos adversários (Herodes, fariseus e saduceus; cf. 3,7) e sofrem o mesmo destino, a morte violenta de profeta perseguido por Israel (motivo tradicional no AT usado por Mt em 5,12; 17,12; 21,33-41; 22,3-6; 23,29-36). Por isso, é natural para Mt, que os discípulos órfãos de João fossem a Jesus (cf. Jo 1,35-37). “Depois foram contar tudo a Jesus” (v. 12b), Mt acrescenta este detalhe que Mc não mencionou.

O quadro denuncia sem afetação a imoralidade e corrupção dos dirigentes. A cabeça de João Batista não é um prato tão raro como parece, como se pode ver no destino dos profetas de ontem e hoje e do próprio Jesus. Em jantares e festas, como aquela, no limite da moralidade muitas mortes acontecem. Há mais assassinatos no final da semana do que nos dias de trabalho.

O site da CNBB comenta: A vida de João Batista foi sempre a história da ação divina na história da humanidade, mas principalmente a oposição que existe entre os valores do Reino de Deus e os valores que são assumidos e vividos pelas pessoas. Esta oposição aparece desde o início da vida de João, quando Zacarias, no seu cântico, afirma que ele veio para iluminar os que jazem nas trevas. Mas assim como acontece com Jesus, acontece também com João: os que são das trevas não o receberam, de modo que a sua morte foi consequência desta contradição. Mas até a sua morte se torna contradição, porque ela acaba por se tornar um testemunho ainda maior da verdadeira vida, que é destinada aos filhos da luz.

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