30 de Dezembro de 2018, Domingo: Jesus respondeu: “Por que me procuráveis? Não sabeis que devo estar na casa de meu Pai?” (v. 49).

Domingo da Sagrada Família

1ª Leitura: Eclo 3,3-7.14-17a (grego 2-6.12-14)  (facultativo:  Gn 15,1-6; 21,1-3)

No domingo da Sagrada Família, a liturgia nos apresenta um texto que aprofunda o quarto mandamento “Honra teu pai e tua mãe, para que se prolonguem seus dias na terra que o Senhor teu Deus te dá” (Ex 20,12; cf. Dt 5,16; Ef 6,1-3). Já no Ex e Dt, este mandamento traz uma promessa (vida longa na terra). No texto de hoje, há mais promessas e recompensas ainda. O livro é chamado “Eclesiástico” por causa do seu uso oficial na “Eclesia” (Igreja ou Assembleia), principalmente na instrução dos neo-batizados.

O livro de Eclo faz parte dos sete livros deuterocanônicos, ou seja, não se encontra na Bíblia Hebraica e, portanto, não nas Bíblias protestantes. Foi escrito em hebraico por Jesus Ben Sirac, mestre de sabedoria e em 130 d.C. traduzido para o grego pelo seu neto no Egito (cf. introdução e 50,27; 51,30). O texto hebraico se perdeu e foi transmitida apenas sua versão grega, mas nos séculos passados, alguns fragmentos hebraicos foram recuperados (daí a diferença na numeração dos versículos).

No texto de hoje transparece o choque entre os jovens judeus influenciados pela nova cultura grega e seus pais/anciãos tradicionais.

A Bíblia do Peregrino (p. 1579) comenta o conjunto 3,1-16 (nossa liturgia selecionou apenas uns vv.): Depois da grande introdução, que define a atitude do discípulo em relação a Deus – tema relacionado com o primeiro mandamento -, o mestre passa a dissertar sobre o primeiro mandamento da “segunda tábua”, ou seja, deveres para com os pais. Comenta-o com reflexões sapienciais e com exortações de inspiração deuteronômica. O tratado compreende introdução, três estrofes de quatro versículos e conclusão.

Na Vida Pastoral (2015), Maria de Lourdes Corrêa Lima comenta: O texto é dirigido a pessoas adultas, que devem observar a Lei. Trata do cuidado para com os pais, especialmente os idosos. O amor e o dever de cuidar não cessam quando o filho se torna emancipado da família de origem, mas permanece o dever de gratidão. A principal atitude inculcada no texto é a de “honrar” os pais. Um dos dez mandamentos (cf. Ex 20,12; Dt 5,16) é aqui concretizado e explicitado, evocando a ternura que deve reinar na família.

Deus honra o pai nos filhos e confirma, sobre eles, a autoridade da mãe. Quem honra o seu pai, alcança o perdão dos pecados; evita cometê-los e será ouvido na oração quotidiana. Quem respeita a sua mãe é como alguém que ajunta tesouros. Quem honra o seu pai, terá alegria com seus próprios filhos; e, no dia em que orar, será atendido. Quem respeita o seu pai, terá vida longa, e quem obedece ao pai é o consolo da sua mãe (vv. 3-7).

A Bíblia do Peregrino (p. 1579) comenta: Os quatros versículos repetem o termo “honrar”. O termo hebraico abrange tanto o respeito à sua autoridade como o sustento em sua necessidade: ver Mt 15,4-6. A distinção “pai” e “mãe” tem função normal: todos os conselhos valem para ambos, pois a mãe está situada no mesmo nível. O último versículo, conforme costume do autor, vincula o preceito ao respeito devido a Deus. No v. 6 começa o texto hebraico conservado: cf. Ex 20,12.

Como em Ex 20,12 (cf. aqui v. 7: “vida longa”), há recompensas no plano humano: quem honra os pais terá alegria com os próprios filhos (v. 6). Há recompensa também no plano religioso: o amor aos pais perdoa os próprios pecados (vv. 3/4.14-15) e quem os honra será atendido quando rezar (vv. 5.15). Na Vida Pastoral (2015), Maria de Lourdes Corrêa Lima comenta: A relação com os pais toca em Deus: quem os honra, os venera, honra a Deus. Por quê? Os filhos são dados por Deus e por isso devem agradecer a vida a Deus, honrando, respeitando, amando seus pais.

No v. 8b (omitido em nossa liturgia) se diz: “Ele servirá a seus pais como ao seu Senhor”; a versão grega traz: “como a seus senhores” (superiores). Obedecer e honrar aos pais resulta em benção (cf. vv. 9-11), enquanto a desobediência leva à maldição (cf. v. 18).

Meu filho, ampara o teu pai na velhice e não lhe causes desgosto enquanto ele vive. Mesmo que ele esteja perdendo a lucidez, procura ser compreensivo para com ele; não o humilhes, em nenhum dos dias de sua vida, a caridade feita a teu pai não será esquecida, mas servirá para reparar os teus pecados e, na justiça, será para tua edificação (vv. 14-17a).

O quarto mandamento não se deve restringir à obediência que os menores devem aos pais, mas inclui a “caridade” (lit. esmola) aos idosos, não lhes causar desgosto (abandoná-los), mas ser misericordioso (compreensivo) com eles.

A Bíblia do Peregrino (p. 1579) comenta: A conduta inculcada deve durar a vida toda, também quando o pai for ancião, e o filho maduro (Pr 23,22). Inclui como antes o aspecto genérico de ajuda, “não o abandones”, e o de honra, “não o envergonhes” (Pr 30,17). Parece antecipar-se a uma objeção ou pergunta: o que fazer quando o pai se desonra com a senilidade? Dois versículos introduzem o tema da esmola: não feita ao pai, mas feita por ele. Quando o pai é ancião e incapaz de ajudar, a esmola que fez permanece como um capital de ajuda e proteção, mais ainda que os tesouros. “Pagar” e “pecados” fazem eco ao v. 3.

Na Vida Pastoral (2015), Maria de Lourdes Corrêa Lima comenta: Atualmente, a idade avançada, mais frequente que no passado, traz consigo também o desafio do amor gratuito, quando os pais não podem mais, humanamente, oferecer uma recompensa. É então o momento de os filhos, não sem sacrifícios, oferecerem o conforto de sua presença, o consolo de seu sincero amor filial e a disposição de propiciar-lhes um envelhecimento digno e minorar seus sofrimentos. Tal tarefa é exigente, e só se consegue levá-la adiante com êxito se vivida com o amor que vem de Deus.

2ª Leitura: Cl 3,12-21

A leitura desta carta apostólica traz exortações à comunidade cristã e uma orientação para os relacionamentos familiares.

Pelo que diz a carta, a comunidade de Colossas (200 km a leste de Éfeso na Ásia menor, hoje Turquia) não foi fundada nem visitada por Paulo (cf. 1,4.9; 2,1), mas a “Palavra da Verdade, o Evangelho” chegou lá através de Epafras, um discípulo de Paulo (1,7; 4,12; cf. Fm 23). Uns peritos biblistas atribuem a autoria da carta ao apóstolo Paulo, colocando-a entre as cartas do cativeiro que são Fl, Fm, Ef, escritas na prisão em Éfeso (56-57) ou em Roma (60-64). Outros afirmam que duas cartas Cl e Ef (Ef depende de Cl) seriam “deuteropaulinas”, ou seja, teriam sido escritas mais tarde, na segunda geração cristã por discípulos de Paulo, por volta de 80 a 90 d.C. Este costume de época chama-se “pseudepigrafia”, ou seja, discípulos escrevendo em nome do seu mestre (já em Isaias vemos três etapas/autores diferentes: caps. 1-39; 40-55; 56-66), não para falsificar, mas para homenagear e dar continuidade espiritual. Além do estilo e vocabulário diferente de Paulo, esta opinião baseia-se também em outras observações, por exemplo: a descrição de uma igreja mais universal e estruturada em que o Evangelho produz fruto já “no mundo inteiro” (1,6) indica um período posterior ao pioneiro Paulo. Portanto, a carta aos Colossenses poderia ser escrita pelo próprio Epafras (ou alguém do seu grupo) para demonstrar a “autenticidade” (cf. 1,7) da doutrina apostólica, com a qual se pretende refutar em seguida doutrinas alheias que estavam ameaçando a fé da comunidade.

Também hoje a fé e a família estão ameaçadas por diversas doutrinas e costumes contrários aos ensinamentos cristãs.

Na leitura de hoje, o autor da carta apresenta primeiro a parte positiva da conduta cristã (cf. a parte negativa do “homem velho”, ou seja, a conduta do pagão, em vv. 5-11; o homem novo é aquele que renasceu no batismo). É um programa pouco articulado, mas toca pontos essenciais (cf. Ef 4,1-2.32) para a convivência em comunidade. Depois, nos vv. 18-21 concentra-se nas relações das pessoas em casa (família).

Vós sois amados por Deus, sois os seus santos eleitos. Por isso, revesti-vos de sincera misericórdia, bondade, humildade, mansidão e paciência, suportando-vos uns aos outros e perdoando-vos mutuamente, se um tiver queixa contra o outro. Como o Senhor vos perdoou, assim perdoai vós também. Mas, sobretudo, amai-vos uns aos outros, pois o amor é o vínculo da perfeição (vv. 12-14).

O autor aplica títulos do povo escolhido no AT (Is 43,20s; Ex 19,5s), retomados por 1Pd 2,9. Os sentimentos do povo de Deus devem corresponder aos do Senhor (cf. Ex 34,6s; Fl 2,1-5). Pode-se referir a condição depois do batismo (filhos amados, santos eleitos), por isso, depois do banho, precisa vestir-se com virtudes.

Nesta carta destaca-se a reciprocidade (“mutuamente”, “um ao outro”; cf. em seguida os preceitos particulares de moral doméstico e trabalhista em 3,18-4,1). O perdão mútuo inspira-se no modelo de Cristo, um eco do pai-nosso (Mt 6,12-15; 18,21-35). “Acima de tudo, … o amor, que é o laço da perfeição” (v. 14); Compare-se o hino ao amor (caridade), que supera todos os carismas, em 1Cor 13 (cf. Rm 13,8-10; Mt 5,43-48).

Na Vida Pastoral (2015), Maria de Lourdes Corrêa Lima comenta: A primeira parte, exortativa, põe a ênfase no amor fraterno. O acento está na reciprocidade do amor e em suas manifestações concretas: bondade, compaixão, humildade, mansidão, longanimidade, um elenco de virtudes que exigem grande empenho pessoal (v. 12). Para tanto, porém, há forte motivação. O motivo último do amor não é jamais o próximo (o que ele é, o que fez ou não a mim etc.), mas a nova condição do cristão: Deus me santificou, me escolheu, me amou. Amo porque me sei amado, primeiro, e porque Cristo recriou meu ser. Posso, assim, viver a caridade que vem do Cristo, o amor paciente, humilde, que não guarda rancor, que “tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta” (cf. 1Cor 13,4-7).

Nessa história, o amor conhece os limites das pessoas e dos relacionamentos humanos. Por isso, faz parte do amor suportar-se mutuamente e perdoar. Também aqui o motivo é transcendente: perdoar como o Senhor perdoou (v. 13). E como ele o fez? Perdoou totalmente, sem exigir nada, a não ser a abertura e o acolhimento. Um perdão gratuito, sem limites, no qual não se contam quantas vezes se perdoou (setenta vezes sete!). O perdão expressa de modo particular o amor: é o amor que persiste dando, doando, per-doando. E, assim, o amor supera qualquer expectativa e constitui a união máxima entre seres por vezes tão diferentes. É ele que mantém a comunidade unida e a leva à perfeição (v. 14).

Que a paz de Cristo reine em vossos corações, à qual fostes chamados como membros de um só corpo. E sede agradecidos (v. 15).

O critério para superar litígios deve se construir ou restabelecer, a paz de Cristo (Fl 4,7; Ef 2,14; Jo 14,27); há de reinar sintonia e harmonia porque os cristãos são os membros do mesmo corpo, cf. o conceito paulino da Igreja como corpo de Cristo com diversos membros e dons/carismas (1Cor 12,12; Ef 2,16; 4,3-4).

Na Vida Pastoral (2015), Maria de Lourdes Corrêa Lima comenta: A paz, que é dom de Cristo, surge então como consequência dessa vivência recíproca do amor. Sendo Deus a fonte de todo amor, cabe ao cristão, que vive nesse amor, agradecer a Deus (v. 15).

Que a palavra de Cristo, com toda a sua riqueza, habite em vós. Ensinai e admoestai-vos uns aos outros com toda a sabedoria. Do fundo dos vossos corações, cantai a Deus salmos, hinos e cânticos espirituais, em ação de graças (v. 16).

“A palavra de Cristo”, outros manuscritos trazem “do Senhor” ou “de Deus”. O texto primitivo trazia talvez simplesmente: “A palavra” (cf. Fl 1,14; Mc 4,13-20). Parece referir-se às reuniões litúrgicas, com ensinamentos partilhados ao mesmo nível (cf. Jr 31,34; 1Jo 2,27) e cânticos inspirados pelo Espírito. Trata-se indubitavelmente de improvisações “carismáticas” sugeridas pelo Espírito durante as assembleias litúrgicas (Cf. 1Cor 12,7; 14,26; Ef 5,19s), hinos ou súplicas cristãs, compostos a imitações dos salmos; alguns deles passaram ao NT (cf. 1,15-20; Ef 1,3-14 etc.).

Na Vida Pastoral (2015), Maria de Lourdes Corrêa Lima comenta: A segunda parte da exortação frisa a importância de ter uma vida modelada pelo evangelho. A Palavra de Cristo, seu evangelho, deve habitar no cristão como num santuário (v. 16). Se é assim, na comunidade os membros se edificam mutuamente: pela instrução mútua; pela celebração em conjunto (salmos, hinos, cânticos), em ação de graças. Tudo isso transborda no falar e no agir, que têm sempre sua origem no Senhor e são feitos por causa dele (v. 16-17).

Tudo o que fizerdes, em palavras ou obras, seja feito em nome do Senhor Jesus Cristo. Por meio dele dai graças a Deus, o Pai (v. 17).

Da fé se passa à vida, da liturgia se passa ao resto da existência sob o signo de Jesus como Senhor e de Deus como Pai (1Cor 10,31).

Esposas, sede solícitas para com vossos maridos, como convém, no Senhor. Maridos, amai vossas esposas e não sejais grosseiros com elas. Filhos, obedecei em tudo aos vossos pais, pois isso é bom e correto no Senhor. Pais, não intimideis os vossos filhos, para que eles não desanimem (vv. 18-21).

Como em Ef 5,21-6,9 (cf. 1Pd 2,13-3,7), seguem-se os preceitos particulares de moral doméstico e trabalhista em 3,18-4,1 (nossa liturgia omitiu a relação dos senhores e escravos que se encontravam também em casa), na qual também se destaca a reciprocidade (“mutuamente”, “um ao outro”). O autor da carta não propôs uma revolução das estruturas sociais (por ex. insurreição dos escravos como fez Spartacus e que foi derrotada em 70 a.C.), mas uma mudança nos corações inspirada no mandamento do amor cristão: amar o próximo como a si mesmo, amar como Cristo nos amou.

Se por um lado aceita a desigualdade de grau, por outro insiste em deveres correlativos, entre marido e mulher, pai e filho, patrão e escravo. Tudo deve acontecer com sentido religioso: “como agrada ao Senhor, por respeito ao Senhor, servindo ao Senhor, um Senhor no céu”. Os conselhos práticos são culturalmente condicionados. Mas o fato de passar da doutrina à prática é um ensinamento ou exemplo permanente.

Na Vida Pastoral (2015), Maria de Lourdes Corrêa Lima comenta: Dessa maneira, se a mulher devia estar subordinada ao marido, isso se deveria dar “como convém no Senhor” e não segundo um modelo social qualquer. Não se explica o que “convém no Senhor”, como se fosse coisa já conhecida pela comunidade. Mas as exortações ao amor mútuo feitas imediatamente antes oferecem indicações nesse sentido. De forma paralela, também os maridos devem “amar suas esposas”, um modo de falar que não era tão comum na época – e, mais, com o amor cristão delineado nos v. 12-15. A mesma relação de amor recíproco deve permear o relacionamento entre pais e filhos (v. 20-21).

A Nova Bíblia Pastoral (p. 1443) comenta o conjunto de 3,18-4,1: A carta desce a aplicação concretas na vida prática para a família e para a sociedade. Cabe lembrar que o contexto é da família patriarcal e da sociedade escravista (Ef 5,21-32; Tt 2,1-10). Imaginar outra estrutura familiar e política, simplesmente, não era fácil para a época. Mas, ao interno dessas estruturas, a proposta de relações é bem diferenciada. A subversão na relações se dá primeiramente pelo senhorio de Jesus Cristo. Já não há senhores e escravos na sociedade, quando todos têm um só Senhor no céu. Outro elemento que subverte as relações é que se estabelece a reciprocidade total. Se alguma prioridade existe, é justamente em prol dos mais fracos. Daí porque, na ordem das recomendações, o texto privilegia as mulheres, os filhos e os escravos. Um terceiro elemento muito forte de subversão é o caso do escravo que se torna herdeiro (v. 24).

 

Evangelho: Lc 2,41-52

Neste domingo da Sagrada Família, nossa liturgia nos apresenta Jesus adolescente já em certo conflito com os pais.

A Bíblia do Peregrino (p. 2459) comenta: Cheio de sabedoria e graça, dá uma lição dolorosa a seus pais, contrastando duas paternidades. Dá também uma lição aos doutores da lei no templo de Jerusalém.

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 1974) comenta: O episódio dos vv. 41-52, sem paralelo na história de João Batista, parece destinado a apresentar antes da pregação do precursor as primeiras palavras de Jesus: logo que atinge a consciência de homem, ele sabe que é o Filho.

Os pais de Jesus iam todos os anos a Jerusalém, para a festa da Páscoa. Quando ele completou doze anos, subiram para a festa, como de costume (vv. 41-42).

Jesus não nasceu como cristão, mas era judeu. No oitavo dia foi circuncidado ainda em Belém, provavelmente na sinagoga (v. 21), para fazer parte do povo eleito (cf. Gn 17). Com doze anos completa a idade em que assume suas obrigações legais: a marca inicial da circuncisão desemboca na entrega da lei (na celebração do Bar Mitzwa na sinagoga, o adolescente recebe a lei de Moisés e faz sua primeira leitura). Esta submete agora com mais autoridade que o poder do seu pai na sua família.

Com isso, é obrigado de fazer a peregrinação a Jerusalém prescrita na lei três vezes ao ano (Ex 23,14-17; 34,22-23; Dt 16,1-8.16; Lc se inspira aqui, talvez em 1Sm 1,3.7.21; 2,19). É a segunda viagem explícita de Jesus a Jerusalém e ao templo, como uma visita ao Pai. Na primeira foi a apresentação do menino por seus pais no templo, 40 dias após o nascimento (2,22-40, cf. a festa de 02 de fevereiro).

Passados os dias da Páscoa, começaram a viagem de volta, mas o menino Jesus ficou em Jerusalém, sem que seus pais o notassem. Pensando que ele estivesse na caravana, caminharam um dia inteiro. Depois começaram a procurá-lo entre os parentes e conhecidos. Não o tendo encontrado, voltaram para Jerusalém à sua procura (vv. 43-45).

Na Vida Pastoral (2015), Maria de Lourdes Corrêa Lima comenta: Maria e José são solícitos com o menino. Mas a peregrinação era feita em grupos, normalmente de parentes, que poderiam ser numerosos. Daí a possibilidade de os pais suporem que Jesus estivesse com as outras crianças e adolescentes da família.

O menino Jesus ficou em Jerusalém, sem que seus pais o notassem”: É a primeira iniciativa independente e consciente de Jesus. Numa breve demonstração cortou laços.

Três dias depois, o encontraram no Templo. Estava sentado no meio dos mestres, escutando e fazendo perguntas. Todos os que ouviam o menino estavam maravilhados com sua inteligência e suas respostas (vv. 46-47).

Os doutores ou “mestres” da lei ensinavam nos átrios do Templo, como Jesus o fará mais tarde. O ensinamento deles tomava muitas vezes a forma de diálogo.

A Bíblia do Peregrino (p. 2459) comenta: “Sê íntimo dos sábios, partilha teus pensamentos com o prudente e teus segredos com os entendidos” (Eclo 9,14-15). É como uma antecipação das futuras discussões no templo (cap. 20).

Ao vê-lo, seus pais ficaram muito admirados e sua mãe lhe disse: “Meu filho, por que agiste assim conosco? Olha que teu pai e eu estávamos, angustiados, à tua procura” (v. 48).

Na Vida Pastoral (2015), Maria de Lourdes Corrêa Lima comenta: Por que Jesus ficou em Jerusalém? Não foi mero ato de independência de um adolescente. No entanto, trouxe preocupação a seus pais. É Maria quem o interroga (não José). Ela procura entender; ao mesmo tempo, sua pergunta tem um tom de dor, de angústia e exigência materna. Ela não esperava tal ato de Jesus: “Meu filho…” (v. 48). E não fala só de sua parte: há grande compreensão entre Maria e José, e os dois sofrem juntos: “por que fizeste assim conosco?” Ela reverencia José, mencionando-o primeiro: “teu pai e eu” (v. 48).

Toda angústia acumulada da mãe é descarregada nesta pergunta. A referência a “teu pai” contrasta com a resposta “meu Pai”.

Jesus respondeu: “Por que me procuráveis? Não sabeis que devo estar na casa de meu Pai?” (v. 49).

É a primeira palavra de Jesus no evangelho de Lc, e como a última (23,46; cf. 24,49), é para mencionar o seu “Pai”. Outra tradução possível: “nas coisas do meu Pai”, ou seja: “Que eu devia estar ocupado com os negócios/assuntos do meu Pai”. Mas essa tradução é menos conforme ao emprego dos termos, e convém menos à situação missão de Jesus ainda não começou.

Já nesta primeira palavra de Jesus, aparece o “dever”, uma obrigação superior do messias, Filho de Deus, uma disposição para a vontade de Deus à qual Jesus está submetido (cf. 4,43p; 9,22p; 24,7) e que já foi descrita nas escrituras (24,26.46); um dia “deverá” deixar todos para voltar a “seu Pai”. O papa Bento XVI (A Infância de Jesus, p. 104) comenta: Ele está no Templo, não como rebelde contra os pais, mais precisamente como Aquele que obedece, com a mesma obediência que O conduzirá à cruz e à ressurreição.

Na Vida Pastoral (2015), Maria de Lourdes Corrêa Lima comenta: A resposta de Jesus mostra uma surpresa e, ao mesmo tempo, uma distância. Não de rebeldia; adolescente, ele era obediente a seus pais (v. 51). Mas deixa claro que sua vida já na adolescência está marcada pelo absoluto da vontade do Pai: “devo… meu Pai” (v. 49). A essa vontade Jesus nada pode antepor. O que mais tarde dirá aos discípulos, propondo-se como referencial para eles, é o que já vive antes em sua relação com seus pais, subordinando-a ao Pai: “Quem amar pai e mãe mais do que a mim…” (Mt 10,37). Sua resposta opõe o “teu pai” (José) ao “meu Pai”. Ele reconhece José como seu pai (jurídico), presta-lhe obediência, mas seu Pai real é aquele que é o senhor do templo, onde ele permanece. Poder-se-ia dizer que as duas formas de obediência não estão desligadas entre si. Jesus se submete a seu pai adotivo porque reconhece acima de si a vontade do Pai. A autoridade dos pais sobre os filhos e a obediência destes são reflexo da paternidade de Deus e da nossa filiação divina.

A Bíblia do Peregrino (p. 2459) comenta: Jesus é filho carnal de Maria, pela qual está ligado fisicamente à humanidade. Está ligado a ela por afeto e submissão filial. Mas essa relação fica relativizada e submetida a outra superior. Jesus é filho legal de José, pelo qual fica registrado oficialmente como descendente de Davi. Mas também a sua relação com José fica relativizada e submetida à relação de Jesus com o Pai.

O adolescente está cortando muito vínculos com um só gesto, que por isso se torna espetacular e dramático, como ação simbólica. Não pede permissão, porque recebe ordens diretamente do Pai. Maria e José ficam implicados, têm que contribuir, com sua angústia e dor, para a trama: no final, esses atores não compreenderam completamente. O relato de Lucas põe em primeiro plano a relação suprema e misteriosa de Jesus com o Pai.

Eles, porém, não compreenderam as palavras que lhes dissera. Jesus desceu então com seus pais para Nazaré, e era-lhes obediente. Sua mãe, porém, conservava no coração todas estas coisas. E Jesus crescia em sabedoria, estatura e graça, diante de Deus e diante dos homens (vv. 50-52).

Mesmo não entendendo tudo, Maria “conservava no coração todas estas coisas”. Na linguagem bíblica, o coração é sede de toda a vida íntima da pessoa (seus pensamentos e sentimentos, sua memória, suas decisões; cf. 1,66; 2,19.35.51… sobretudo 21,14). A Tradução cristã viu nesta observação, repetida em v. 19, uma indicação de que o evangelista poderia ter recebida certas informações sobre a infância de Jesus através da família ou da própria mãe de Jesus.

O papa Bento XVI (A Infância de Jesus, p. 104) comenta: A palavra de Jesus é grande demais por então; a própria fé de Maria é uma fé “a caminho”, uma fé que repetidas vezes se encontra na escuridão e, atravessando a escuridão, deve amadurecer. Maria não compreende as palavras de Jesus, mas guarda-as no seu coração e aqui lentamente faz com que cheguem a maturação.

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 1974) comenta: O mistério da filiação de Jesus ultrapassa toda inteligência humana, mesmo a da pessoa mais aberta à palavra de Deus. As cenas precedentes salientam no entanto que Maria e José perceberam alguma coisa deste mistério… Esta conclusão repete os temas de 2,40 e parece se inspirar em 1Sm 2,26 (Samuel “fica” diante de Deus como o faz Jesus em 2,43).

O crescimento faz parte da humanidade de Jesus, não nasceu pronto. Abrigado por seus pais, Jesus desenvolve-se humana e espiritualmente (“em sabedoria, estatura e graça, diante de Deus e diante dos homens”, cf. Pr 3,4), até chegar o momento do início de sua missão pública com o batismo por João Batista (cap. 3).

Para Lc, o motivo de Jerusalém e do templo é importante; é o lugar onde começa e termina a narrativa da infância e do evangelho e onde começa a evangelização do mundo no seu segundo volume, nos Atos (cf. At 1,8).

De certo modo, este episódio prefigura a atuação de Jesus adulto: sua viagem a Jerusalém (parte central do evangelho de Lc); seu relacionamento íntimo com o Pai (cf. 11,2), o ensinamento no templo e as discussões com os mestres da Lei, seu sumiço (morte) na “Páscoa”; é procurado (pelas mulheres) e encontrado “depois de três dias” e se responde com outra pergunta: “Porque procurais (a quem está vivo entre os mortos)?” (24,5) e com o “dever” do messias/Cristo (24,7.26.46).

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