30 de dezembro de 2017 – Sábado, Natal

Leitura: 1 Jo 2,12-17

A carta de Jo identificou Jesus com a Vida eterna (1,1-2) e Deus com a Luz sem treva alguma (1,5), por isso os cristãos devem andar na luz (1,7; cf. 2,8-11). Na leitura de hoje, o mundo das trevas ou do pecado se apresenta com uma concreção simbólica em três figuras: o maligno (vv. 13s), o mundo (vv. 15-17) e o anticristo (vv. 18.22, leitura de amanhã). A vitória será sobre o maligno e sobre o mundo, que é o reino daquele.

Todo o sistema de valores falsos ou anti-valores (v. 16), que a sociedade partilha e impõe, se coagula numa potência que em linguagem mítica ou simbólica se chama “o mundo” (vv. 15-17). É rival e hostil ao Pai; é transitório. Essa potência é regida por um chefe, personificação ou pessoa, que se chama “o Maligno” (2,13s; 5,19), figura hostil e agressiva.

Eu vos escrevo, filhinhos: os vossos pecados foram perdoados por meio do seu nome. Eu vos escrevo, pais: vós conheceis aquele que é desde o princípio. Eu vos escrevo, jovens: vós vencestes o Maligno. Já vos escrevi, filhinhos: vós conheceis o Pai. Já vos escrevi, jovens: vós sois fortes, a Palavra de Deus permanece em vós, e vencestes o Maligno (vv. 12-14).

A expressão afetuosa do pastor que exorta com solicitude seus fiéis na fé, “filhinhos” (vv. 1.12.18.28 etc.), visa ao conjunto dos fiéis, sendo que “pais” e “jovens” designam duas categorias particulares. Pais e jovens (ou rapazes) podem designar idades diversas para englobar todos (cf. Ml 3,23s; Lc 1,17; At 2,17s).

O autor propõe uma série de cinco (!) enunciados simétricos: “Eu vos escrevo que… eu vos escrevo, porque…”; com isso, o autor quer assegurar e dar confiança a seus destinatários e/ou justificar o envio da carta. O primeiro “eu vos escrevo”, o terceiro e o quinto se referem à vitória sobre o pecado pelo perdão e sobre o maligno pela luta. O segundo e o quarto são duplamente correlativos: os pais que entendem de filhos reconhecem o Filho primordial (“conheceis aquele que é desde o princípio”); os jovens que sabem de pais (re)conhecem o “Pai” celeste. Esta frase dirigida aos pais e jovens pode ter ocorrido ao autor a partir de Jr 31,34 sobre o conhecimento universal na nova aliança: “ele me conhecerão todos, dos menores aos maiores”. Aqui na carta é o conhecimento de Cristo preexistente e do Pai (cf. Mt 11,27; Lc 10,22).

Para prevenir seus cristãos contra a heresia da ilusão gnóstica (salvação apenas pelo conhecimento), o autor afirma que são eles e não os hereges que possuem a vida. A fase de libertação inclui o perdão dos pecados (“por meio de seu nome”, i. é. graças à fé no nome de Jesus Cristo, Filho de Deus, cf. 3,23; 5,13; Jo 1,12; 3,18) e a vitória sobre o Maligno (cf. Sl 91,13; Jo 16,11; Mt 6,13 p).

O “Maligno”, o diabo, permanece o tentador (Gn 3,1-6; Jo 1,6; Mt 4,1p; 6,13) que induz os homens ao mal (1 Jo 3,8). Mas nós “conhecemos” o Filho (2,3) que permanece em nós (1,3.7), nos preserva do mal (3,6-9; 5,18; Jo 17,15) e nos faz vencedores do “mundo” (4,4; 5,4; Jo 16,33; Mt 6,13; cf. Jo 1,9; Tg 4,4; Gl 6,14).

Não ameis o mundo, nem o que há no mundo. Se alguém ama o mundo, não está nele o amor do Pai. Porque tudo o que há no mundo – as paixões da natureza, a concupiscência dos olhos e a ostentação da riqueza – não vem do Pai, mas do mundo. Ora, o mundo passa, e também a sua concupiscência; mas aquele que faz a vontade de Deus permanece para sempre (vv. 15-17).

O mundo que não se deve amar, não é o gênero humano que Deus ama (Jo 3,16), nem o meio onde vivemos (Jo 17,15), mas o conjunto de forças maléficas que se fecham para Deus e sua vontade. A rejeição do mundo não quer dizer que não se deve amar ninguém fora da comunidade, mas significa que não se deve conformar com este mundo (Rm 12,2). “Mundo” tem aqui o valor negativo, corrente no quarto evangelho (cf. Jo 12,31 etc., também Tg 4,4); segundo 5,19 “o mundo inteiro está sob o poder do maligno”. Opõe-se ao Pai.

A caracterização de “tudo o que há no mundo” não pretende ser uma síntese completa tripartida, mas uma seleção destacando a “concupiscência” (cobiça):

A “concupiscência da carne” designa os desejos desregrados (traduzido aqui “paixões da natureza”). A “carne” sem o espírito é fraca (cf. Mc 14,38p; Jo 1,14; 3,6; 6,63; Rm 1,3; 7,14-8,12 etc.). A “concupiscência dos olhos”, talvez com recordação da vista e desejo de Gn 3,8, é a necessidade de ter para si tudo que se vê. A “ostentação da riqueza”, ou seja, a confiança orgulhosa nos bens, não tem sentido (cf. Sl 49,19; Lc 12,13-21 etc.) porque o mundo passa (1Cor 7,31). Mas quem “faz a vontade de Deus” (cf. Jo 1,10; o Pai-nosso em Mt 6,10 p), vai permanecer.

 

Evangelho: Lc 2,36-40

Lc tem o bom costume de não só falar dos homens, mas também das mulheres (cf. os textos próprios sobre a viúva em Naim em 7,11-17; a pecadora e as seguidoras de Jesus em 7,36-8,3; Marta e Maria em 10,38-41; a cura da mulher encurvada em 13,10-17; a mulher que procura a moeda em 15,8-10; a viúva contra o juiz em 18,1-8; as mulheres de Jerusalém em 23,27-31 e outras no túmulo vazio em 24,10s; cf. At 1,14; 9,36-42; 12,12s; 16,14-18; 18,2s.18.26 etc.). Lc destaca o papel de Maria e Isabel na infância de Jesus (cap. 1-2) e parece ter informações privilegiadas de Maria (cf. 2,19.51).

Quarenta dias depois do seu nascimento, o menino Jesus foi levado ao templo de Jerusalém. A Igreja celebra esta data no dia 2 de fevereiro, 40 dias após o Natal. No templo, o velho Simeão teve uma revelação do Espírito Santo, tomou o menino nos braços e pronunciou um louvor e uma profecia (2,22-35). Segundo seu costume, Lc põe uma mulher ao lado do homem: a Simeão, se junta uma viúva, Ana.

Lc escreve para gregos e romanos que nem conhecem a Terra Santa; ele não polemiza contra os judeus, mas descreve com simpatia seus costumes. Simeão e Ana representam a boa acolhida por parte dos judeus piedosos. Em Mt, porém, a família sagrada é perseguida na Judeia e tem que fugir de Herodes (Mt 2). A diferença explica-se pelo fato de que Mt escreve para judeu-cristãos que sofrem ainda hostilidades por parte dos fariseus (cf. Mt 23).

Havia também uma profetisa, chamada Ana, filha de Fanuel, da tribo de Aser. Era de idade muito avançada; quando jovem, tinha sido casada e vivera sete anos com o marido. Depois ficara viúva, e agora já estava com oitenta e quatro anos. Não saía do Templo, dia e noite servindo a Deus com jejuns e orações (vv. 36-37).

Ana é de uma tribo setentrional (Aser). É viúva e anciã, como Judite (Jt 16,22-23), “profetisa” como Miriam (Ex 15,20), Débora (Jz 4-5) ou Hilda (2Rs 22,14). “Não o saia do templo” (v. 37, ideal de perfeito israelita, cf. Sl 23,6; 26,8; 27,4; 84,5.11), “dia e noite servindo a Deus com jejuns e orações” (cf. 18,7; At 20,31; 26,7). Lc gosta de mencionar a constância no serviço e na oração (cf. a viúva em 18,1-8) e a atribui aqui a Ana, contrariamente ao costume judaico que não admitia as mulheres à noite no recinto do templo (cf. sobre o direito da mulher ouvindo a Palavra no episódio de Marta e Maria em 10,38-41).

Ana chegou nesse momento e pôs-se a louvar a Deus e a falar do menino a todos os que esperavam a libertação de Jerusalém (v. 38).

Segundo Jl 3,2, nos últimos tempos, profetizarão homens e mulheres, jovens e anciãos (cf. At 2,17-18). Ana se une a Simeão e louvando a Deus dispõe-se a “falar do menino a todos que esperavam a libertação de Jerusalém” (v. 38). Esta libertação (lit. resgate, termo da lei dos primogênitos, cf. v. 23) do povo eleito (cf. 1,68; 24,21) interessava em primeiro lugar a capital Jerusalém (cf. Is 40,2; 52,9).

Depois de cumprirem tudo, conforme a Lei do Senhor, voltaram à Galileia, para Nazaré, sua cidade (v. 39).

Em Lc não há notícias nem sobre a visita dos magos nem sobre uma fuga ou uma estadia no Egito relatadas em Mt 2. Mt e Lc escrevem na mesma época (cerca de 80 d.C.), mas em lugares diferentes sem conhecer um ao outro. Ambos usam duas fontes: o evangelho de Mc (escrito em 70 d.C.) e uma fonte catequética que continha palavras de Jesus (bem-aventuranças, parábolas etc.; esta fonte, chamada Q, se perdeu na história e só pode ser reconstruída a partir de textos comuns em Mt e Lc). Mas fora das duas fontes, nas narrativas da infância e das aparições do ressuscitado, Mt e Lc concordam apenas em poucos pontos, porém essenciais: em Mt 1-2 e Lc 1-2, Jesus foi concebido do Espírito Santo, nasceu da virgem Maria em Belém no tempo de Herodes e foi criado em Nazaré; José é pai adotivo e descendente de Davi. Nos detalhes, porém, há muitas diferenças entre Mt e Lc.

Em Lc, Maria e José já moravam em Nazaré desde o início e só se deslocaram a Belém por causa do recenseamento. Depois do nascimento do menino em Belém e a apresentação no Templo de Jerusalém, voltam para casa em Nazaré (v. 39). Em Mt, a história é diferente: Desde o início, Maria e José já moravam em Belém numa “casa” onde Jesus nasceu (Mt 2,11), depois fogem para Egito (Mt 2,13s) e voltam para Israel só depois da morte de Herodes; e por causa do filho mais cruel de Herodes reinar em Jerusalém, a Sagrada Família não vai mais para sua casa em Belém (6 km de Jerusalém), mas migra para a Nazaré, povoado distante na Galileia (Mt 2,19-23).

Não é fácil conciliar os dois relatos. Ou Lc omitiu a fuga ao Egito (por qual motivo? Ou nem sabia dela?), ou Mt inventou-a. Lc parece ter informações de Maria (cf. 2,29.51) ou da família de Jesus. Porque ele não nos contaria deste encontro com os magos do Oriente e a estadia no Egito, só porque, para ele, a pregação aos estrangeiros começa só a partir de Pentecostes (cf. At 1,8; 2,1-11; cf. a omissão de Mc 6,45-8,26 no evangelho de Lc)?

A maioria dos exegetas modernos considera o relato da visita dos magos e da fuga ao Egito uma ideia teológica de Mt. “Ao contrário da anunciação, a adoração dos magos não toca em nenhum aspecto essencial da fé. Poderia ser uma criação de Mt, inspirada por uma ideia teológica; em tal caso, nada cairia por terra” (Daniélou, citado por Bento XVI, Infância de Jesus, p. 99).

Assim, Mt poderia seguido a uma tradição judaica de narrativas (hagadá, midrash) que inventavam ou ampliavam relatos sobre Moisés e outros personagens. O evangelista não quer dar um testemunho falso da história, mas revelar seu sentido espiritual: através desta introdução em forma de narração, Mt ajuda e motiva seus leitores judeu-cristãos a lerem e entenderem que Jesus não é só o Messias de Israel (cf. genealogia em Mt 1,1-17), mas também um novo Moisés sobrevivendo à matança dos recém-nascidos ordenada por um rei (Faraó, Herodes) e “saindo do Egito”, dando depois uma nova interpretação libertadora da “Lei” (no sermão) na “montanha” (Mt 5-7).

O evangelista Lc, porém, segue sua pesquisa histórica para convencer seus leitores greco-romanos. No seu prólogo, fala de “testemunhas oculares” e “acurada investigação de tudo desde o princípio” (1,1-4). Portanto, a narração de Lc que fala da volta da família sagrada a Nazaré, em vez de fugir ao Egito, é bem mais provável.

Mas a narração de Mt tem uma verdade profunda, não histórica, mas teológica: Mesmo que seu próprio povo (Jerusalém) o rejeite, Jesus é o messias legítimo (estrela, Belém) e salvador de todos, também para os pagãos que se aproximam para adorá-lo (cumprindo as antigas profecias e acontecendo na Igreja “católica” já na época de Mt). Em Mt, Jesus é o novo Moisés: o menino perseguido e salvo como Moisés no Egito tornar-se-á o futuro libertador, anunciará a nova lei no sermão da montanha (Mt 5-7; cf. Sinai) e se despedirá também num monte (Mt 28,16-28; cf. Dt 34).

O menino crescia e tornava-se forte, cheio de sabedoria; e a graça de Deus estava com ele (v. 40).

A breve notícia que conclui o evangelho de hoje é estritamente paralela à de 1,80 sobre João Batista (sem se retirar ao deserto) e será repetida em v. 52 (cf. o crescimento do menino Samuel em 1Sm 2,21.26; 3,19). No ambiente greco-romano que valoriza a filosofia (a palavra grega significa: amor à sabedoria; cf. At 17), Lc se detém na qualidade de “sabedoria” que inclui conhecimento, juízo, sensatez. Jesus não a recebe de uma vez (como poderia sugerir Is 11,2), mas por maturação lenta. Na sua pregação, Jesus adotará o estilo sapiencial com mais frequência que o profético (cf. parábolas). Lc quer frisar, que ela é um bem próprio de Jesus (v. 52; 11,31; 21,15). Sobre João estava a mão do Senhor (1,66), como sobre os profetas. Sobre Jesus está a “graça (favor)” por excelência (cf. 1,28).

O site da CNBB comenta: Toda pessoa que faz da sua vida um serviço a Deus vive a alegria do encontro com ele. Com Ana não foi diferente. Depois de oitenta e quatro anos vividos na busca da realização da vontade de Deus, ela tem a alegria do encontro pessoal com ele. Mas Ana não fica com essa alegria só para ela; sai anunciando a todos que aquele menino é a resposta do próprio Deus a todos os que esperam a verdadeira libertação. E este anúncio é acompanhado do reconhecimento do amor de Deus, que é fiel às suas promessas, através do louvor a ele.

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