30 de junho de 2017 – Sexta – Feira, 12ª semana

 

Leitura: Gn 17,1.9-10.15-22

A aliança de Deus com Abraão já foi narrada por uma tradição mais antiga em 15,1-21, hoje ouvimos a releitura sacerdotal no pós-exílio, que vê nesta aliança o começo da terceira era da história (depois da criação em Gn 1 e do dilúvio em Gn 9) e legitima o ritual da circuncisão.

Abrão tinha noventa e nove anos de idade, quando o Senhor lhe apareceu e lhe disse: “Eu sou o Deus poderoso. Anda na minha presença e sê perfeito” (v. 1).

Esta redação sacerdotal oferece detalhes, p. ex. a idade de Abraão (v. 1; cf. 12,4; 16,3.16; 12,4). Com 99 anos, a ideia de ainda gerar uma numerosa descendência parece incrível ou ridícula (cf. v. 17; 18,12).

Como em 15,1.7, Deus se apresenta, mas cada vez com um nome ou característica diferente, desta vez: “Eu sou El shaddai“ (traduzido aqui “Deus poderoso”), mas seu significado ainda não se esclareceu, talvez “deus da montanha (ou das estepes)” ou “protetor”. Para a redação sacerdotal, Deus se revelou aos patriarcas como El shaddai e a Moisés se revelará depois como Yhwh (= Javé; cf. Ex 6,3).

A aliança em Gn 15 era promessa e compromisso unilateral de Deus (a contrapartida de Abraão era apenas a fé), mas desta vez impõe uma conduta moral (integridade, perfeição, cf. 5,24; 6,9; Lv 19,2; Mt 5,48) e depois o sinal religioso da circuncisão (v. 10). A exigência inicial poderia ser traduzida também: “procede honradamente/sinceramente comigo, tem-me presente em teu proceder íntegro”.

Nossa leitura saltou os vv. 2-8: Deus muda o nome de Abrão (hebraico Abram: pai sublime) para “Abraão” (Abraham) que significa “pai de uma multidão” (v. 5). O nome novo é penhor do futuro. No AT, o nome é dado ao nascer (Gn 4,1; 21,3; 25,25s …). Posteriormente, será dado na ocasião da circuncisão no oitavo dia após o nascimento (cf. Lc 1,59; 2,21). Deus repete e aumenta as promessas da fecundidade de Abraão “ao extremo” (vv. 2.6) e dá posse “perpétua” da terra aos seus descendentes, será uma “aliança perpétua” (vv. 7.13.19). Na fórmula da aliança “serei teu Deus”, falta ainda a segunda parte “e vós sereis o meu povo” (v. 7; cf. Ex 19,6; Lv 26,12; Jr 31,1; Ez 11,20; 36,28; 2Cor 6,16; Ap 21,3 …).

Deus disse ainda a Abraão: “Guarda a minha aliança, tu e a tua descendência para sempre. Esta é a minha aliança que devereis observar, aliança entre mim e vós e tua descendência futura: todo homem entre vós deverá ser circuncidado” (vv. 9-10).

A aliança torna-se perpétua, mas recíproca. Na contrapartida, além da conduta ética (v. 1), Deus exige o sinal sagrado (sacramento) da circuncisão. Ao patriarca e seus descendentes compete “guardar” a aliança já outorgada por Deus. O modo de “guardá-la” consiste em cada um levar na própria carne (no prepúcio do pênis) a marca da pertença ao seu Deus. A circuncisão é mais antiga que Israel (cf. Jr 9,25). Na sua origem, e atualmente em algumas culturas tradicionais, é rito de iniciação ao chegar à puberdade, um rito da iniciação ao casamento e à vida do clã (cf. Gn 34,14s; Ex 4,24-26; Lv 19,23; Js 5,2-8; Jr 9,24s).

A promessa é de fecundidade, que garante a continuidade; sua marca se leva no órgão da fecundidade. Torna-se aqui um “sinal da aliança” (v. 11) que relembrará a Deus (como o arco-íris em 9,16s) sua aliança, e ao homem seu pertencer ao povo escolhido e as suas obrigações que daí decorrem. Entretanto, as leis fazem apenas duas alusões a essa prescrição (Ex 12,44; Lv 12,3; cf. Js 5,2-8). Ela só tomou toda sua importância a partir do exílio onde foi usada para afirmar a identidade e a solidariedade entre os exilados (Ez 28,10; 31,18). No pós-exílio, a circuncisão dos meninos ”no oitavo dia” (vv. 12-13; 21,4; cf. Lv 12,3; 1Mc 1,60s; 2Mc 6,10; Lc 1,59; 2,21) marcava sua pertença perpétua ao povo da aliança.

Paulo a interpreta como o “selo da justiça da fé” (Rm 4,11), porém, dispensa-a porque o novo sinal da fé e pertença é agora o batismo (cf. At 15-16). Já no AT, a circuncisão pode ser interpretada em chave espiritual como “circuncisão do coração” (Dt 10,16; Jr 4,4; 9,25; cf. Rm 2,25.29; Fl 3,3). O rito da circuncisão, como o batismo, supõe o compromisso de viver conforme Deus quer (v. 1).

Tanto os homens livres como os escravos (vv. 12-13.23-27) são circuncidados: o povo de Deus nasce aberto para todos, e diante de Deus são todos iguais. É um convite para que os homens e as mulheres também realizem essa igualdade entre si (pelo batismo, cf. Gl 3,26-29).

Deus disse também a Abraão: “Quanto à tua mulher, Sarai, já não a chamarás Sarai, mas Sara. Eu a abençoarei e também dela te darei um filho. Vou abençoá-la, e ela será mãe de nações, e reis de povos dela sairão” (vv. 15-16).

Na releitura da redação sacerdotal, que já valorizou a mulher como imagem de Deus em Gn 1,27, Deus estende sua benção e promessa de descendência também a Sarai (cf. 12,3s). Como mudou o nome da Abrão para Abraão (v. 5), muda agora o nome de Sarai para Sara (“princesa”). “Ela será mãe de nações, e reis de povos dela sairão“ (v. 15; cf. v. 6). As nações serão os israelitas (do neto Jacó-Israel) e edomitas (do neto Esaú), e toda história posterior da monarquia já se vislumbra (os reis Saul, Davi, etc.).

Só agora fica claro que Sara será a mãe do filho da promessa a Abrão, não outra mulher como a escrava Agar como que Abrão gerou Ismael (vv. 15.19.21; cf. cap. 16, leitura de ontem; depois da morte de Sara, terá outro filhos com Cetura, cf. 25,1-6). Mulheres não são circuncidados. Mas em algumas tribos africanas circunda-se o clitóris para a mulher não sentir prazer sexual e não tornar se infiel. A ONU, porém, condena este costume como mutilação. As religiões judaica e muçulmana circundam somente homens.

Abraão prostrou-se com o rosto em terra, e pôs-se a rir, dizendo consigo mesmo: “Será que um homem de cem anos vai ter um filho e que, aos noventa anos, Sara vai dar à luz?”. E, dirigindo-se a Deus, disse: “Se ao menos Ismael pudesse viver em tua presença.” Deus, porém, disse: “Na verdade, é Sara, tua mulher, que te dará um filho, a quem chamarás Isaac. Com ele estabelecerei a minha aliança, uma aliança perpétua para a sua descendência. Atendo ao teu pedido, também, a respeito de Ismael. Eu o abençoarei e tornarei fecundo e extremamente numeroso. Será pai de doze príncipes e farei dela uma grande nação (vv. 17-20).

Mais uma vez Abraão “prostrou-se com o rosto em terra” (vv. 3.17), mas desta vez “pôs-se a rir” (v. 17). É incredulidade (cf. 18,12-15) ou está sorrindo de pura alegria, não se atrevendo a crer? Começa o jogo com o nome do filho “Isaac” (v. 19), cuja raiz os hebreus escutam com o significado de rir, gozar, dançar, festejar (18,12-15; 21,9; 26,8).

Abraão disse a Deus: “Ficarei contente se conservares Ismael vivo” (v. 18). Ismael é o filho que Abraão gerou com a escrava Agar (Gn 16). O que Abraão propõe é demasiado razoável e diminuto. Mas o poder de Deus quer revelar-se na impotência humana (cf. 2Cor 12,9s). Deus deixa claro que Sará “te dará um filho, a quem chamarás Isaac. Com ele estabelecerei a minha aliança”.

Deus atende também o pedido do seu amigo Abraão (cf. 2Cr 20,7; Is 41,8; Dn 3,35; Tg 2,23) a respeito de Ismael (cf. a intercessão pelo sobrinho Ló em 18,22-32). Este participará da benção da fecundidade. “Será pai de doze príncipes, e farei dele uma grande nação” (vv. 19-20; cf. v. 7; 16,11s). Ismael gozará de uma espécie de patriarcado paralelo (como Jacó terá 12 filhos) e será o ancestral dos nômades da Arábia do Norte (25,12-18).

Mas, quanto à minha aliança, eu a estabelecerei com Isaac, o filho que Sara te dará no ano que vem, por este tempo”. Tendo acabado de falar com Abraão, Deus se retirou (vv. 21-22).

Agora a promessa tem data para se cumprir: “no ano que vem”; Abraão terá cem anos (cf. 21,5). “Deus se retirou”, lit. “Deus subiu de junto dele”, isto é, para o céu. A morada celeste serve para expressar a supremacia sobre a criação.

 

Evangelho: Mt 8,1-4

Depois do primeiro dos cinco discursos no Evangelho, chamado sermão de montanha (Mt 5-7), segue-se uma sequência de narrativa (Mt 8-9) até o próximo discurso sobre a missão dos apóstolos (Mt 10). Mt continua com esta alternância de palavra/discurso (sermão) e ação/prática (narrativa) até o fim do evangelho (paixão e ressurreição: Mt 26-28)

Tendo Jesus descido do monte, numerosas multidões o seguiam. Eis que um leproso se aproximou e se ajoelhou diante dele, dizendo: ”Senhor, se queres, tu tens o poder de me purificar” (vv. 1-2).

Jesus desce da montanha como antigamente Moisés (Ex 19,14; 32,1; 34,29). O sermão não se dirigia somente aos discípulos, mas ao povo em geral. No meio destas multidões que “o seguiam” como discípulos em potencial, de repente um leproso! Não devia estar aqui, devia ficar afastado do convívio humano, marginalizado da vida social (Lv 13,45s), devia advertir os outros com um chocalho gritando “impuro” para ninguém se aproximar e contaminar. Mas Jesus não o repreende, ao contrário, reconhece a expressão da fé do doente que se ajoelhou e apela ao poder e a boa vontade de Jesus. Ele o chama “Senhor”, expressão que Mt já usou em 7,21s a respeito do juízo final; só os discípulos (8,25; 14,28.30; 16,22; 17,4; 18,21) e os doentes (8,2.6.; 9,28; 15,22.25.27; 17,15; 20,30s.33) usam o este título em Mt.

Hoje a lepra é chamada “hanseníase” segundo o médico Hansen que em 1837 descobriu sua causa (infecção de nervos que afeta a pele e a carne) e o remédio para sua cura (hoje comprimidos). Ela se transmite via gotículas da respiração ou saliva, mas não pelo toque da pele. Naquela época, porém, era a doença incurável e mais temida (como a aids hoje), vista como castigo de Deus. Sua cura era considerada tal difícil como ressuscitar um morto. Mas o doente excluído diz que sua cura só depende da vontade de Jesus.

Jesus estendeu a mão, tocou nele e disse: “Eu quero, fica limpo.” No mesmo instante, o homem ficou curado da lepra (v. 3).

Jesus não evita o contato físico, não tem medo de tocar neste homem impuro. Só quatro palavras e um pequeno toque para curá-lo! Estender a mão é um gesto comum em histórias de milagres (cf. Moisés em Ex 14,21); em Mt é sinal de proteção sobre os discípulos (cf. 12,49; 14,31).

Então Jesus lhe disse: “Olha, não digas nada a ninguém, mas vai mostrar-te ao sacerdote, e faze a oferta que Moisés ordenou, para servir de testemunho para eles” (v. 4).

Depois da cura física ainda persiste o problema da exclusão da sociedade, é preciso reintegrar o homem na comunidade (Lv 14). Os sacerdotes eram encarregados de fazer o diagnóstico (Lv 13) e declarar a doença com a sentença da exclusão ou, em casos raros de cura ou erros de diagnóstico, declarar a cura com a inclusão.

Mt copiou esta cura de Mc 1,40-45 e deu destaque especial como primeiro milagre que Jesus realiza. Em Mc, o primeiro milagre foi o exorcismo na sinagoga de Cafarnaum (Mc 1,21-28), Mt o suprimiu (talvez porque um espírito impuro dentro de uma sinagoga pudesse ser interpretado como falta de respeito para seus leitores judeu-cristãos). Mas a atitude de Jesus de tocar no leproso é para Mt um exemplo excelente para demonstrar o que significa “praticar” (cf. 7,12-27) uma “justiça maior do que os mestres da lei” (5,20). Jesus cumpre a lei de Israel mandando o leproso após a cura ao sacerdote para o sacrifício (cf. 5,17-19), e pratica a vontade do Pai que quer o bem de todos os seus filhos (cf. 5,45). O maior cumprimento da Lei, portanto, não é declarar quem é puro ou impuro, mas fazer com que a pessoa fique purificada e recuperada para convivência (cf. 7,12).

A proibição de publicar “não o digas a ninguém” não faz muito sentido em Mt que descreve a cura no meio da multidão. Mas Mt é fiel copiador de Mc que descreveu a cura num lugar mais deserto. É característica em Mc, o evangelho mais velho, esta proibição de publicar, o chamado “segredo do messias”, para não confundir Jesus com um messias guerreiro durante a guerra judaica contra os romanos (66-70 d.C.); mas no tempo de Mt (cerca de 80 d.C.), a guerra já passou (os judeus perderam).

O site da CNBB comenta: O Evangelho de hoje nos mostra coisas muito interessantes. Inicialmente, Jesus desce do monte, o que nos mostra que devemos subir ao monte para conversar sobre coisas importantes, mas não podemos ficar lá para sempre, precisamos descer. As multidões o seguiam, porque o discurso do Evangelho convence, faz com que as pessoas deem sua adesão a Jesus e à causa do Reino. Por fim, nos mostra que as verdades refletidas sobre o monte devem ser vividas, pois Jesus faz isso, vendo a necessidade de quem dele se aproxima e fazendo o que está ao seu alcance para que o mal seja vencido e todas as pessoas possam ter uma vida digna de filhos e filhas de Deus.

Voltar