30 de Agosto de 2020, Domingo – 22º Domingo do Tempo Comum: Porque o Filho do Homem virá na glória do seu Pai, com os seus anjos, e então retribuirá a cada um de acordo com a sua conduta (v. 27).

22º Domingo do Tempo Comum  

1ª Leitura: Jr 20,7-9

A 1ª leitura foi escolhida em vista do evangelho de hoje que fala da perseguição e do sofrimento do messias (Cristo) e de seus seguidores (cristãos).

O Antigo Testamento não só promete bênçãos e bem estar aos homens de Deus (por ex. Abraão, Sl 1 etc.), mas tematiza também o sofrimento do justo por seu comportamento irrepreensível que incomoda os ímpios (cf. Jó; Sb 2; José no Egito em Gn 37-50 e Daniel em Dn 1-6), e também a perseguição dos profetas por causa da sua mensagem que denuncia os reis e demais responsáveis do povo (por ex. Elias em 1Rs 19; Amos em Am 7; cf. Is 1; Ez 34 etc.). O sofrimento mais persistente parece ter atingido ao profeta Jeremias (poderia ter servido de modelo para certos traços do servo sofredor de Javé no cânticos por Deutero-Isaías no exílio da Babilônia, cf. Is 42,1-4; 49,1-7; 50,4-11 e 52,13-53,12).

Este texto da leitura faz parte da quinta e última das chamadas Confissões de Jeremias (11,18-12,6; 15,10.15-21; 17,14-18; 18,18-23; 20,7-18). No estilo de Salmos de lamentação (cf. Sl 13; 22; 31; 73; 88 …), as confissões expressam o diálogo do profeta com Deus: ele não consegue abandonar a Palavra que fascina, mas também faz tremer, ou seja, o preço de ser mensageiro de Deus é rejeição e sofrimento.

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 748) comenta: Os vv. 7-18 representam os últimos elementos das “Confissões” (cf. 17,12). Aproximam-se mais de 15,10-21 (cf. v. 14), contendo, entretanto nos vv. 7-9 um testemunho original sobre o drama do ministério profético (cf. 11,18). Com grande liberdade, o profeta sofredor se queixa ao Senhor, dizendo-lhe em poucas palavras: Tu me possuíste, e agora fico em maus lençóis (vv. 7-8): resistir porem não é mais possível, pois a tua Palavra se tornou em mim uma força explosiva (v. 9; cf. 5,14; 23 29; Am 3,8).

Seduziste-me, Senhor, e deixei-me seduzir; foste mais forte, tiveste mais poder. Tornei-me alvo de irrisão o dia inteiro, todos zombam de mim. Todas as vezes que falo, levanto a voz, clamando contra a maldade e invocando calamidades; a palavra do Senhor tornou-se para mim fonte de vergonha e de chacota o dia inteiro. Disse comigo: “Não quero mais lembrar-me disso nem falar mais em nome dele.” Senti, então, dentro de mim um fogo ardente a penetrar-me o corpo todo: desfaleci, sem forças para suportar (vv. 7-9).

É uma estranha oração na foram de uma denúncia ou acusação do profeta a seu próprio Deus.

A Bíblia do Peregrino (p. 1899) comenta: Um profeta fala assim com seu senhor? … Só cabe oferecer uma sugestão plausível. Suponhamos que Jeremias tenha pronunciado estas palavras quando, entregue à vingança dos inimigos, se atolava no lado da cisterna, correndo o perigo de morte antecipada (38,1-13). Seus rivais o dominaram, o Senhor o abandonou, sua missão foi um fracasso, sua vocação um engano ou sedução; era melhor não ter nascido (vv. 14-18) …

À luz da legislação de Dt 22,23-29, a acusação é formulada em termos de sedução a abandono. Como o Senhor tivesse atraído com amores o profeta (no papal feminino) até seduzi-lo (verbo pth conforme Ex 22,15). Recorda-se que o Senhor tinha proibido o profeta de casar. Jeremias, seduzido por bela promessas, agora encontra-se abandonado e feito zombaria do povo; seus rivais se assanham e pretendem aproveitar-se dele.

O grito de Jeremias contra a maldade e calamidades (lit. “Violência, opressão/destruição!”) significa a violência ao seu redor, mas equivale também o grito de socorro da moça ameaçada (Dt 22,24.27).

A Bíblia de Jerusalém (p. 1514s) comenta: Estas imagens de sedução e de luta marcam o poder de Javé sobre o profeta, o qual parece aqui revoltar-se contra um Deus que ele tem como responsável por sua desgraça. Expressão de desespero desse gênero é rara na Bíblia (cf. 1Rs 19,4; Jó 3,1s; Sl 88). Mas Jeremias conserva a certeza de que Javé é o Deus da graça e do íntimo de sua angústia, lança um grito de esperança (vv. 11-13).

Jesus também luta contra a vontade de Deus no horto das oliveiras (Mt 26,36-46p; cf. Jacó em Gn 32,25-31) e entende seu sofrimento na linha do profetas perseguidos (Mt 22,33-46; cf. 5,10-12; 23,30-35).

Para conhecer melhor a situação difícil deste profeta, precisa conhecer sua vida:

Jeremias nasceu por volta de 650 a.C. numa família sacerdotal em Anatot (vizinhança de Jerusalém). O jovem tentou em vão esquivar-se do domínio da Palavra que sempre triunfa (1,4-10; cf. Jn 1). De alma tenra, feita para amar, foi enviado para “amarrar e destruir, exterminar e demolir” (1,10) e predizer, sobretudo a desgraça (20,8): a destruição de Jerusalém, capital de Judá (reino do Sul) devido ao mau comportamento dos seus dirigentes (5,1-6 etc.). Essa mensagem o colocou “a margem” da sociedade, na solidão de não ter família (celibato do profeta em Jr 16), sempre lutando contra perseguições por parte da própria família (11,21; 21,6), dos sacerdotes, dos falsos profetas (23,9-32; 27-28), dos reis (com exceção de Josias que realizou uma reforma religiosa quando foi redescoberto no templo o livro de Deuteronômio, cf. 2Rs 22-23) e do povo todo. Foi hostilizado e acabou sendo preso (37,11-39,14), atolado no lodo de uma cisterna (38,1-13). Depois da destruição de Jerusalém em 587 a.C. pelo exército do rei Nabucodonosor que levou boa parte do povo para o exílio na Babilônia, Jeremias queria ficar na terra, mas foi arrastado por um grupo judeu para o Egito, onde se perdeu seu rastro. Seu secretário e discípulo Baruc guardou a memória de Jeremias, de sua vida e pregação (Jr 36,4; 45,1). Os livros de Baruc e Lamentações estão relacionados com o nome de Jeremias, mas são obras posteriores, testemunhando o reconhecimento que o profeta não tinha durante sua vida. Sua influência se estende a Ezequiel e a Deutero-Isaias que escreveu no exílio da Babilônia sobre um servo sofredor de Deus que salvou seu povo dos pecados (Is 53).

Poucos são os textos de consolação em Jeremias: a vinda do messias (23,5-6) e uma Nova Aliança (caps. 30-31) escrita no interior das pessoas (31,31-34). Com esta religião do coração, Jr está na mesma linha do livro de Dt (Dt 6,5: “Amarás a Deus de todo coração …”). Deus sonda os rins e os corações e retribuí cada um conforme seus atos. Por isso o profeta deixa a vingança para Deus (11,20; 20,12). Mas com coragem ele critica no templo um culto hipócrita sem os frutos da justiça (caps. 7 e 26), uma religião que ilude como ópio do povo (7,11: “toca de ladrões”, cf. Mc 11,17p). Como Jeremias, João Batista e Jesus (cf. Mt 16,14) também criticavam a corrupção dos governantes e dos sacerdotes do templo e pagaram o mesmo preço de sofrimento.

2ª Leitura: Rm 12,1-2

Na 2ª leitura começa hoje a segunda parte da carta aos Romanos: depois da parte doutrinal (caps. 1-11), a exortação da comunidade (caps. 12-16). A Bíblia do Peregrino (p. 2729) comenta os caps. 12-13: Exortação, não mandamento nem simples instrução. Paulo não propõe um código articulado de preceitos. Tampouco se entretém numa série de conselhos sapienciais, no estilo de Tb 4. Atreve-se propor seus conselhos como ajuda para encontrar a vontade de Deus. Dois pontos se destacam: a norma da fé e a primazia da caridade.

Pela misericórdia de Deus, eu vos exorto, irmãos, a vos oferecerdes em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus: Este é o vosso culto espiritual (v. 1).

A misericórdia de Deus, da qual se tratou no começo da epístola e especialmente nos caps. 9-11 (cf. Rm 11,32), provoca em resposta uma atitude de oferta de si que se deve manifestar na vida das comunidades cristãs (cf. Rm 6,19). “Oferecei os vossos corpos (lit.) em sacrifício (lit.: hóstia) vivo”. Não o corpo enquanto distinto da alma, mas o homem inteiro agindo em e por seu corpo, sede necessária da sua existência e da sua ação, da sua relação com Deus, com os homens, com o mundo. É por nosso corpo que nós somos membros do Cristo e templo do Espírito (1Cor 6,13-20). Devemos oferecer nosso corpo como hóstia (vítima) em sacrifício, isto é o sacerdócio comum a todos os leigos e ministros (cf. 1Pd 2,5.9).

O termo “culto espiritual” pode-se ainda traduzir, segundo a etimologia, culto lógico, razoável (Papa Bento XVI fala do culto da Palavra, logos, o verbo de Jo 1), isto é, conforme à natureza de Deus e do homem. Todavia, é preciso lembrar-se que o adjetivo é frequentemente empregado em contexto análogo, por autores judeus ou gregos, para marcar bem a diferença entre o culto formal/exterior (sacrifícios de animais no templo em Jerusalém ou nos templos pagãos) e o culto verdadeiro que engaja o homem inteiro (justiça, misericórdia). Este é o culto que os profetas pediam a Israel (Os 6,6; citado em Mt 9,13; 12,7).

A Bíblia de Jerusalém (p. 2139s) comenta: A comunidade cristã sucede ao Templo de Jerusalém (Sl 2,6; 40,9), e o Espirito que nela habita torna mais intensa a presença de Deus no meio do povo santo (1Cor 3,16-17; 2Cor 6,16; Ef 2,20-22). Ele inspira assim um novo culto espiritual (Rm 1,9; 12,1), pois os fiéis são os membros de Cristo (1Cor 6,15-20) que, em seu corpo crucificado e ressuscitado, tornou-se o lugar de uma presença nova de Deus e de um culto novo (Mt 12,6-7; 26,61p; 27,40p; Jo 2,19-22; 4,20-21; At 6,13-14; 7,48; Hb 10,4-10; Ap 21,22).

Não vos conformeis com o mundo, mas transformai-vos, renovando vossa maneira de pensar e de julgar, para que possais distinguir o que é da vontade de Deus, isto é, o que é bom, o que lhe agrada, o que é perfeito (v. 2).

Uma conduta cristã tem sentido cultual, valor de sacrifício que Deus aceita (cf. Eclo 35,1-3 e Jo 4,23 sobre o culto espiritual). Para conhecer e “distinguir o que é da vontade de Deus” não basta a lei, que é genérica, nem as interpretações de tipo casuístico; é preciso o discernimento entre coisas boas e melhores; e o discernimento correto exige mudança de mentalidade e distanciamento dos critérios do mundo (Tg 4,4). O cristão não deve se “conformar” com este mundo, mas “transformá-lo”.

A Nova Bíblia Pastoral (p. 1381) resume: Os capítulos finais se voltam para problemas práticos, naturalmente iluminados pelas reflexões teológicas desenvolvidas anteriormente. É a chamada parte exortativa, onde se espera comportamentos cristãos condizentes com a graça recebida de Deus. A resposta humana se caracteriza, inicialmente, pela oferta dos próprios corpos. Essa oferta de si é o sacrifício que agrada a Deus e transforma a vida das comunidades. Pela renovação completa pelo modo de pensar, a pessoa assim renovada já não se conforma com a realidade do mundo presente, mas vive o século futuro, manifestado a partir da vinda de Jesus (Fl 1,10).

 

Evangelho: Mt 16,21-27

Mt segue fielmente o roteiro do evangelista mais antigo, Mc, onde havia três anúncios da paixão, cada um seguido por uma falta de compreensão por parte dos discípulos; e depois Jesus tira as consequências para seus discípulos (Mc 8,32-38; 9,32-41; 10,35-45; cf. Lc 9,23 “para todos”). Também em Mt, depois de elogiar a profissão da fé de Pedro (vv. 13-20; evangelho do domingo passado), Jesus censura a falta de compreensão de Pedro a respeito do anúncio da paixão (vv. 17-23), e fala depois a seus discípulos sobre o seguimento (vv. 24-27).

(Naquele tempo:) Jesus começou a mostrar aos seus discípulos que devia ir à Jerusalém e sofrer muito da parte dos anciãos, dos sumos sacerdotes e dos mestres da Lei, e que devia ser morto e ressuscitar no terceiro dia (v. 21).

Depois da profissão da fé de Pedro, Jesus fala sobre o modo pelo qual deve cumprir sua missão de messias e anuncia sua paixão (vv. 21p; 17,12.22p; 20,17-19p; 26,2). Mt destaca a necessidade (“devia”) de ir à Jerusalém para sofrer lá (cf. Lc 24,26.44). Mt omite aqui o termo “Filho do Homem” (Mc 8,31); Jesus aqui é só o Filho obediente que cumprirá a profecia de Is 53 sobre o “Servo de Javé”, que devia morrer para salvar seu povo dos pecados (cf. o acréscimo de Mt em 26,28p). O quarto canto do Servo de Javé é o ápice de Deutero-Isaias e um texto profético sobre o sofrimento do messias/profeta (cf. Is 42,1; 61,1) e era usado muito no anúncio dos primeiros cristãos (citado em Mt 8,17; Lc 22,37; At 8,30-35; 1Pd 2,21-25; cf. Mt 26,28.63; 27,29-31.38s.60; Jo 1,29; 19,5 etc.) para identificar a paixão de Cristo (cf. Sl 22).

“Os anciãos, os sumos sacerdotes e os mestres da Lei” são os três grupos do Grande Sinédrio, colégio de 71 membros, que governava o povo judeu. Ele constava dos representantes da aristocracia leiga (os anciãos), das grandes famílias sacerdotais (os sumos sacerdotes, entre os quais se elegia o Sumo Sacerdote) e dos escribas ou doutores/intérpretes da lei (na maioria com tendência farisaica). O Sinédrio era presidido pelo Sumo Sacerdote em exercício, Caifás, em 18-36 d.C.. Aqui o evangelho não diz de que maneira Jesus “será morto”, mas num versículo próximo deixa claro que será na “cruz” (v. 24).

Mt e Lc trocam o “ressuscitar três dias depois” de Mc 8,31 pelo “ressuscitar no terceiro dia”, contando sexta-feira, sábado e domingo (o tríduo pascal da liturgia começa na quinta-feira santa e termina no domingo da Páscoa). O terceiro dia é tradicionalmente o dia da salvação (Os 6,2; Jn 2,1; Mt 12,40; cf. Ex 19,16).

Então Pedro tomou Jesus à parte e começou a repreendê-lo, dizendo: “Deus não permita tal coisa, Senhor! Que isto nunca te aconteça!” Jesus, porém, voltou-se para Pedro, e disse: “Vai para longe, Satanás! Tu és para mim uma pedra de tropeço, porque não pensas as coisas de Deus, mas sim as coisas dos homens!” (vv. 22-23).

Enquanto Lc simplesmente cortou esta incompreensão de Pedro e as palavras duras de Jesus em Mc 8,32s, Mt as transmite fielmente, mas as relativiza e atenua, já antes pelo elogio de Pedro e seu papel de pedra fundamental da Igreja em vv. 17-19.

A reação de Pedro (cf. 2Sm 20,20; 23,17; 1Cr 11,19) ilustra bem a dificuldade de associar o título de Cristo às perspectivas da paixão e da morte. Opondo-se ao padecimento de Jesus, Pedro endossa o papel de “Satanás” (cf. Jó 1-2) que tenta desviar Jesus da obediência a Deus (4,1-11p). Ele abandona a sua posição de discípulo que deve seguir “atrás” de Jesus (v. 24; cf. 4,20.22; 8,19-22; 19,21.27-29). A reação de Jesus é duríssima, chama o primeiro papa de “Satanás” (cf. após da última tentação no deserto em 4,10).

Mt salienta que desta maneira Pedro se torna uma “pedra de tropeço” (lit. escândalo, cf. Is 8,14; ou seja, um motivo de pecado) em vez de uma “pedra fundamental” da Igreja; desta maneira não é mais movido pelo Pai do céu (v. 17), mas por seus instintos humanos (a amizade por Jesus e o medo de seguir). Esta ambivalência de Pedro se repetirá na sua tríplice negação em 26,33-35.69-75.

Na história da Igreja, os sucessores de Pedro, os 266 papas (incluindo Francisco), se mostraram ambíguos também. Nem todo papa foi santo, uns escandalizaram por sua vida mundana (p. ex. Alexandro VI que traçou a divisa entre os territórios português e espanhol nas Américas no tratado de Tordesilhas, ele viveu com concubina e filhos no Vaticano). Na polêmica depois da sua excomunhão, Lutero chamou o papa Leão de “besta-fera” (cf. Ap 13), palavrão que uns protestantes repetem até hoje. Devemos levar em conta que já Pedro foi chamado assim, no entanto, e se arrependeu e recebeu de Jesus o mandato de papa (primeiro dos apóstolos) novamente (cf. Jo 21). Na Igreja, somos todos justos e pecadores, também os papas (na maioria foram pessoas santas).

Porque é tão difícil compreender o sofrimento do messias? Os judeus (e Pedro) esperavam um messias nacionalista e guerreiro, igual o seu antepassado, o rei Davi; apesar de umas profecias já terem vislumbrado o sofrimento do messias. Para os muçulmanos (religião monoteísta fundada por Maomé cerca de 600 d.C. na Arábia) é impensável que uma pessoa eleita e amada por Deus sofra. Deus é bom e justo, premia os bons e castiga os maus, portanto um homem de Deus tem que se dar bem, o ímpio é que vai sofrer por causa do pecado dele. Esta teologia da retribuição encontra-se desde cedo no Antigo Testamento (Sl 1; Lv 26; Dt 28 etc.), mas deixou dúvidas, quando um justo sofre e morre prematuramente (cf. Jó; Sl 49; 73; Ecl). Só alargando para outra vida, se resolve o problema, sobretudo em Sb. Os muçulmanos aceitam Jesus como profeta (não como Filho de Deus), mas acham que não sofreu: “um outro, semelhante a ele, foi crucificado … Jesus, porém, foi levado ao céu” (segundo o livro sagrado do Islã, o Alcorão). O apóstolo Paulo confessa em 1Cor 1,22, que pregar um messias crucificado é para os judeus um escândalo (uma maldição, cf. Gl 5,11; Dt 21,22s) e para os pagãos, uma loucura (uma caricatura do século II mostra um burro crucificado com a legenda zombando de um cristão adorando seu Deus). Para os gregos, um deus sofredor parece absurdo: na sua mitologia, o pai dos deuses, Zeus, só visita a terra para se divertir e engravidar umas mulheres; na filosofia grega, deus é algo eterno, sempre é o mesmo, não muda, então não pode sofrer.

O que seria de nós, se Jesus não tivesse assumido a cruz? Estaríamos abandonados na miséria, com um deus acima do muro (das nuvens) que não se importa. Um deus indiferente, que não faz diferença para nós. Mas Deus não é um criador frio, só poder e inteligência suprema, ele se revela como amor sensível ao sofrimento dos pequenos (cf. Ex 3,7-9; Is 66,1-2; etc.). O amor solidário (opção) de Deus pelo povo sofredor chega ao máximo na encarnação, quando Ele se coloca ao lado dos pobres e humildes, assumindo a nossa condição humana inclusive injustiça, dor e morte (cf. Fl 2,5-11). Passando por tudo isso nos mostra que não nos deixa sozinhos nesta miséria, mas nesta passagem (páscoa) abre-nos o caminho para vida eterna com Ele.  É o que o evangelho apresenta no próximo capítulo da transfiguração (uma antecipação da ressurreição; cf. Mt 17,1-9: evangelho do dia 06 de agosto e do 2º Domingo da Quaresma)

Jesus disse aos discípulos: “Se alguém quer me seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e me siga (v. 24).

Em Mt, diferente de Mc 8,34, Jesus não se dirige “à multidão”, mas “aos discípulos”. Pedro entendeu quem era Jesus, mas não estava disposto de viver este entendimento. Só entenderá Jesus, quem o “seguir” no caminho e não foge do sofrimento. Não adianta só dizer “Senhor, Senhor” (7,21); entender e trazer fruto pertencem juntos (13,23). Aqui Jesus deixa claro, que o destino do seu caminho é a “cruz” (em v. 21 só falou de rejeição e morte). No direito romano, a condenação à morte de cruz era reservada a criminosos e subversivos. Quem quer seguir Jesus, esteja disposto a se tornar marginalizado por uma sociedade injusta e violenta (“perder a vida”) e mais, a sofrer o mesmo destino de Jesus: morrer como subversivo (“tomar a cruz”), considerado amaldiçoado por Deus (cf. Dt 21,22s; Gl 3,13).

Ao falar de “renunciar a si mesmo”, Mt e já Mc não pensam num ideal de ascese ou num masoquismo que se opõe à ideia de que felicidade é ser livre do sofrimento. Renunciar é seguir Jesus e orientar-se nele em vez dos próprios interesses, ao ponto de custar a vida no martírio. “Renunciar” quer “dizer não, negar” e está ligado à profissão da fé (no batismo). Negar Jesus (como fez Pedro em Mc 14,66-72p) ou renunciar “a si mesmo”; isto não significa suicídio, porque neste a própria vontade ainda se sobrepõe à vontade de Deus (cf. v. 23).

Pois quem quiser salvar a sua vida vai perdê-la; e quem perder a sua vida por causa de mim, vai encontrá-la (v. 25).

Disso, Jesus já falou no final do discurso sobre a missão dos discípulos em Mt 10,38s. 

De fato, que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro mas perder a sua vida? O que poderá alguém dar em troca de sua vida? (v. 26).

Atrás disso está a experiência de que se pode ganhar o mundo, mas perder a si mesmo. Pode se ganhar rios de dinheiro, mas morrer de repente (cf. a parábola em Lc 12,16-21 e Eclo 11,18s; Jó 2,4; Sl 49,8s). Em Mt, renunciar a si mesmo está ligado a não cobiçar riquezas (cf. 5,3; 6,19-34; 13,44; 19,21). Quem vive buscando bens e riquezas, nunca ficará satisfeito. Quem se doa aos outros, esquece de si mesmo e sente uma grande felicidade. A cruz, então, não é só um sacrifício. É o único modo para não perder a própria vida, não dissipá-la em coisas superficiais que não conduzem à felicidade.

Mas diferente da sabedoria grega, o bem maior não é a vida na terra (em grego: zoé), e sim a vida transcendente (Mt usa a palavra grega psyqué) que depende do juízo final. Só o “Filho do Homem” (v. 27) pode conceder ou negar esta vida definitiva. No final do caminho da cruz, o próprio Jesus como juiz do mundo receberá seu discípulo (cf. 10,23; 13,41; 16,27; 24,30.37.39.44; 25,31; 26,64).

Porque o Filho do Homem virá na glória do seu Pai, com os seus anjos, e então retribuirá a cada um de acordo com a sua conduta (v. 27).

O Filho do Homem virá no final dos tempos (cf. Dn 7,13s) “com seus anjos” (cf. 13,41; 24,30s). Mt fala do julgamento em linguagem bíblica (cf. Sl 62,12; Pr 24,12; Eclo 35,22). Aqui não assusta o julgamento com seu critério da “conduta” (não só a prática ativa das obras, cf. 25,31-46, mas seguir também passivamente no sofrimento), porque o futuro juiz do mundo é o mesmo que está agora com seus discípulos e estará com eles até o fim dos tempos (18,20; 28,20), e ele virá “na glória do seu Pai” que é também o “Pai nosso” que ouve as nossas orações (6,7-13).

O site da CNBB comenta: Seguir a Jesus Cristo significa renunciar a si mesmo e tomar a sua cruz. A vida toda de Jesus foi viver esta palavra que está no Evangelho de hoje, Jesus sempre renunciou a si mesmo, ele nunca viveu em função de si próprio, nunca buscava a sua realização ou a satisfação de interesses humanos. Ele sempre procurou viver para os seus irmãos e para suas irmãs, estava sempre pronto para servir e não veio para fazer a sua vontade, mas a vontade daquele que o enviou, de modo que a sua vida foi a constante busca da realização do Reino de Deus e o mistério da cruz foi a coroação de toda uma vida vivida não para si, mas para os outros e para Deus. Quem quer ser discípulo de Jesus deve viver segundo os seus ensinamentos e seguir este seu grande exemplo.

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