30 de abril de 2018, segunda-feira: “Quem acolheu os meus mandamentos e os observa, esse me ama. Ora, quem me ama, será amado por meu Pai, e eu o amarei e me manifestarei a ele”

Leitura: At 14,5-18

Semelhante ao episódio anterior em Antioquia da Pisídia (13,14-52), Paulo e Barnabé começaram pregar na sinagoga em Icônio e conseguiram converter um bom número de judeus e pagãos, que começam a formar uma comunidade mista (não se deve supor que se formassem duas comunidades). Mas os judeus que recusam a fé cristã incitam os pagãos não-convertidos e influentes contra os “irmãos”, o que significa divisão e tensão dentro da cidade (Lc 12,51-53). A recusa de crer degenera logo em oposição violenta (cf. 19,9; 28,24 e 9,23; 13,45.50; 14,19; 17,5-8.13; 18,6.13). Paulo e Barnabé não recuam, mas continuam no seu lugar (as autoridades não os expulsam); o Senhor realiza por eles milagres e prodígios (Lc 7,22, não mencionados no episódio precedente).

(Naqueles dias, em Icônio:) Pagãos e judeus, tendo à frente seus chefes, estavam dispostos a ultrajar e apedrejar Paulo e Barnabé. Ao saberem disso, Paulo e Barnabé fugiram e foram para Listra e Derbe, cidades da Licaônia, e seus arredores. Aí começaram a anunciar o Evangelho (vv. 5-7).

A divisão na cidade permite à oposição aliar-se e tornar-se mais agressiva. “Pagãos e judeus”, com a participação de “chefes” judeus, se preparam para apedrejá-los (como a Estêvão? cf. 7,54-59). Mas não chegou a hora de martírio, pois resta ainda muito para evangelizar em outras cidades.

Em Listra, havia um homem paralítico das pernas, que era coxo de nascença e nunca fora capaz de andar. Ele escutava o discurso de Paulo. E este, fixando nele o olhar e notando que tinha fé para ser curado, disse em alta voz: “Levanta-te direito sobre os teus pés.” O homem deu um salto e começou a caminhar (vv. 8-10).

Na próxima cidade, Paulo cura um paralítico, “coxo de nascença”, como Pedro fez em Jerusalém (3,1-10). A cura por Paulo é descrita mais esquemática, mas não se esquece o fator essencial da fé (Lc 5,20; 7,50; 8,48; 17,19; 18,42): “Tinha fé para ser curado” (outra tradução: para ser salvo). A fé é a condição para o milagre (cf. Mt 8,10). Para o efeito que produz, o narrador sublinha que o coxo “nunca era capaz de andar” e que a cura é instantânea, com uma simples ordem de Paulo.

Vendo o que Paulo acabara de fazer, a multidão exclamou em dialeto licaônico: “Os deuses desceram entre nós em forma de gente!” Chamavam a Barnabé Júpiter e a Paulo Mercúrio, porque era Paulo quem falava. Os sacerdotes de Júpiter, cujo templo ficava defronte à cidade, levaram à porta touros ornados de grinaldas e queriam, com a multidão, oferecer sacrifícios (vv. 11-13).

A reação do povo indica um grau primitivo de religiosidade. Talvez alimentados com relatos de poetas assimilados sem crítica e com o culto a “Zeus” (o chefe dos deuses entre os gregos, o “Júpiter” entre o romanos) num santuário localizado fora das muralhas (lit. “Zeus fora das muralhas”). De acordo com o panteão helenista, Barnabé, mais distante e solene, tem de ser Zeus, e Paulo, o intérprete que fala, seria “Hermes” (Mercúrio entre os romanos), porta-voz dos deuses. O sacrifício era ato de reconhecimento e gratidão aos deuses pela visita e benefício.

O incidente pitoresco de Listra ilustra os primeiros encontros dos pregadores cristãos com a cultura pagã politeísta. É um caso particular de religiosidade ingênua de uma população que crê nas histórias ou lendas poéticas de deuses que se apresentam aos homens em figura humana; até se sentem valorizados por serem eles a receber uma dessas visitas. São dois os ingredientes pressupostos na situação: crença em muitos deuses (politeísmo), crença em suas incursões terrenas em figura humana. Podemos comparar esse episódio à visita dos três personagens celestes a Abraão e Sara (Gn 18-19) para definir oposições e matizes. A conquista do México pelo espanhol Hernán Cortés com sua tropa em 1519 foi facilitada pela crença dos índios aztecas que consideravam os brancos europeios como deuses conforme uma profecia indigena (pesquisas recentes, pórém, consideram esta versão um mito criado por Cortês para convencer Carlos V da legitimidade da sua conquista).

Ao saberem disso, os apóstolos Barnabé e Paulo rasgaram as vestes e foram para o meio da multidão, gritando: “Homens, o que estais fazendo? Nós também somos homens mortais como vós, e vos estamos anunciando que precisais deixar esses ídolos inúteis para vos converterdes ao Deus vivo, que fez o céu, a terra, o mar e tudo o que neles existe. Nas gerações passadas, Deus permitiu que todas as nações seguissem o próprio caminho. No entanto, ele não deixou de dar testemunho de si mesmo através de seus benefícios, mandando do céu chuvas e colheitas, dando alimento e alegrando vossos coraçðes”. E assim falando, com muito custo, conseguiram que a multidão desistisse de lhes oferecer um sacrifício (vv. 14-18).

Chamar os pregadores de “apóstolos” (vv. 4.14) não corresponde à terminologia normal de Lucas que reserva este título aos doze como testemunhas oculares da vida de Jesus (At 1,21s). A execão dos vv. 4.14 explica-se vendo em Paulo e Barnabé os “enviados” (grego: apóstoloi) da comunidade de Antioquia (13,1-4). “Rasgaram as vestes” em sinal de indignação (cf. Mc 14,63p), porque são apenas “homens mortais”.

Depois do discurso de Paulo aos judeus na sinagoga de Antioquia (13,16-40), o discurso em Listra pode ter sido um exemplo de pregação a pagãos sem contato com o judaísmo. Mas o autor dos Atos, Lucas, prefere reservar tal discurso para o areópago de Atenas (17,22-31). Aqui se contenta com o essencial para impedir o sacrifício e insinuar da passagem a necessidade e a linha de uma conversão. Aqui Paulo prega aos pagãos de uma pequena cidade rural (que falam no seu “dialeto”, v. 11) e  destaca a criação e atividades agrícolas (“colheita”), enquanto na cidade grande de Atenas falará aos filósofos gregos numa linguagem mais sofisticada referindo-se à arte e poesia grega.

Dado que no discurso em Listra falta a seção cristológica (não se menciona Jesus Cristo), temos de considerá-lo, como exemplo de pré-evangelização, ou seja, é uma pregação judaica, monoteísta, na qual tradicionalmente se opõe o Deus verdadeiro aos falsos deuses, o Deus vivo aos ídolos inertes, com apelo à conversão (cf. Rm 1,18-32 e resumos da pregação de Paulo aos gentios em 1Ts 1,9-10 e Gl 4,9; cf. At 15,19; 26,18.20). O “Deus vivo, que fez o céu, a terra, o mar”; o verdadeiro Deus revelou-se “vivo” criando o universo: formulação que se encontra nas confissões de fé do judaísmo (cf. Ex 20,11; Ne 9,6; Sl 146, At 4,24; 17,24; Ap 10,6; 14,7). O essencial é abandonar os muitos deuses e suas imagens (“ídolos inúteis”) para adorar o único Deus vivo e benéfico (cf. o esquema de 1Ts 1,9-10; Hb 6,1). Esse Deus é o criador do universo (Sl 146,6); tem sido tolerante muito tempo para como os pagãos (Dt 32,8), mas “seus benefícios” cotidianos e ordinários (Sl 65; 104) testemunham a sua existência divina e benévola (cf. Rm 1,19-25).

 

Evangelho: Jo 14,21-26

No discurso da última ceia, Jesus promete três coisas aos discípulos que o amam e guardam seus mandamentos após sua partida: 1. Não os deixaria “órfãos”, mas enviaria outro defensor (paráklito), o “Espírito da verdade” (vv. 17-18); 2. Jesus se “manifestará” na aparição do ressuscitado (vv. 19-21: ver); 3. Deus (Pai e Filho) chegará e permanecerá neles (v. 23), como também o Espírito permanecerá para sempre (v. 16).

(Naquele tempo, disse Jesus a seus discípulos:) “Quem acolheu os meus mandamentos e os observa, esse me ama. Ora, quem me ama, será amado por meu Pai, e eu o amarei e me manifestarei a ele” (v. 21).

Os v. 21 e 23a repetem o que Jesus já disse antes no v. 15. Guardar seus mandamentos (o plural designa as palavras de Jesus, não apenas o mandamento do amor mútuo de 13,34; 15,12) é a maneira como os discípulos podem amar Jesus após sua partida. Como o próprio Deus, Jesus tem direito de ser amado e obedecido (cf. Dt 6,4-9; 7,11; 11,1). Explica o que precede em termos de amor mútuo; é como se a relação do Filho com o Pai se dilatasse para dar guarida aos fiéis. Do guardar seus mandamentos se seguirão três correlativos (numa visão trinitária): o amor do Pai, a presença do Pai e do Filho no fiel, e o Espírito (vv. 15-26).

Judas – não o Iscariotes – disse-lhe: “Senhor, como se explica que te manifestarás a nós e não ao mundo?” (v. 22).

Depois de Pedro, Tomé e Filipe (13,36s; 14,6.8), é Judas que interrompe o discurso com uma pergunta. Não é o Iscariotes que tinha saido (13,30s), sim Judas, o “irmão (ou filho) de Tiago”, de Lc 6,16 e At 1,13; na lista dos apóstolos deve ser o “Tadeu”, de Mt 10,3 e Mc 3,18. Podemos escutar essa pergunta em dois tons: como reprovação, pedindo que se manifeste a todos (cf. 7,3s), ou como recurso didático do narrador para aprofundar o ensinamento.

Na época do iluminismo, H.S. Reimarius (1694-1758) questionou, se Deus quisesse realmente ressuscitar Jesus, “por que não o faria à luz do dia, numa hora marcada, após um convite enviado com antecedência a todos os descrentes, e particularmente ao sinédrio e anciãos dos judeus?” Já o filósofo pagão do séc. II, Celso, argumentou assim (cf. ad Origenes, Contra Celsum II 63.67.70).

Jesus respondeu-lhe: “Se alguém me ama, guardará a minha palavra, e o meu Pai o amará, e nós viremos e faremos nele a nossa morada. Quem não me ama, não guarda a minha palavra. E a palavra que escutais não é minha, mas do Pai que me enviou (vv. 23-24).

À pergunta de Judas, Jesus responde insistindo no que acaba de dizer. O “mundo não verá mais” a Jesus (vv. 17.19), porque “não o ama, não guarda” sua “palavra” (cf. 8,37.43.47, p. ex. seu mandamento do amor em 13,34). Por isso não pode captar a manifestação que será a morte e ressurreição. É preciso amar para entender (cf. 20,8b), e não existe amor sem observância dos mandamentos (cf. 1Jo 5,3). Mas o amor é relação pessoal e mútua, a máxima entre homens. Como será essa relação com Jesus e com o Pai? Um orante suplicava: “Quando virás a mim?” (Sl 101,2). O Pai e o Filho respondem ao pedido de modo inesperado (cf. Ap 3,20). Agora a grande morada do Pai (v. 2) e a segunda vinda do Filho (a parusia no fim dos tempos) já se antecipam no próprio discípulo: “Nós viremos e faremos nele a nossa morada”. O discípulo quem ama torna-se o lugar da presença de Deus; como antes a “habitação” do templo, agora o próprio discípulo assume o papel que Jesus tinha no mundo (1,14; 2,21; cf. 1Cor 3,16s; 6,19; 2Cor 6,16; Ef 2,20-22).

Isso é o que vos disse enquanto estava convosco. Mas o Defensor, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, ele vos ensinará tudo e vos recordará tudo o que eu vos tenho dito” (vv. 25-26).

Enquanto Jesus estava com os discípulos, ele mesmo ensinava. Depois da sua partida, “o Defensor, o Espírito Santo” continua nesta função de “ensinar e recordar” as palavras de Jesus. Como o Pai enviou o Filho (cf. 3,17.34 etc.), agora enviará “outro defensor” (v. 16); o Espírito se chama aqui “Santo”, enviado do Pai em atenção a (“em nome de”) Jesus. Sua função de “ensinar” corresponde à sua condição de “Espírito da verdade” (v. 17; 15,26; 16,13; cf. Is 63,11; Sl 16,7; 51,12-14; Jr 31,34). É o agente da tradição recordando o passado de todo o ensinamento de Jesus, e fará progredir na sua compreensão. As palavras de Jesus são a base, pois eram palavras de Deus, agora o Espírito ajudará lembrar e compreendê-las. O autor do evangelho mantém a ficção como se Jesus falasse isso ao pé da letra na última ceia (cf. v. 25; 13,33), mas sabe que esse discurso de despedida – como o evangelho todo (2,17.22; 12,16) – se deve à atuação e atualização do Espírito (reflexão, redação).

A Bíblia de Jerusalém (p. 2024) comenta: Depois da partida de Cristo, é o Espírito que o substitui junto dos fiéis (14,16.17; 16,7; cf. 1,33). Ele é o “defensor“ (em grego paráclito), advogado que intercede junto do Pai (cf. 1Jo 2,1), ou que pleita diante dos tribunais humanos (15,26.27; cf. Lc 12,11-12; Mt 10,19-20p; At 5,32); ele é o Espírito de verdade (8,32), que conduz à plenitude da verdade (16,13), fazendo compreender a personalidade misteriosa de Cristo: como Cristo cumpriu as Escrituras (5,39), qual o sentido de suas palavras (2,19), de seus atos, de seus “sinais” (14,16; 16,13; 1Jo 2,20s.27; Rm 8,16), tudo que os discípulos não haviam compreendido antes (2,22; 12,16; 13,7; 20,9). Assim, o Espírito dará testemunho de Cristo (15,26; 1Jo 5,6-7) e confundirá a incredulidade do mundo (16,8-11; cf. Lc 24,49; Rm 5,5).

O site da CNBB comenta: Segundo o Evangelho de hoje, o amor a Jesus Cristo se manifesta no acolhimento dos seus mandamentos e na observância dos mesmos. Com isso, percebemos que Jesus não quer a submissão do homem a ele, mas comunhão do homem com ele. Quando o homem acolhe os seus mandamentos, na verdade está descobrindo os valores que são o seu fundamento e assumindo esses valores como causa primeira da sua felicidade. Assim, a observância dos mandamentos não significa mera obediência, mas caminho para a construção da felicidade pessoal e comunitária, e este caminho é perfeito porque tem a sua origem no próprio Deus.

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