3 de Junho de 2021, Quinta-feira: “Tomai, isto é o meu corpo”.

Corpus Christi – Ano B 

1ª Leitura: Ex 24,3-8

A 1ª leitura de hoje apresenta o rito central da Antiga Aliança no monte Horeb/Sinai. Aliança = Contrato = Testamento. A palavra hebraica berit pode ser traduzida por aliança ou por testamento: a antiga Aliança é com Moisés e o povo de Israel, a nova Aliança é o Novo Testamento (NT) no sangue de Jesus (cf. 1Cor 11,25). Na Bíblia temos as duas grandes partes: Antigo (ou Velho ou Primeiro) Testamento, o qual é também a Bíblia dos judeus (a Bíblia Hebraica, sem os sete livros gregos que fazem parte da Bíblia católica) e o Novo (ou Segundo) Testamento (exclusivamente cristão).

A liturgia nossa cortou os vv. 1-2 e 9-11. No conjunto dos vv. 1-11 há restos da conclusão de uma antiga aliança que devem ser de uma tradição anterior à reforma centralizadora de Josias no reino de Judá (por volta de 622 a.C.; cf. 2Rs 22-23): Menciona a presença de Nadab e Abiú (vv. 1.9), filhos de Aarão e famílias sacerdotais nortistas que depois serão excluídas (cf. 6,23; 28,1; Lv 10,1-4; Nm 3,2-4; 26,60s; 1Cr 24,3). Fala de “marcos de pedra” cf. Gn 28,18.22; estas colunas sagradas foram destruídas depois por Josias (2Rs 23,6.14-15) e de sacrifícios realizados por não-sacerdotes (vv. 4-5), de sangue aspergido sobre o povo e de pessoas que veem Deus (vv. 8-11; em contradição em 19,12.21; 33,20; Lv 26,1; Nm 4,20), junto com o livro e o banquete da aliança (v. 11; cf. Gn 26,28-30; 31,43-54).

Moisés veio e transmitiu ao povo todas as palavras do Senhor e todos os decretos. O povo respondeu em coro: “Faremos tudo o que o Senhor nos disse” (v. 3).

O próprio Deus já tinha pronunciado pessoalmente ao povo as “dez palavras” (decálogo, ou seja, os dez mandamentos; cf. 20,1; 34,28; Dt 4,13; 10,4) ao povo, e Moisés apresentou “todos os decretos”, ou seja, o antigo código da aliança (caps. 21-23) como cláusulas da aliança. O povo aceita e promete obediência (cf. 19,8). As “palavras” em v. 3 referem-se ao decálogo, chamado “livro da aliança” (v. 7), diferente do Código da Aliança (20,22-23-33: uma coletânea antiga, sedentária e agrícola). Deus promete ser fiel a seu povo, e o povo, por sua vez, promete fidelidade e docilidade à vontade de Deus.

Então Moisés escreveu todas as palavras do Senhor. Levantando-se na manhã seguinte, ergueu ao pé da montanha um altar e doze marcos de pedra pelas doze tribos de Israel (v. 4).

Depois, “todas as palavras” são escritas no documento/protocolo da aliança, que confere validade e se conserva para o futuro; a leitura se detém.

As “tábuas de pedra com a Lei” (v. 12), escritas ora por Moisés (34,27-28) ora por Deus (24,12; 31,18; 32,16; 34,1; Dt 10,4), contém o decálogo; é o “testemunho” que será depositado depois na Arca da Aliança (25,10-22; 40,20; na destruição de Jerusalém em 586, a arca se perderá; cf. Jr 3,16; Ap 11,19).

As “doze marcos de pedra” (talvez em círculo como um dólmen ou em Stonehenge; cf. Js 4) representam as tribos/filhos de Jacó/Israel (cf. Gn 29,31-30,24; 35,15-20), ao passo que o altar (talvez no centro) representa o Senhor.

Em seguida, mandou alguns jovens israelitas oferecer holocaustos e imolar novilhos como sacrifícios pacíficos ao Senhor (v. 5).

Uns jovens – ainda não funciona o corpo levítico – oferecem holocaustos e sacrifícios de comunhão (Sl 50,5). A vítima oferecida se consagra; seu sangue, que é sua vida, é agora sagrado. A palavra grega “holocausto” (shoá em hebraico; cf. Gn 22; Lv 1) significa um sacrifício em que a vítima é inteiramente consumida pelas chamas; no séc. 20 d.C. tornou-se sinônimo do massacre nazista que matou milhões de judeus nas câmeras de gás e depois os queimou no fornos de Auschwitz e outros campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial.

Moisés tomou metade do sangue e o pôs em vasilhas, e derramou a outra metade sobre o altar. Tomou depois o livro da aliança e o leu em voz alta ao povo, que respondeu: “Faremos tudo o que o Senhor disse e lhe obedeceremos”. Moisés, então, com o sangue separado, aspergiu o povo, dizendo: “Este é o sangue da aliança, que o Senhor fez convosco, segundo todas estas palavras” (vv. 6-8).

Moisés, intermediário entre Javé e o povo, une ambos simbolicamente espalhando sobre o altar (que representa Javé Deus), e depois sobre o povo, o sangue de uma única vítima (obs.: a palavra em latim hóstia significa “vítima”). O pacto é então ratificado pelo sangue do animal (cf. Lv 1,5), como a Nova Aliança o será pelo sangue de Cristo (Mc 14,24p; Hb 9,12-26). O sangue era considerado a sede do princípio vital (Gn 9,4; Dt 12,16.23; Sl 30,10), daí o seu valor expiatório (Lv 17,11) e seu papel de primeiro plano no ritual dos sacrifícios e alianças.

Ao ser repartido entre Deus e o povo (cf. Hb 9,18s), o sangue une como vínculo sagrado as duas partes; é o sinal ou o sacramento da aliança. Antes da aspersão do povo, procede-se a leitura ou proclamação do protocolo (“livro da aliança”), e o povo pela terceira vez aceita (cf. 19,8). A nova aliança será selada pelo sangue de Cristo que retomará parte desses ritos e termos na instituição da Eucaristia (cf. a palavra de Jesus sobre o cálice em Mt 26,27 e Mc 14,24; Lc 22,20 e 1Cor 11,23-25).

2ª Leitura: Hb 9,11-15

Na parte central de sua exposição (7,1-10,18; cf. 8,1), o autor anônimo de Hb opôs à antiga aliança, imperfeita e provisória, a nova aliança em Cristo (8,6-13); opôs às antigas instituições (o culto pelos sacerdotes no templo de Jerusalém) a nova instituição do sacrifício oferecido por Cristo (cf. vv. 2-10). Ainda explicita como a “nova aliança” se realizou em Cristo (v. 15)

É discutido na exegese atual, se na época da redação de Hb ainda havia o culto no Templo de Jerusalém com sacerdotes atuando. A datação de Hb (antes de 70 ou perto de 90 d.C.) depende desta resposta, porque o Templo foi destruído pelos romanos em 70 d.C. e nunca mais reconstruído (um santuário muçulmano está no lugar hoje). Em 10,1-3.11, o autor de Hb descreve a liturgia do templo como atual, mas em 9,10 afirma que ela estava destinada a desparecer (em 9,4s fala da arca da aliança que já havia sumida na primeira destruição do templo em 587 a.C. pelo babilônios, cf. Jr 3,16; 2Rs 25,8-15).

A descrição funda-se na lei de Moisés (Ex 25-26; 36-37; 40), não se interessa pelo “templo” (construído por Salomão, cf. 1Rs 6-8; destruído pelo babilônios, cf. 2Rs 25; reconstruído após o exílio, cf. Esd 5-6, e amplamente reformado por Herodes cf. Jo 2,20), mas usa a palavra “tenda” para o santuário seguindo a ficção do Êxodo, que projeta a disposição do templo de Jerusalém sobre um acampamento de nômades no deserto do Sinai. Mesmo em tempos posteriores, podia-se chamar o templo de Jerusalém de “tenda (tabernáculo)” (p. ex. Sl 15,1; 27,5; 61,5).

Pela mesma razão, fala de duas tendas sucessivas, que correspondem ao átrio e ao camarim.

O autor salienta a distinção entre a primeira e a segunda parte do lugar do culto (cf. Ex 26,33). A esta distinção histórica corresponde em seguida uma distinção espacial entre “tenda” (Santo) e “santuário” (Santo dos Santos; “Santíssimo”). A tenda é a via de acesso; o santuário ou câmara sagrada é o objetivo a ser alcançado (cf. 9,11s). Já a “primeira tenda” não é acessível ao povo, é acessível aos sacerdotes e serve de passagem ao sumo sacerdote para ter acesso ao camarim, “outra (segunda) tenda” ou “santíssimo”, com graves limitações: “Só o sumo sacerdote entra” nesse interior (segunda tenda) e só um dia por ano (no dia do perdão ou da “expiação,” Yom kippur, Lv 16); ele tem de repetir isso a cada ano, “oferecer sangue por seus pecados e pelos do povo” (v. 7).

A tenda, mais que um acesso evidente, era uma barreira. “O Espirito Santo quis mostrar que o caminho do santuário não está aberto, enquanto existir a primeira tenda” (v. 8). Na antiga aliança, o povo não tinha acesso a Deus e o sumo sacerdote não entrou na verdadeira morada de Deus, apenas numa construção humana, material (cf. 9,1.24; mas Deus não habita em construções humanas; cf. At 7,48; 17,24). Na nova aliança, porém, Cristo será o caminho para ir ao Pai (Jo 14,6; cf. Hb 10,19). Na hora da sua morte de Jesus, a “cortina” que separava o Santo e o Santo dos Santos (Ex 26,33) rasgou dando acesso ao santíssimo (Mc 15,39p).

Cristo veio como sumo sacerdote dos bens futuros. Através de uma tenda maior e mais perfeita, que não é obra de mãos humanas, isto é, que não faz parte desta criação, e não com o sangue de bodes e bezerros, mas com o seu próprio sangue, ele entrou no Santuário uma vez por todas, obtendo uma redenção eterna (vv. 11-12).

Ao culto antigo dos sacerdotes levitas no templo contrapõe-se o sacerdócio de Cristo que é o “sumo sacerdote segundo a ordem de Melquisedec” (cf. 2,17; 3,1; 4,14-5,10; 6,19-28; Sl 110,4) e dos “bens futuros” (cf. 10,1). Alguns manuscritos trazem outro texto: “dos bens já chegados (realizados)”. Em ambos os casos, trata-se das realidades definitivas, realidades “do mundo que há de vir” (6,5), cujo acesso, doravante, está aberto aos crentes graças ao sacrifício de Cristo.

Cristo realizou o que nenhum sumo sacerdote havia podido realizar, “ele entrou no Santuário uma vez por todas”, através de dois meios paralelos ao antigo culto: uma via de acesso e uma oferenda sacrifical. A via de acesso é “uma tenda maior” que substitui a primeira tenda criticada em v. 8; e a oferenda sacrifical consiste no “próprio sangue” de Cristo que substitui o “sangue de bodes e bezerros”, isto é, os sacrifícios criticados em v. 9.

O que significa esta “tenda maior e mais perfeita, que não é obra de mãos humanas, isto é, que não faz parte desta criação” (cf. 8,2; 9,24)? Alguns estudiosos pensam que a tenda designaria os céus que Cristo atravessou (cf. 4,14), o “Santo” da Tenda celeste (v. 11), e chegou à presença de Deus no “Santo dos Santos” (santuário, v. 12). Mas isso não coaduna com o que foi dito em v. 8: a via de acesso não estava aberta na época da primeira tenda. O autor parece ter em vista o mistério do corpo de Cristo ressuscitado, templo não feito por mão de homem e nova criação (cf. 10,20; Mc 14,58p; Jo 2,19-21; 2Cor 5,1.17).

Albert Vanhoye (p. 74) comenta: Por meio da sua morte e ressurreição, Jesus constituiu um novo Templo, não material, mas espiritual que permite aos crentes entrar em contato com Deus … Para entrar na glória do Pai, o próprio Jesus, enquanto homem, precisou da transformação da sua humanidade. Essa transformação se efetuou na Paixão. E é por meio de sua humanidade transformada que Cristo se colocou em contato com Deus … Entretanto, a “tenda maior e mais perfeita” evidentemente, não constitui meio e acesso reservado para o uso exclusivo de Cristo. Ao contrário, ela foi constituída para nós. Todos nós somos convidados a entrar nela para encontrar união com Deus (cf. 10,19-22). Mas foi Cristo quem estabeleceu essa tenda (cf. 3,3) e também foi ele quem inaugurou esse caminho (10,20).

O “Santuário” (ou Santíssimo, segundo outra leitura) é a morada de Deus no céu, onde Cristo entrou “uma vez por todas” para uma “redenção eterna”. Esta libertação definitiva opõe-se às libertações temporárias, sucedidas no decurso da história de Israel (cf. Ex 6,6-7; Jz 2,16-23).

De fato, se o sangue de bodes e touros, e a cinza de novilhas espalhada sobre os seres impuros os santifica e realiza a pureza ritual dos corpos, quanto mais o Sangue de Cristo, purificará a nossa consciência das obras mortas, para servirmos ao Deus vivo, pois, em virtude do espírito eterno, Cristo se ofereceu a si mesmo a Deus como vítima sem mancha (vv. 13-14).

Em 5,7 o autor descreveu a oferenda de Cristo dizendo que ele “apresentou pedidos e súplicas …”, agora diz que “se ofereceu a si mesmo a Deus”. Em sua prece suplicante abriu todo seu ser de homem à ação transformadora de Deus e foi “levado à perfeição” (5,8).

Nós costumamos conceber uma oferenda como meio de agradar a Deus e atrair suas boas graças. De alguma forma, procuramos fazer com que Deus mude sua atitude para conosco. Mas o autor de Hb mostra que o efeito do sacrifício deve ser muito mais transformar àquele que oferece do que aquele a quem é oferecido. Os sacrifícios antigos eram insuficientes, “sem eficácia para aperfeiçoar a consciência de quem presta o culto” (9,9). Não passaram de “ritos humanos” (9,9; lit. ritos de carne) para “pureza ritual dos corpos” (lit. para a pureza da carne; era ritual exigida para participar no culto antigo.

O sacrifício de Cristo não é menos real que os sacrifícios antigos: o sangue foi derramado. Mas é incomparável superior, por ser um compromisso pessoal, de uma pessoa isenta de pecado, e que o Espírito Santo anima. Daí provém sua eficácia para a purificação dos pecados e para união dos seres humanos com Deus (sua mediação sacerdotal): “purificará a nossa consciência das obras mortas (cf. 6,1) para servirmos ao Deus vivo”.

A “vítima sem mancha” (v. 14; cf. o cordeiro pascal em Ex 12,5) é Cristo com seu “próprio sangue” (v. 12; cf. Mt 26,28p), sua oferenda sacrifical. Por meio desta oferenda a humanidade de Cristo se transformou e se tornou “perfeita” (cf. 7,28; 5,9; 2,10).

Albert Vanhoye (p. 76) comenta: Passa-se de um culto ritual, exterior, separado da vida, a uma oferenda pessoal, total, que se realiza nos dramáticos acontecimentos da própria existência. Necessário no caso dos sacerdotes judeus, a distinção entre o sacerdote e a vítima é abolida na oferenda de Cristo, que foi ao mesmo tempo sacerdote e vítima, pois se ofereceu a si mesmo. E como é que isso foi possível? … Cristo pôde se oferecer a si mesmo porque era digno de ser oferecido, pois não tinha “mancha” e porque era capaz de se oferecer, “por um espírito eterno”. Diferentemente dos antigos sacerdotes, Jesus era absolutamente isento de qualquer pedado e de qualquer cumplicidade com o mal (cf. 4,15): ele era “santo, inocente, imaculado” (7,26). Assim, podia se apresentar a Deus sem se arriscar de desagradá-lo. Ademais, o Espirito Santo de que estava tomado (Lc 4,1) o tornava capaz de generosidade total…

“Em virtude do espírito eterno, …” (var.: “pelo Espírito Santo”; cf. Rm 1,4). Na oferenda de Cristo, o Espírito assume o papel que era atribuído ao “fogo do céu” que transforma e consagra (cf. Lv 9,24; 1Rs 18,38; 2Cr 7,1; 2Mc 1,22; 2,1).

O Corpo de Cristo é um corpo espiritual, o local de um Pentecostes perpétuo. Em Cristo, a Igreja é a Igreja do Espírito Santo. A celebração eucarística, que constitui a Igreja, está inteiramente estruturada com base na epiclese, essa súplica que o sacerdote – e com ele o povo –  dirige a Deus para que ele envie o seu Espírito Santo “sobre nós e sobre estes dons”, isto é, o pão e o vinho. E a primeira e original epiclese é a do Senhor ressuscitado “elevando-se” à direita do Pai e intercedendo junto a ele … para que envie o sopro e o fogo de Pentecostes à Igreja expectante. Na medida em que a comunhão eucarística nos integra ao Corpo de Cristo, nós entramos no lugar – o único sem obstáculos – em que a “vida na morte” se transforme em “vida no Espírito” (O. Clement, La Douloreuse Joie, pp. 5-6).

A Bíblia de Jerusalém (p. 245) comenta o rito antigo com “a cinza da novilha” em Nm 19,2-10: …água lustral (vv. 17-22), preparada com as cinzas de uma novilha vermelha imolada e queimada fora do acampamento (vv. 1-10), serve para apagar a impureza contraída no contato com um morto (vv. 11-16). Este ritual, ao qual somente um outro texto faz referência (Nm 31,23, além de Hb 9,13), legitima uma antiga prática colorida de magia, assimilando-o a um sacrifício de expiação pelo pecado (v. 17 e comp. com Lv 16,27; v. 8 com Lv 16,28).

A Nova Bíblia Pastoral (p. 1475) resume: O sangue de animais dava a possibilidade às pessoas de participarem do culto, o que não se dirá do sangue de Jesus! De uma vez por todas, ele possibilitará à comunidade servir a Deus de forma mais adequada, pois está mais próxima dele do que estavam os sumos sacerdotes ao entrarem no santuário apenas uma vez por ano. O autor não entende a morte de Jesus em termos fatalistas, mas por solidariedade, e associa essa morte com a festa israelita do perdão apresentada em Lv 16. 

Cristo é mediador de uma nova aliança. Pela sua morte, ele reparou as transgressões cometidas no decorrer da primeira aliança. E, assim, aqueles que são chamados recebem a promessa da herança eterna (v. 15).

A antiga aliança de Deus era com o povo de Israel, concluída no Sinai (cf. 8,9; Ex 24,3-8). A mudança de culto sacrifical era necessária para que o relacionamento entre os homens e Deus fosse firmado numa base melhor (cf. 7,12.18-19).

“Cristo é o mediador de uma nova aliança” (v. 15a; cf. 8,6-7.13; 13,20; 1Tm 2,5). Esta aliança é melhor do que a antiga e já foi predita pelos profetas (8,8-12; Jr 31,31-34). A aliança antiga com seu sacerdócio levita e sacrifícios de animais não foi capaz de salvar dos pecados. Só pelo sangue de Cristo, ou seja, “pela sua morte, ele reparou as transgressões cometidas no decorrer da primeira aliança” (v. 15b).

A Bíblia de Jerusalém (p. 2249) comenta a palavra “mediador”: O termo assim atribuído a Cristo tem um valor quase técnico (9,15; 12,24; 13,20). Plenamente homem (2,14-18; cf. Rm 5,15; 1Cor 15,21; 1Tm 2,5), possuindo todavia a plenitude da divindade (Cl 2,9; Rm 9,5), Jesus é o intermediário único (Rm 5,5,15-19; 1Tm 2,5; cf. 1Cor 3,22-23; 11,3) entre Deus e a humanidade, que ele une e reconcilia (2Cor 5,14-20). Ele é o intermediário da graça (Jo 1,1-2). No céu, ele continua a interceder por seus fiéis (7,25).

Cristo é “o mediador de uma aliança bem melhor, baseado em promessas melhores” (v. 6; cf. vv. 7.13; 7,22; 9,15s; 13,20; 1Tm 2,5), em vez da Terra prometida, uma “herança eterna” (cf. 9,12: “redenção eterna”). A palavra grega pode ser traduzida por “aliança” ou por “testamento” (cf. Gl 5,15-17). “Com efeito, onde existe testamento, é necessário que se constate a morte do testador. Um testamento só tem valor no caso de morte” (vv. 16-17a).

O profeta Jeremias já anunciou a nova aliança (Jr 31,31-34), mas não explicitou muito de que modo se fundaria. Nos vv. 16-23 (omitidos por nossa liturgia), o autor de Hb observa que, no Antigo Testamento, uma aliança entre Deus e os seres humanos se funda sobre um sacrifício de “sangue” (Ex 24,3-8), então uma nova aliança exige um novo sacrifício (cf. Mt 26,28p; 1Cor 11,25; Mc 2,21s). A “morte” de Cristo cumpre esta exigência.

O homem pecador necessitava de completa refundição de seu ser, o que só podia se realizar através da sua morte. Assim, era preciso que a morte tomasse sentido positivo, servindo para estabelecer nova relação entre o homem e Deus, bem como nova solidariedade entre os homens. E foi isso o que realizou a morte de Cristo, pois ele constituiu uma oferenda pessoal perfeita. Ela realizou definitivamente aquilo que o culto da primeira aliança só podia esboçar. Ela superou a distância que separava o homem de Deus, transportando a humanidade de Cristo para o nível celeste e introduzindo-a para sempre na intimidade de Deus (Vanhoye, p. 77).

Evangelho: Mc 14,12-16.22-26

No evangelho ouvimos a instituição da Eucaristia em Mc (vv. 22-26) na última ceia que precisava ser preparada antes (vv. 12-16).

No primeiro dia dos Ázimos, quando se imolava o cordeiro pascal, os discípulos disseram a Jesus: “Onde queres que façamos os preparativos para comeres a Páscoa?” (v. 12).

Os judeus distinguiam a festa da páscoa (celebrada com um cordeiro na primavera, no dia 15 do mês de nisan, cf. Ex 12) e a festa dos pães ázimos nos dias 15 a 21 de nisan, cf. Ex 23,14s), mas como já se comia pães ázimos na ceia pascal, na percepção popular, as duas festas se tornavam uma só (cf. Mc 14,1). Os cordeiros, porém, foram imolados no dia anterior, em 14 de nisan à tarde, e foram comidos logo depois à noite (o mesmo dia para nós, mas no calendário judeu, é com a véspera que começa outro dia, então 15 de nisan; para os judeus, o novo dia não começa à meia noite, mas na véspera (ao brilho da primeira estrela; cf. 1,32 e 16,1: quando o sábado passou). Esta confusão entre calendário grego e judaico ajudou na cronologia diferente entre os evangelhos sinóticos (Mt e Lc seguem Mc) e de João (no qual Jesus morre na mesma hora quando os cordeiros são imolados: Jo 19,31).

Jesus enviou então dois dos seus discípulos e lhes disse: “Ide à cidade. Um homem carregando um jarro de água virá ao vosso encontro. Segui-o e dizei ao dono da casa em que ele entrar: “O Mestre manda dizer: onde está a sala em que vou comer a Páscoa com os meus discípulos?” Então ele vos mostrará, no andar de cima, uma grande sala, arrumada com almofadas. Ali fareis os preparativos para nós!” Os discípulos saíram e foram à cidade. Encontraram tudo como Jesus havia dito, e prepararam a Páscoa (vv. 13-16).

A disposição miraculosa da sala tem seu relato paralelo na disposição do jumento para a entrada em Jerusalém (11,1b-7a). Nas duas narrativas, o autor se inspirou em relatos do AT que expressam de maneira semelhantes à previsão profética (1Sm 10,1-10; 1Rs 17,8-16; 2Rs 1).

Jesus envia “dois dos seus discípulos” (cf. 6,7; 11,1) à cidade. Um homem (servo) carregando um jarro de água não era coisa extraordinária. Para a ceia da páscoa precisava de muitos preparativos. A ceia pascal só podia se celebrar com pelo menos dez participantes, portanto “uma grande sala” (no mínimo 23 m²) que, geralmente, encontrava-se no andar superior das casas. Esta sala onde acontece a última ceia (“cenáculo”) deve ser a mesma onde os discípulos ficarão após a ressurreição (cf. At 1,13).

Só aqui Jesus usa a palavra “mestre” para si (talvez a tradução grega de Rabi) que transforma o pedido em ordem. Os habitantes de Jerusalém eram generosos para dispor seus aposentos para os romeiros (cf. Mt 26,18); não foi cobrado aluguel, os romeiros só deixaram as peles dos animais sacrificados para os donos de casa. Mc, porém, queria demostrar que Jesus já sabe o que vai acontecer: A paixão de Jesus vai começar e ele sabe bem disso.

Nossa liturgia omite os vv. 17-21, em que Jesus anuncia a traição (sem desmascarar Judas, como em Jo 13,26) aos Doze, já naquela sala.

Enquanto comiam, Jesus tomou o pão e, tendo pronunciado a bênção, partiu-o e entregou-lhes, dizendo: “Tomai, isto é o meu corpo”. Em seguida, tomou o cálice, deu graças, entregou-lhes e todos beberam dele. Jesus lhes disse: “Isto é o meu sangue, o sangue da aliança, que é derramado em favor de muitos (vv. 22-24).

No NT, temos quatro relatos da instituição da Eucaristia (a tradição oral deve ser bem mais antiga). O mais antigo (entre 50-52 d.C.) é de Paulo em 1Cor 23-26 (que não fala da páscoa, mas apenas danoite em que Jesus foi entregue”, mas cf. 1Cor 5,7). Entre os evangelistas, o mais antigo é Mc (cerca 70 d.C.). Mt e Lc escrevem independentemente um do outro, mas na mesma época (80-90 d.C.), seguindo a narrativa de Mc. Mt 26,26-29 é mais fiel ao relato de Mc; Lc 22,19-20, porém, mistura o relato de Mc com aquele de Paulo. Podemos concluir que havia duas tradições: uma vinda dos judeu-cristãos da Palestina (Mc, Mt), outra dos cristãos helenistas/gregos (Paulo e Lc).

Os judeus não comiam mais a ceia pascal em pé (Ex 12,11), mas (como os gregos) deitados em almofadas ao redor de uma mesa (não se “sentia” na época para comer), em sinal de um povo livre (até a pessoa mais humilde devia comer deitada).

Na ceia (pascal?), Jesus como mestre dos seus discípulos, faz o papel de anfitrião ou pai de família (cf. 3,33-35): “tomou o pão e, tendo pronunciado a bênção, partiu-o e entregou-lhes” (v. 22). É a oração de benção (beraká) que os judeus costumam fazer antes de partir e distribuir o pão.

Na nossa eucaristia, a oração do padre sobre as ofertas (é uma benção pronunciada geralmente em silêncio: “Bendito sois vós…”) e as Orações Eucarísticas são inspiradas neste “dar graças” (v. 23). A palavra grega “eucharistia” significa “ação de graças”. O termo mais antigo da Eucaristia, porém, era “partir o pão” (At 2,42; 20,7; 27,35s; cf. Lc 24,30s.35).

A novidade de Jesus são as palavras que interpretam estes gestos relacionando-os não mais ao êxodo (saída da escravidão do Egito), conteúdo da festa judaica, mas à sua própria paixão em seguida: Jesus associa o pão com seu corpo e o vinho com seu sangue, instituindo uma nova “aliança”.

Se foi uma ceia pascal (nos evangelhos sinóticos sim, em Jo não), podemos relacioná-la ao costume judaico de celebrar e atualizar o êxodo (cf. Ex 12, primeira leitura de hoje) com gestos simbólicos e didáticos.

Depois da destruição do templo em 70. d.C., os rabinos criaram a seder (ordem) da ceia pascal com diversos gestos simbólicos: por ex. mergulha-se a karpas (batata, ou outro vegetal), em água salgada. Recita-se a benção e a karpas é comida em lembrança às lágrimas do sofrimento do povo de Israel. Depois divide-se a matzá (pão ázimo) do meio (sem descobri-las) em duas partes desiguais. São comidas as ervas amargas (raiz forte, escarola, endívia e a alface romana) relembrando o sofrimento amargo dos judeus na escravidão do Egito. Depois o chefe da casa fala: “Olhemos, pois, a matzá que está sobre a mesa. Este é pão da pobreza que comeram os nossos antepassados na terra do Egito. Quem tiver fome, e muitos são os que tem fome neste mundo em que vivemos, que venha e coma …!”

Jesus associa o pão com seu corpo e o vinho com seu sangue. Não fala aqui do sofrimento e da libertação do povo no Egito, mas anuncia mais uma vez (cf. 8,31; 9,31; 10,33s), e desta vez com um gesto profético (simbólico, misterioso, sacramental), a sua própria morte que beneficiará os discípulos (1Cor e Lc: “por vós”), mais ainda: “em favor de muitos (ou: por muitos)” (Mc e Mt, cf. Is 53,12; Mc 10,45. Obs.: as palavras da missa “por vós e por todos” se inspiram em Jo 6,51: “para vida do mundo” e outros trechos de Paulo e João). A morte de Jesus não é um acidente ad história, mas tem sentido: dará vida aos homens, como um alimento que se desfaz ao ser consumido; como o cordeiro pascal cujo sangue colocado nas portas salvou os israelitas da morte no Egito (cf. Ex 12).

Se a última ceia foi uma ceia pascal, porque não se fala aqui da carne do cordeiro que se comia como prato principal? Paulo escreveu: “Pois nossa páscoa, Cristo, foi imolada” (5,7). Na eucaristia cristã, o pão e o vinho como corpo e sangue de Cristo substituem como elementos (espécies) a carne do cordeiro da páscoa judaica. Jesus é “o Cordeiro que tira o pecado do mundo” (Jo 1,29). Pessoas pobres não tinham carne na mesa todos os dias, mas deixando fora a carne, foi possível celebrar a eucaristia de maneira mais simples e frequentes, semanal: todo “primeiro dia da semana” (At 20,7; cf. Jo 20,26) e depois até diariamente (já em 1Cor 11, Paulo separou a celebração eucarística da refeição comum para matar a fome).

O vinho tinto alude ao sangue. Assim Jesus anuncia indiretamente que sua morte será violenta (na cruz). Na ceia pascal, os judeus costumam passar um cálice comum (cf. 1Cor 10,16), por quatro ou cinco vezes. O cálice ao qual Jesus se refere é o cálice da paz (cf. Cl 1,20; Ef 2,13s). Aliança se faz para firmar a paz, e muitas vezes, a aliança é selada com uma refeição ou um sacrifício (cf. Gn 15; Ex 24,1-11). O “sangue da aliança” (cf. Zc 9,11) alude a Ex 24,8 (cf. 1ª leitura de hoje: Moisés asperge com essas palavras o povo, em seguida tem uma refeição com os notáveis do povo, Ex 24,11).

Comparando os quatro relatos da instituição da Eucaristia (1Cor 11,23-25; Mc 14,22-26; Mt 26,26-29; Lc 22,19-20) consta-se o seguinte: Nas palavras de Jesus sobre as espécies de pão e vinho, há semelhanças e diferenças. Mt e Mc tem uma versão, Lc e Paulo outra. Daí se fala de duas versões: a tradição da Palestina (Mt e Mc) e a tradição helenista (da cultura grega: 1Cor e Lc).

Qual das duas versões é a mais original? É difícil dizer. Paulo diz que “que eu o recebi do Senhor” (1Cor 11,23), isto é, não diretamente, mas através de uma tradição, que remonta ao Senhor. Talvez Mc (e Mt seguindo-o) transmita a palavra mais original sobre o pão, enquanto Paulo tenha a palavra mais autêntica sobre o cálice. As palavras de Paulo e Lc têm mais simetria: duas vezes “fazei isto em minha memória” (falta em Mc e Mt). É memória que atualiza o fato, é comemoração festiva (cf. Ex 12,14). O que Mc e Mt anotam sobre o cálice “derramado por vós”, Paulo e Lc já expressam sobre o pão “dado por vós”; “por vós” significa o valor redentor da morte de Jesus (cf. Is 53; Mt 26,28 acrescenta: “para remissão dos pecados”). Enquanto Mc e Mt lembram mais a antiga aliança do Sinai, “o sangue da aliança” (cf. Ex 24,8; Zc 9,11), Paulo e Lc lembram também a profecia de Jr 31,31, a “nova aliança”.

Em verdade vos digo, não beberei mais do fruto da videira, até o dia em que beberei o vinho novo no Reino de Deus”. Depois de terem cantado o hino, foram para o monte das Oliveiras (vv. 25-26).

Jesus conclui aqui com uma sentença profética sobre seu destino. Ele tem certeza: “Em verdade (lit. Amém) vos digo”. Esta ceia será a última! Só depois de uma pausa (sua morte) “até o dia” (da ressurreição) beberá vinho (símbolo da alegria) “de novo no Reino de Deus”. Assim relaciona a última ceia com a perspectiva escatológica, uma refeição de alegria na conclusão do tempo messiânico (Is 25,6; cf. 1Cor 11,26: “até que ele venha”).

Na ceia pascal canta-se o pequeno Hallel (os salmos 114-118) como final da celebração. Depois deste hino, “foram para o monte das Oliveiras” (não até Betânia). Não podia se deixar a cidade na noite pascal, mas o lado sul do monte das oliveiras ainda fazia parte da área urbana. Com isso, Mc prepara 14,32 (oração no jardim de Getsêmani).

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