30 de junho de 2018, sábado: O Senhor destruiu sem piedade todos os campos de Jacó; em sua ira deitou abaixo as fortificações da cidade de Judá; lançou por terra, aviltou a realeza e seus príncipes

Leitura: Lm 2,2.10-14.18-19

Ouvimos um trecho das Lamentações. É a única vez que se lê desse livro na liturgia, com exceção de 3,17-26 (opcional na Comemoração de Todos os Fiéis Defuntos, 02 de Novembro). É um livro poético que chora sobre a destruição da cidade de Jerusalém pelo babilônios.

A Nova Bíblia Pastoral (p. 1017) introduz o livro:

                O livro das Lamentações reúne cantos sobre a tomada de Jerusalém, a destruição do Templo e das outras cidades de Judá, em 587 a.C., por Nabucodonosor, imperador da Babilônia. São cantos que descrevem a catástrofe nacional e suas consequências trágicas: saques, incêndios, matanças, deportação, violência física e sexual, fome, sede … bem como a situação de Jerusalém, arruinada pela invasão inimiga: “O monte Sião está devastado” (5,18).

                Mais do que narrar a tragédia, as Lamentações exprimem, de modo doloroso e poético, o sentimento dos sobreviventes de Jerusalém: lamento, humilhação, angústia, abandono, revolta, vingança, duvida, arrependimento, pedido de perdão e esperança. Os sentimentos vão do desespero à confiança no Deus do Templo. Por isso, é provável que o autor deste livro não seja o profeta Jeremias (defensor dos camponeses, contestador do Templo e partidário pró-babilônico), a quem certa tradição atribuía a autoria (cf. 2Cr 35,25). O grupo de funcionários (cantores e escribas) do Templo de Jerusalém é que o devem ter escrito.

                A partir da queda de Jerusalém, o grupo, de acordo com sua teologia, teria composto, selecionado, sintetizado e editado os cantos. As cinco Lamentações exprimem as seguintes preocupações: 1) a desgraça nacional é consequência da infidelidade do povo à aliança com o Deus do Templo; 2) o Deus justo não compactua com o pecado e castiga severamente os injustos; 3) Deus exige do povo pecador profunda conversão e penitência; 4) a esperança em Javé, o Deus glorioso e poderoso.

                O forte acento no ato penitencial (1,8.18; 2,18-19; 3,40-42; 4,6; 5,16) leva a datar a redação final desse livro no período pós-exílico, no qual o culto penitencial a Javé, o Deus nacional, era usado para reorganizar o povo em torno do Templo de Jerusalém (cf. Ne 9; Sl 32). Isso não diminuiu a importância da memória dos sobreviventes da catástrofe que perderam seus referenciais: Jerusalém, a cidade santa (1,1-4; 2,8; 5,18); o Templo (1,10; 2,7); e a monarquia (4,20; 5,16). O sofrimento físico é profundamente existencial. Mas o povo não perde a força de gritar a sua dor. Gritos que ecoam por todo o livro. As Lamentações mostram também o clamor pela vida de todo ser humano: “Vocês todos que passam pelo caminho, olhem e prestem atenção: haverá dor semelhante à minha dor?” (1,12).

Lm é um canto “alfabético”, ou seja, cada versículo de um capítulo começa com outra letra do alfabeto hebraico (cf. Sl 9-10; 25; 34; 37; 111; 112; 119; 145; Pr 31,10-31; Na 1,2-8; Eclo 51,13-29).

A Bíblia de Jerusalém (p. 1582) comenta o teor do cap. 2 do qual ouvimos apenas umas partes: Depois de ter descrito o desastre e a sorte dos reis, dos sacerdotes, dos profetas, dos anciãos, das crianças (vv. 1-2), o poeta interpela Sião (vv. 13-17), recordando-lhe a mentira dos falsos profetas, e a convida à lamentação (vv. 18-22).

O Senhor destruiu sem piedade todos os campos de Jacó; em sua ira deitou abaixo as fortificações da cidade de Judá; lançou por terra, aviltou a realeza e seus príncipes (v. 2).

A Bíblia do Peregrino (p. 1986) comenta o cap. 2: Com toda a força, a nova lamentação faz o Senhor entrar como protagonista: sua ação vai-se desenvolvendo pela descrição de partes materiais da cidade ou de grupos de vizinhos. Pode-se comparar com o Salmo 79… “Sem piedade” (Ez 9,5.10) …; “lançou por terra” (Sl 79,13), “aviltou a realeza e seus príncipes” (Is 43,28). A humilhação do rei, dado seu caráter sagrado, é uma profanação; ou seja, Deus mesmo rejeita a consagração e deixa que o tratem como a um qualquer.

Sentados no chão, em silêncio, os anciãos da cidade de Sião espalharam cinza na cabeça, vestiram-se de saco; as jovens de Jerusalém inclinaram a cabeça para o chão. Meus olhos estão machucados de lágrimas, fervem minhas entranhas; derrama-se por terra o meu fel diante da arruinada cidade de meu povo, vendo desfalecerem tantas crianças pelas ruas da cidade. Elas pedem às mães: “O trigo e o vinho, onde estão?” E vão caindo como derrubadas pela morte nas ruas da cidade, até expirarem no colo das mães (vv. 10-12).

O v. 10 descreve vários gestos de luto (sentados no chão, silêncio, cinza, saco, inclinar a cabeça; cf. Jó 2,8.12; Is 3,24; 47,1; Ez 27,30; Jr 4,8 etc.). O “chão” (terra) como plano de humilhação é frequente no capitulo (vv. 1b.2c.9a.10ac.11b.21a). “Fervem (queimam ou reviram) minhas entranhas”. “Derrama-se por terra o meu fel (lit. “meu fígado”, sede da pujança da vida (cf. Jó 16,13).

“Cidade de Sião” lit. “Filha de Sião” (v. 10). Em todo Lm, o povo de Deus (ou a cidade de Jerusalém construída sobre o morre Sião), é comparada a uma jovem. A ruptura da aliança com Deus é vista como infidelidade ou prostituição da Esposa do Senhor (cf. 1,2; Os 2; Is 1,8.21; Jr2; Ez 16; 23). “A arruinada cidade (lit. filha) de meu povo” (v. 11).

O v. 12 apresenta uma das cenas mais patéticas da série. As crianças pedem às mães: “O trigo e o vinho, onde estão?” (hebraico; no texto grego, perguntam apenas pelo pão). A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 1332) comenta: As criancinhas já devem ter crescido, para formular semelhante pergunta! O sir. acrescenta “azeite”: pensa-se na fórmula clássica para designar a abundancia da Terra Prometida, justapondo-se esses três termos (cf. Dt 7,13; Jl 1,10; 2,19); o grito poderia expressar não somente a penúria, mas também a revolta zombadora da jovem geração com relação às promessas do passado e à esperança escatológica.

“Expirarem”, lit. “sua alma lhes escapa (exalando)” mas “alma” em hebraico significa geralmente a vida o ser todo inteiro, sua vitalidade e afetividade (cf. 1,11.20 e 2,18-19 acerca do “coração”).

Com quem te posso comparar, ou a quem te posso assemelhar, ó cidade de Jerusalém? A quem te igualarei, para te consolar, ó cidade de Sião? Grande como o mar é tua aflição; quem poderá curar-te? Teus profetas te fizeram ver imagens falsas e insensatas, não puseram a descoberto a tua malícia, para tentar mudar a tua sorte; ao contrário, deram-te oráculos mentirosos e atraentes (vv. 13-14). 

A Bíblia do Peregrino (p. 1988) comenta: Em vão o poeta busca comparações: aliviará a dor sentindo-se em companhia de outros que sofrem? Até esse consolo minguado é impossível. O mar como imagem de imensidão: Is 11,9 …Nesta estrofe se concentra a lembrança de Jeremias: sua polêmica com falsos profetas (5,31; 23,13-32; 27-28; 29,8-9), a referência aos oráculos (23,33-40), sua expressão “mudar a sorte” (32,44-33,7). O poeta, conduzindo o povo pelo pranto à conversão, quer conseguir o que os profetas não conseguiram.

O texto varia: “A quem te comparar”, latim (Vulgata); “Que testemunharei eu por ti”, hebraico. – “Quem te poderá … consolar-te”, grego; “A quem te igualar para consolar-te”, hebraico.

“Consolar” (cf. 1,2); a Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 1327) comenta: O sentido deste termo é mais amplo do que no português e engloba um papel jurídico e messiânico. Ele é aplicado ao ato salvífico de Deus: Is 12,1; 40,1; Sl 71,21; 86,17; cf. Lc 2,25 e também o papel do Paráclito, Jo 14,16.26; 15,26; 1Jo 2,1

“Ó cidade de Jerusalém/Sião”. Como se pode chamá-la ainda filha/jovem, exatamente de “virgem” (cf. 1,15.19)? Talvez trate-se de um título honorifico, porém aqui irônico (cf. Am 5,2; Jr 18,13; 31,4.21).

“Teus profetas te fizeram ver imagens falsas e insensatas” (cf. v. 9); lit. visões insípidas, ou, segundo outra raiz, “caiação, reboco” (cf. Ez 13,10-15; 22,28), isto é, aparência. Os profetas em questão são os nacionalistas otimistas contra os quais Jeremias lutou (Jr 23,8-40; 28; 29,8s). Agora Jeremias provavelmente já estava no Egito, ou falecido, e Ezequiel e o Segundo Isaías ainda não surgiram no exílio da Babilônia.

“Tentar mudar (lit. reverter) a tua sorte” expressão frequente em Jeremias, que significa, igualmente, “fazer voltar os cativos”. A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 1332) comenta: Jogo de palavras em hebr. entre o verbo “reverter” e o substantivo “cativeiro”, de raiz aproximada (1,5.18). O jogo de palavras fonético é duplicado num jogo de palavras teológico, porquanto a fórmula é usada para realçar o vértice decisivo da história, quando Deus intervirá de maneira definitiva (cf. Jó 42,10). Note-se que as duas coisas coincidem, na medida em que o retorno do exilio é visto como o começo do grande ato escatológico (cf. Sl 126; Jr 49,6; Ez 16,53). Além disso, há um jogo de palavras implícito sobre o verbo traduzido aqui como “desvelar” (relatar) e, em 1,3, “deportar” (exilar): cf. 4,22.

Grite o teu coração ao Senhor, em favor dos muros da cidade de Sião; deixa correr uma torrente de lágrimas, de dia e de noite. Não te concedas repouso, não cessem de chorar as pupilas de teus olhos. Levanta-te, chora na calada da noite, no início das vigílias, derrama o teu coração, como água, diante do Senhor; ergue as mãos para ele, pela vida de teus pequeninos, que desfalecem de fome em todas as encruzilhadas (vv. 18-19).

A Bíblia do Peregrino (p. 1986) comenta a mudança no v. 18: O poeta continua acusando, mas convida a cidade a dirigir-se ao Senhor e lhe dita as palavras da sua lamentação (20-22). Se Deus (não tanto o inimigo) é o autor da desgraça, é a ele que deve dirigir-se para comovê-lo. Essa lamentação conserva a mesma situação lírico-dramática da anterior: os pormenores trágicos são vistos como participação intensa e se exige o mesmo olhar e atitude do Senhor. É como pedir-lhe que volte a si e considere o que fez (20), como se a espoa repreendesse modestamente o marido. É um final de grande força dramática, uma oração audaz e confiante.

“Grite seu coração ao Senhor, em favor dos muros da cidade de Sião”.  O texto hebraico do v. 18 é duvidoso. A Bíblia de Jerusalém (p. 1584s) comenta: “Deixa teu coração gritar”: ça‘aq libbam, hebr. Ou: “Grita, pois”: ça’aqi lak, conj. – A imagem do muro, na sequência do v., não parece muito coerente e às vezes propõe-se ler “geme, filha de Sião” (hemi, do lugar de homat), mas esta conj. não tem apoio textual.

Nossa liturgia traduz “em favor dos muros da cidade de Sião (lit. apenas: muro da filha de Sião)”; “deixa correr uma torrente de lágrimas, … não cessem de chorar (lit. não sequem) as pupilas de teus olhos”; pode se entender das “lagrimas” e do “olho” da muralha. Este “muro das Lamentações” seria um muro que se queixa, e não um muro onde alguém se queixa (cf. o muro ocidental é única parte que restou do templo em Jerusalém e lá onde os judeus se reúnem e queixam da destruição do templo, chamado o “muro das lamentações”). Para valorizar a imagem é preciso saber que em hebraico a mesma palavra significa olho e fonte, olho d´agua (cf. Sl 77,3 e 42,4, e também Jr 13,17; 14,17).

“Pupilas …”, em hebraico é “menina/filha dos olhos”, pode ser a pupila, mas também as próprias lágrimas, às quais o olho dá origem. O verbo “secar” encontra-se sob outra forma em 3,49 (estancamento das lágrimas; cf. Jr 14,17).

“Ergue as mãos para ele, pela vida (lit. alma) de teus pequeninos”. A visão dos filhos nos braços das mães (cf. v. 12) conduz à imagem da cidade como mãe que deve interceder por seus filhos. Levantar as mãos é gesto de prece (Sl 28,2; 44,21; 141,2; Is 1,15 etc.). A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 1332) comenta: Na atitude de prece, as palmas das mãos são levantadas para Deus (cf. Sl 44,21; 141,2), talvez originariamente para acariciar o ídolo, ou para receber aquilo que é pedido, ou eventualmente para mostrar a Deus que a ele se entrega toda a própria existência: cf. Jz 12,3, onde “arriscar sua vida” se expressa por: colocar a alma na palma da mãos; ora, aqui se trata de derramar o coração, isto é, provavelmente, a substancia do ser, mais do que seus sentimentos.

“Que desfalecem de fome em todas as encruzilhadas” quebra o ritmo; provavelmente uma adição (glosa) inspirada no v. 11; ela se acha igualmente no grego.

 

Evangelho: Mt 8,5-17

O evangelho de hoje apresenta uma cura à distância; é o segundo milagre de Jesus em Mt. Como em Lc 7,1-10, é contada logo após o sermão da planície (Lc) ou da montanha (Mt); Mt só inseriu antes a cura do leproso (vv. 1-4; cf. evangelho de ontem), que Lc já tinha contado bem antes (Lc 5,12-16; seguindo o roteiro de Mc). Isso leva a conclusão de que a cura à distância já estava numa fonte comum (além de Mc) que Mt e Lc usaram (uma antiga coleção catequética de palavras de Jesus, chamada Q), ou numa segunda e ampliada edição de Mc (chamada Deutero-Marcos). Obviamente a função desta cura à distância já na fonte era mostrar a eficiência da Palavra de Jesus logo após o sermão, além de abrir o evangelho aos pagãos.

Quando Jesus entrou em Cafarnaum, um oficial romano aproximou-se dele, suplicando: “Senhor, o meu empregado está de cama, lá em casa, sofrendo terrivelmente com uma paralisia.” Jesus respondeu: “Vou curá-lo” (vv. 5-7).

Jesus volta a Cafarnaum, uma cidade de fronteira, que Jesus tinha escolhido para morar (4,13; cf. Mc 2,1). Lá encontra um centurião (oficial que comanda cem soldados, cf. 27,54p; At 10,1; 21,32; 22,25), é um pagão, não, porém, necessariamente romano. Herodes Antipas, administrador da Galileia, recrutava suas tropas em todas as regiões circunvizinhas; em Jo 4,46-53, Jesus cura o filho de um oficial de Herodes à distância.

Também em nosso evangelho de hoje, o centurião pede a cura do seu “filho” e não do seu “empregado” (como traduz nossa liturgia; cf. Lc 7,2), porque o termo grego que Mt usa significa “menino” (cf. 2,16; 17,15.18; duplo sentido em Is 42,1; Mt 12,18; At 3,13.26; 4,25,27), enquanto usa outro termo para designar “servo, escravo” em v. 9!

O oficial disse: “Senhor, eu não sou digno de que entres em minha casa. Dize uma só palavra e o meu empregado ficará curado (v. 8).

O centurião reconheceu Jesus como “Senhor” (vv. 6.8; cf. v. 2; 7,21s etc.; At 2,36; Fl 2,11), expressando sua fé, mas também respeita os costumes e as leis do país. Às palavras de Jesus: “Vou curá-lo?” (v. 7 pode ser uma pergunta), ele confessa que não é digno como pagão, não se atreve a hospedar Jesus, porque sabe que os judeus não entram nas casas dos pagãos para não se tornarem impuros (cf. Jo 18,28; At 11,3). Jesus, como judeu, tornar-se-ia impuro se entrasse na casa dele.

Na sua humildade pede que baste uma palavra de Jesus para curar o filho paralisado. Seu pedido (um exemplo de fé e humildade) entrou na liturgia da missa. Antes de receber o corpo de Cristo confessamos: “Senhor, eu não sou digno de que entreis em minha morada” (corpo como morada da alma, cf. 2Cor 5,1; 1Cor 6,19s), “mas dizei uma palavra, e serei salvo” (cf. Jr 30,31: “Quem ousaria aproximar-se de mim?”).

Pois eu também sou subordinado e tenho soldados debaixo de minhas ordens. E digo a um: ‘Vai!’, e ele vai; e a outro: ‘Vem!’, e ele vem; e digo ao meu escravo: ‘Faze isto!’, e ele faz” (v. 9).

O centurião crê que Jesus é capaz de curar, mesmo sem estar presente fisicamente, basta dar uma ordem para que aconteça a cura. Sua experiência militar é imagem para expressar esse poder. Provavelmente quer dizer: “Se eu como homem subalterno posso dar ordens, quanto mais o Senhor!” (cf. João Crisóstomo: “Tú és Deus-Senhor, eu sou só um homem”). Um modo de fazer, próprio de soberanos e autoridades, é por meio da palavra, ou seja, dando ordens é fazer. Dessa condição são as ordens criadoras de Deus (Gn 1: Deus falou e assim se fez; cf. Sl 33); assim a palavra de Jesus se mostrará eficaz.

Quando ouviu isso, Jesus ficou admirado, e disse aos que o seguiam: “Em verdade, vos digo: nunca encontrei em Israel alguém que tivesse tanta fé (v. 10). 

Solenemente, Jesus expressa sua admiração “aos que o seguiam” (às multidões de v. 1): “Em verdade vos digo, nunca encontrei em Israel alguém que tivesse tanta fé”. A fé do centurião se parece com a de Abraão (cf. Gn 15,6), é uma confiança incondicional no poder do Senhor (cf. Hb 11,1: “A fé é um modo de possuir desde agora o que se espera, um meio de conhecer realidades que não se veem”).

Eu vos digo: muitos virão do Oriente e do Ocidente, e se sentarão à mesa no Reino dos Céus, junto com Abraão, Isaac e Jacó, enquanto os herdeiros do Reino serão jogados para fora, nas trevas, onde haverá choro e ranger de dentes” (vv. 11-12).

Esta frase encontra-se também em Lc 13,28s, depois da metáfora da porta estreita (Lc 7,24-27) que Mt colocou dentro do sermão da montanha (7,13s.22s). Inspirado em Is 25,6; 55,1-2; Sl 22,27 etc., o judaísmo apresentou a era messiânica muitas vezes sob a imagem de um festim (cf. 22,2-14; 26,29p; Lc 14,15; Ap 3,20; 19,9). Jesus vislumbra a rejeição do messias e do evangelho pelo seu próprio povo (cf. 27,25), enquanto os pagãos demonstram mais abertura, ou seja, fé nele. Eles vão tomar o lugar dos judeus, que são “herdeiros” (lit. filhos) naturais das promessas (cf. 21,43; Rm 9,3-5), mas não acreditando no Cristo ficarão “fora nas trevas” (22,13; 25,30) e com “choro e ranger de dentes” (expressão de dor terrível em Mt; cf. 13,42.50; 22,13; 24,51; 25,30).

Então, Jesus disse ao oficial: “Vai! E seja feito como tu creste.” E naquela mesma hora o empregado ficou curado (v. 13).

Jesus atende à fé do oficial: “Vai! E seja feita como tu creste” (“seja feita” lembra o pedido do Pai-Nosso em 6,10). Brevemente consta-se a cura “naquela mesma hora”. Atendendo ao pedido de um pagão, Jesus mostra que as fronteiras do Reino vão muito além do mundo estreito da pertença à uma origem privilegiada. A fronteira agora é a fé na palavra libertadora de Jesus. Mesmo pertencendo ao grupo dos que se consideram salvos, se não houver essa fé, também não haverá possibilidade de entrar no Reino de Deus.

Para a comunidade de Mt, o centurião torna-se figura de identificação (como já era o centurião em Mc 15,39), homem de fé e humildade que respeita a lei e a preferência de Israel (cf. 15,21-28) e ao mesmo tempo símbolo da comunidade “católica”, ou seja, de “todos os povos” que confiam na palavra de Jesus mesmo sem sua presença física (28,20).

A Bíblia de Jerusalém (p. 1852), comenta sobre a fé nos evangelhos sinóticos:

Essa fé, que Jesus requer desde o princípio da sua atividade (Mc 1,15) e que ele continuará a requerer sempre, é um sentimento de confiança e de abandono pelo qual o homem desiste de contar com os seus próprios pensamentos e com suas forças, para entregar-se a palavra e ao poder daquele em que crê (Lc 1,20.45; Mt 21,25p.32). Jesus exige-a sobretudo por ocasião de seus milagres (8,13; 9,2p.22p.28-29; 15,28; Mc 5,36p; 10,52p; Lc 17,19), que são menos atos de misericórdia do que sinais da sua missão e do reino (8,3 etc., cf. Jo 2,11); assim ele não pode realizá-lo quando não encontra a fé que lhes pode dar o verdadeiro sentido (12,38-39; 13,58p; 16,1-4). Exigindo um sacrifício do Espírito e de todo ser, a fé é um difícil gesto de humildade (18,6p), que muitos se recusam a fazer, particularmente em Israel (8,10p; 15-28; 27,42p; Lc 18,8), ou o fazem pela metade (Mc 9,24; Lc 8,13). Os próprios discípulos demoram a crer (8,26p; 14,31; 16,8; 17,20p), mesmo depois da ressurreição (28,17; Mc 16,11-14; Lc 24,11.25.41). Até a fé mais sincera do seu chefe, a “rocha” (16,16-18) será abalada pelo escândalo da paixão (26,69-75p), mas triunfará dele (Lc 22,23). A fé, quando forte, opera maravilhas (17,20p; 21,21p; Mc 16,17), alcança tudo (21 ,22p; Mc 9,23), particularmente a remissão dos pecados (9,2p; Lc 7,50) e a salvação, da qual é a condição indispensável (Lc 8,12; Mc 16,16, cf. At 3,16).

Entrando Jesus na casa de Pedro, viu a sogra dele deitada e com febre. Tocou-lhe a mão, e a febre a deixou. Ela se levantou, e pôs-se a servi-lo (vv. 14-15).

Como terceiro milagre, Mt conta a cura da sogra de Pedro. Para Mc (e Lc) é o milagre que seguia à cura de um homem possuído na sinagoga de Cafarnaum, omitido por Mt por ser ofensivo aos ouvidos dos seus leitores judeu-cristãos. Mas também em Mt, a cura da sogra continua sendo a cura de uma mulher em casa de família depois da cura de um homem em espaço público (em Mt: o centurião, ou seja, o filho dele).

O milagre da cura da sogra de Pedro é tão pequeno que corre o risco de passar despercebido; Mt abreviou ainda o relato de Mc, omitindo o pedido dos apóstolos (cf. Mc 1,30; Lc 4,38). Mt não fala mais nada sobre a família de Pedro que era casado (cf. 1Cor 9,5), só importa a ação de Jesus. A presença dele na comunidade liberta as pessoas do mal. Em resposta, as pessoas libertadas se põem a serviço da comunidade.

Quando caiu a tarde, levaram a Jesus muitas pessoas possuídas pelo demônio. Ele expulsou os espíritos, com sua palavra, e curou todos os doentes, para que se cumprisse o que foi dito pelo profeta Isaías: “Ele tomou as nossas dores e carregou as nossas enfermidades” (vv. 16-17).

O sumário em v. 16 mostra que as três curas anteriores eram exemplos de muitas outras. Mt copiou as palavras de Mc 1,32-34 e salienta que Jesus “curou todos os doentes”. Em v. 17 substitui o segredo do messias (a ordem de Jesus de não divulgar seus milagres e sua identidade de messias/Filho de Deus que Mc havia anotado tantas vezes para evitar o mal-entendido de um messias nacionalista e guerreiro). Em vez disso, Mt emprega mais um cumprimento da profecia: “para se cumprisse o que foi dito pelo profeta …” (cf. 2,15.17.23; 8,17; 12,17; 13,35; 21,4; 26,54.56; 27,9; e ainda 3,3; 11,10; 13,14).

”Ele tomou nossas dores e carregou as nossas enfermidades” (Is 53,4). Para o profeta Isaías, o servo de Javé “tomou” sobre si nossas dores pelo seu próprio sofrimento expiador. Mt entende aqui que Jesus as “tomou”, removendo-as através de suas curas miraculosas. Outras vezes Mt se refere às profecias de Is a respeito do servo de Javé. Em 12,18-21, cita Is 42,1-4 (em grego, a palavra significa mais “menino” do que “servo” e, neste sentido, já foi aplicada no batismo de Jesus, o “Filho de Deus”, cf. 3,17p). Em 26,28, Mt acrescenta que o sangue de Jesus será derramado por muitos “para remissão dos pecados” (cf. Is 53,12; cf. Jo 1,29). Assim o “servo-filho” vem tomar sobre si a expiação dos pecados e pode aliviar os homens de seus males e dores que são consequência e pena do pecado.

O site da CNBB comenta: Ele tomou as nossas dores e carregou sobre si as nossas enfermidades. Jesus é solidário com todos os que sofrem e é sempre uma presença de amor em suas vidas. A sua presença manifesta o amor que Deus tem pelo gênero humano. Quem tem fé verdadeira é sempre capaz de ver a presença de Jesus na sua própria vida, principalmente nos momentos de sofrimento e de dor, e sente os efeitos dessa presença amorosa. O verdadeiro discípulo de Jesus é aquele que manifesta a todos os que sofrem esta presença e esta solidariedade de Jesus, e o faz através do serviço, ou seja, tornando-se ele próprio uma extensão do braço amoroso de Jesus que atua nos momentos difíceis da vida de todos.

 

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