30 de janeiro de 2018 – Terça-feira, 4ª semana

Leitura: 2Sm 18,9-10.14b.24-25a.30

A Bíblia do Peregrino (p. 580) comenta sobre a guerra civil que o rei Davi tinha que enfrentar contra seu próprio filho Absalão (cf. leitura de ontem):

A sublevação e derrota de Absalão são narradas com bastante amplidão. O autor, detendo-se em detalhes, não perde de vista o conjunto, e articula a história em blocos simples, dividido por sua vez em breves cenas. Estas se desenvolvem sobre um fundo amplo, apenas definido, de modo que o leitor recebe impressão de viveza e presença. Como de costume, é relativamente abundante o diálogo, ao qual o narrador confia várias vezes a interpretação dos fatos. Os blocos podem ser divididos assim:

  1. Absalão: preparativos e sublevações (15,1-12).
  2. Davi: fuga (15,13-16,13).
  3. Absalão em Jerusalém: conselho e espionagem (16,14-17,31).
  4. Davi em acampamentos: batalha e morte de Absalão (17,24-18,18).
  5. Davi: a notícia, pranto e homenagem (18,19-19,9).
  6. Davi: volta para Jerusalém (19,10-44).

 

Ouvimos hoje o relato da morte de Absalão na batalha decisiva numa floresta (v. 7: 20.000 mortos) e do luto de Davi em seguida. Davi não participa pessoalmente da batalha (vv. 3-4); desta vez não é ocasião para o pecado (11,1-5), mas isenção do envolvimento na morte da Absalão.

Absalão encontrou-se por acaso na presença dos homens de Davi. Ia montado numa mula e esta meteu-se sob a folhagem espessa de um grande carvalho. A cabeça de Absalão ficou presa nos galhos da árvore, de modo que ele ficou suspenso entre o céu e a terra, enquanto que a mula em que ia montado passou adiante (18,9).

A mula (ou o burro) é cavalgadura de reis e príncipes (cf. 1Sm 8,11; 1Rs 1,5.38.44; Mc 11,1-11p): o privilégio se torna fatalidade: Absalão fica sem mula e sem reino. Falando da “cabeça presa”, nosso texto não diz expressamente que se enredasse com sua famosa cabeleira (cf. 14,25s), nem o excluí; mas é a leitura tradicional (Flávio Josefo e a Mishna). Cabelos longos podem significar força extraordinária (cf. Sansão em Jz 13,5; 16,17-17,30).

O importante é que Absalão fica pendurado (“ficou suspenso”, versões, “foi posto”, hebraico) na árvore. Um texto legal (provavelmente posterior) diz que “Deus amaldiçoa quem é suspenso a uma árvore” (Dt 21,23); por semelhança, interpretações posteriores viram o fato como execução pela mão de Deus. Com base no mesmo trecho de Dt 21,22s, a morte na cruz era uma maldição para os judeus, e por isso não conseguiram aceitar um messias crucificado. Mas Paulo responde: “Cristo nos remiu da maldição da Lei tornando-se maldição por nós” (Gl 3,13).

Alguém viu isto e informou Joab, dizendo: “Vi Absalão suspenso num carvalho”. Joab tomou então três dardos e cravou-os no peito de Absalão (18,10.14b).

Contra a ordem explícita do rei de poupar seu filho e ter cuidado com ele (18,5.12 “tratei com brandura o jovem”), o general Joab o matou enfiando “dardos” (grego; “bastões” em hebraico) enquanto “estava ainda vivo”  (v. 14b).

Joab é militar ilustre e figura ambígua. Era o comandante do exército de Davi (cf. 3,23; 8,16) e se destacou com bravura na conquista de Jerusalém (cf. 1Cr 11,6). Vingando seu irmão, Joab matou o comandante do exército de Saul, Abner, que já estava oferecendo a paz a Davi (cf. 2,23; 3,27). Executou a ordem de Davi de colocar o marido de Betsabeia, Urias, numa posição mortal na batalha (11,14-21). Talvez por isso, não gostava de Salomão. Depois de Absalão ter matado seu irmão que acabou violentando sua irmã, Joab intercedeu por ele (cap. 14). Mas depois da usurpação de Absalão, Joab ficou fiel a Davi, porém, não poupou a vida do rapaz.

Depois do luto exagerado de Davi por Absalão (19,1-5), Joab repreendeu Davi, porque o rei não valorizava os que lutaram por ele (19,6-8: “amas os que te odeiam e odeias o que amam”). Para ganhar os muitos israelitas que apoiavam Absalão, Davi nomeou Amasa que estava na frente dos soldados deste seu filho, comandante no lugar de Joab. Mas durante outra revolta, Joab o assassinou (20,8-10) e voltou a seu cargo. Na sucessão do trono, não apoiou Salomão, mas Adonias (1Rs 1,7.19.41); por isso foi morto depois pela ordem do rei Salomão apesar de ter se fugido para a tenda do Senhor agarrando os chifres do altar (1Rs 2,28-24; 1,50; cf. Ex 21,13s).

Davi estava sentado entre duas portas da cidade. A sentinela que tinha subido ao terraço da porta, sobre a muralha, levantou os olhos e divisou um homem que vinha correndo, sozinho Pôs-se a gritar e avisou o rei, que disse: “Se ele vem só, traz alguma boa nova.” (18,24-25a).

A entrada na cidade é um lugar bem protegido e o primeiro a receber notícias, é um corredor com portas nas duas extremidades e com entradas laterais; em cima se erguem as torres de observação para as sentinelas.

Podemos comparar cenas semelhantes, porém mais convencionais, com mensageiros em 1,2-4; 11,22-24; 1Sm 4,12-18. “Se ele vem só, traz alguma boa nova”, porque em caso de derrota ou de desgraça, viria muita gente em debanda; um bando de fugitivos anunciaria um desastre (cf. cap. 10).

O rei disse lhe: “Passa e espera aqui”. Tendo ele passado e estando no seu lugar, apareceu o etíope e disse: “Trago-te, senhor meu rei, a boa nova: O Senhor fez justiça contra todos os que se tinham revoltado contra ti”. O rei perguntou ao etíope: “Vai tudo bem para o jovem Absalão?” E o etíope disse: “Tenham a sorte deste jovem os inimigos do rei, meu senhor, e todos os que se levantam contra ti para te fazer mal!“ (18,30-32).

Nos tempos pré-modernos, as notícias foram transmitidas por mensageiros correndo a pé. O mensageiro para Davi é da Etiópia (18,21; lit. cuchita, cf. Gn 2,13). Ainda hoje os africanos desta área da África oriental (Etiópia, Quenia) são os que mais ganham em corridas como no dia de S. Silvestre em São Paulo.

Cuch ou Etiópia fica ao sul do Egito. De 720 a 633 a.C., os etíopes dominavam também o Egito (25ª dinastia). A presença de etíopes entre aqueles que convivem com o rei em Jerusalém é ainda atestada no tempo de Jeremias (o profeta foi resgatado da cisterna por um cuchita em Jr 38,7-13). A “rainha do Sul” (Mt 12,42) que visita Salomão em 1Rs 10,1-10, é de Sabá, reino ao sul da Arábia (atual Yêmen). Etiópia está perto, no outro lado do mar Vermelho. Ainda hoje há judeus e cristãos na Etiópia, que afirmam ter origem no relacionamento de Salomão com a rainha de Sabá. Voltando de uma romaria a Jerusalém, um ministro de finanças da rainha da Etiópia foi o primeiro africano batizado (por Filipe, cf. At 8,27s).

Então o rei estremeceu, subiu para a sala que está acima da porta e caiu em pranto. Dizia entre soluços: “Meu filho Absalão! Meu filho, meu filho Absalão! Por que não morri eu em teu lugar? Absalão, meu filho, meu filho!“ Anunciaram a Joab que o rei estava chorando e lamentando-se por causa do filho. Assim, a vitória converteu-se em luto, naquele dia, para todo o povo, porque o povo soubera que o rei estava acabrunhado de dor por causa de seu filho (19,1-3).

Absalão era filho de Maaca princesa de Gessur (3,3). A semelhança com a morte do primeiro filho com Betsabeia (cf. 12,15-23) serve para sublinhar a diferença no luto (“entre soluços”, grego; “andando”, hebraico): Antes era o filho recém-nascido (de Betsabeia em 11,27), agora é o filho que Davi viu crescer; antes soube refazer-se logo (15,20-24), agora precisa da repreensão enérgica do seu general Joab. Até agora, Davi chamou Absalão de “o jovem”, agora grita muitas vezes “meu filho” (vv. 1.5): grito que transforma a vitória em luto, em vez da festa domina o silêncio da tropa. Para não perder a confiança dos soldados que arriscaram a vida por ele, Joab precisa apelar à razão política e militar de Davi e o luto paternal termina (vv. 6-9).

 

Evangelho: Mc 5,21-43

O evangelho de hoje apresenta duas curas, uma encaixada na outra. Esta técnica narrativa de inserir uma cena no meio de outra, os exegetas (peritos da Bíblia) chamam de “sanduiche”. Mc a usa também em 3,20-35; 6,7-33; 11,11-21; 14,1-14. Aqui a cura da hemorragia no meio do caminho atrasa a outra cura da menina moribunda que acaba de falecer, mas assim o milagre se torna ainda maior (cf. o atraso em Jo 11): Jesus tem o poder de ressuscitar os mortos. No mesmo gênero literário podemos ler como Elias e Eliseu ressuscitaram mortos (1Rs 17,17-24; 2Rs 4,25-37), também Pedro e Paulo o fizeram (At 9,36-43; 20,7-12).

Jesus atravessou de novo, numa barca, para a outra margem. Uma numerosa multidão se reuniu junto dele, e Jesus ficou na praia (v. 21).

Da Decápole (região de dez cidades gregas, cf. v. 20), Jesus voltou ao território nativo e a multidão conhecida se juntou dele na praia (cf. 2,13; 3,7; 4,1).

Aproximou-se, então, um dos chefes da sinagoga, chamado Jairo. Quando viu Jesus, caiu a seus pés, e pediu com insistência: “Minha filhinha está nas últimas. Vem e põe as mãos sobre ela, para que ela sare e viva!” Jesus então o acompanhou (vv. 22-24a).

“Um dos chefes da sinagoga chamado Jairo”, pode ser o responsável pelo culto ou outro membro eminente desta comunidade judaica (em Cafarnaum? Cf. 1,21-29; 3,1-6; 6,2; Lc 4,14-30; Jo 6,59; At 9,19; 13,14-43 etc.). “Quando viu Jesus, caiu a seus pés”; este gesto de prostração expressa um extraordinário respeito. Sua “filhinha está nas últimas”, e ele pede para Jesus impor “as mãos sobre ela”. O pai supõe que as mãos de Jesus transmitam força vital de cura (cf. 1,31.41; 7,32; 8,23.25), até para uma  moribunda, “para que ela sare (lit. se salve) e viva”.

Uma numerosa multidão o seguia e o comprimia. Ora, achava-se ali uma mulher que, há doze anos, estava com uma hemorragia; tinha sofrido nas mãos de muitos médicos, gastou tudo o que possuía, e, em vez de melhorar, piorava cada vez mais. Tendo ouvido falar de Jesus, aproximou-se dele por detrás, no meio da multidão, e tocou na sua roupa. Ela pensava: “Se eu ao menos tocar na roupa dele, ficarei curada”. A hemorragia parou imediatamente, e a mulher sentiu dentro de si que estava curada da doença (vv. 24b-29).

No caminho à casa de Jairo, no meio da multidão, encontra-se outra doente: “uma mulher que, há doze anos, estava com hemorragia” (v. 25). O fracasso dos médicos (v. 26; cf. Tb 2,10; Eclo 38,1-15) serve para exaltar por contraste o poder de Jesus, verdadeiro médico por força divina. A doença exclui a mulher, porque o sangue da menstruação e da hemorragia a torna impura (Lv 15,25-30). Embora soubesse que seu contato contaminava, a mulher considerando Jesus como carregado de um fluido terapêutico descarregado e transmitido por contato, mesmo que seja mediato, “aproximou-se dele por detrás” (cf. Lc 7,38) “e tocou na roupa“ (v. 27; cf. 1,41; 3,10; 6,56; 8,22; At 19,12). “A hemorragia parou imediatamente” (v. 29), lit.: a fonte do seu sangue secou.

Jesus logo percebeu que uma força tinha saído dele. E, voltando-se no meio da multidão, perguntou: “Quem tocou na minha roupa?” Os discípulos disseram: “Estás vendo a multidão que te comprime e ainda perguntas: “Quem me tocou”?” Ele, porém, olhava ao redor para ver quem havia feito aquilo. A mulher, cheia de medo e tremendo, percebendo o que lhe havia acontecido, veio e caiu aos pés de Jesus, e contou-lhe toda a verdade. Ele lhe disse: “Filha, a tua fé te curou. Vai em paz e fica curada dessa doença” (vv. 30-34).

Jesus sentiu a diferença do contato da multidão que o comprimia (cf. v. 31), “percebeu que uma força tinha saído dele” (v. 30; cf. Lc 6,9), e perguntou quem era que tocou. “A mulher cheia de medo e tremendo” (v. 33), porque tinha violado as leis da pureza, ainda na presença de um chefe da sinagoga que deve zelar pela pureza ritual, “caiu aos pés de Jesus”, como antes Jairo. Prostrada e humilde, confessa (confirmando o provérbio de 4,21: “não há nada de oculto, que não se descubra, nada encoberto que não se divulgue”). Jesus não a condena, sim encoraja chamando-a carinhosamente. “Filha, a tua fé te curou (salvou)”. Como Paulo dizia: A fé em Jesus salva, não a lei judaica (cf. Gl 2,15-21; Rm 3,21-26). A fórmula usual de despedida “vai em paz” (v. 34) ganhou novo sentido.

Ele estava ainda falando, quando chegaram alguns da casa do chefe da sinagoga, e disseram a Jairo: “Tua filha morreu. Por que ainda incomodar o mestre?” Jesus ouviu a notícia e disse ao chefe da sinagoga: “Não tenhas medo. Basta ter fé!” E não deixou que ninguém o acompanhasse, a não ser Pedro, Tiago e seu irmão João (vv. 35-37).

Entretanto a menina morreu e trazem a notícia a Jairo. Não há nada de fazer, a doença podia ser curada, para a morte não há remédio. Pensavam que o poder de Jesus se deteria ante a fronteira da morte (cf. Jo 11,21,32). Daí o apelo de Jesus a fé: “Não tenha medo, basta ter fé” (v. 36; cf. Jo 11,26). A continuação vai acontecer em segredo; Jesus só leva os três discípulos mais íntimos consigo (cf. vv. 37.40; 9,2; 13,3; 14,33).

Quando chegaram à casa do chefe da sinagoga, Jesus viu a confusão e como estavam chorando e gritando. Então, ele entrou e disse: “Por que essa confusão e esse choro? A criança não morreu, mas está dormindo”. Começaram então a caçoar dele. Mas, ele mandou que todos saíssem, menos o pai e a mãe da menina, e os três discípulos que o acompanhavam (vv. 38-40b).

Enquanto isso, o tradicional pranto fúnebre começou (cf. Jr 9,16-17), e as pessoas caçoam da frase de Jesus: “A menina não morreu, mas está dormindo” (v. 39). Muitas vezes, na linguagem bíblica e em outras culturas, a morte é designada pela imagem do sono (cf. Jr 51,39,57; Jo 14,12; Sl 13,4; Mt 27,52; Jo 11,11-12; 1Cor 11,30; 15,6; 1Ts 4,13-15).

 Depois entraram no quarto onde estava a criança. Jesus pegou na mão da menina e disse: “Talitá cum” – que quer dizer: “Menina, levanta-te!” Ela levantou-se imediatamente e começou a andar, pois tinha doze anos. E todos ficaram admirados. Ele recomendou com insistência que ninguém ficasse sabendo daquilo. E mandou dar de comer à menina (vv. 40c-43).

No quarto, só na presença dos três discípulos e dos pais (v. 40), Jesus devolve a vida da menina pelo gesto do contato (“pegou a mão”, cf. 1,31) e pela palavra aramaica “Talita cum” que o evangelista traduz em “Menina, levanta-te”. Era comum em relatos da época, um curandeiro usando palavras em língua estrangeira (mágica). Mc escreve em grego, mas conserva algumas palavras em aramaico, no entanto as traduz para não parecerem pura magia (7,34; 11,9; 14,36; 15,34).

A cura é demonstrada (levantar-se, comer), mas Jesus recomendou “com insistência que ninguém ficasse sabendo disso” (v. 43). Com este segredo messiânico, muito difícil de guardar em tais circunstâncias (cf. v. 38), Mc quer dizer que a narrativa só pode ser verdadeiramente compreendida depois da ressurreição de Jesus (cf. 9,9) como antecipação do poder de Jesus sobre a morte (cf. 1Cor 15,55.57).

O detalhe que a menina tinha doze anos, igual período que a mulher adulta sofria de hemorragia, pode inspirar uma reflexão sobre a situação psicológica em que a menina se encontrava: o susto da primeira menstruação e o peso da lei de pureza (Lv 15,19-33) que impedia qualquer contato social porque ela “contaminava” tudo nesta situação por sete dias. Este medo poderia ser causa psicossomática da sua doença e morte. Hoje é a ditadura da moda (a lei da beleza) que pode levar meninas a beira da morte, a ponto de não querem mais comer (anorexia, bulimia) Jesus, porém, supera a lei do puro e impuro (cf. Mc 7,21-23) e devolve vida e fecundidade doando sua própria vida, seu próprio sangue como remédio contra a morte (cf. 14,24; Jo 19,34).

O site da CNBB comenta: A pessoa de fé é aquela que acolhe a revelação divina e responde de forma positiva aos seus apelos. Quando a pessoa acolhe Jesus como sendo o Filho de Deus e procura responder de forma positiva a esta presença de Deus em sua vida, ela é constantemente movida ao encontro de Deus e passa a se beneficiar de suas graças e bênçãos. Mas quem não acolhe a revelação, não reconhece Jesus como o verdadeiro Deus presente no meio de nós, não vai ao seu encontro, não participa da sua vida e do seu projeto de amor e, consequentemente, não se beneficia de tudo aquilo que ele nos concede.

 

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