30 de Maio de 2021, Domingo – Solenidade da Santíssima Trindade: Ide e fazei discípulos meus todos os povos, batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo

Solenidade da Santíssima Trindade

 1ª Leitura: Dt 4,32-34.39-40

Como a primeira leitura é do Antigo Testamento (AT), não se encontra referência alguma à Santíssima Trindade como três pessoas divinas, porque isso não foi revelado antes de Jesus Cristo, o Filho de Deus, nascer e portanto, é conteúdo apenas no Novo Testamento (NT). Mas a grande revelação do AT é o monoteísmo, ou seja, o Deus único “e não há outro além dele” (vv. 35.39). Assim a 1ª leitura afirma outra parte do dogma trinitário: “Um só Deus” em três pessoas.

Na antiguidade, porém, todos os povos acreditavam em muitos deuses (politeísmo), identificando e confundindo as forças da natureza (mar, astros etc.) e atitudes humanas (amor, guerra, …) com deuses e espíritos. Só no pequeno povo de Israel, a fé no único Deus se afirmou aos poucos contra toda influência das potências estrangeiras.

A leitura é de Deuteronômio, quer dizer “segunda (edição da) lei” (cf. 17,18). Os autores puseram discursos na boca de Moisés lembrando a aliança e a lei dada no monte Horeb/Sinai. Nesta aliança, Javé Deus escolhe Israel para ser seu povo que deve comprometer-se a obedecer a lei e prestar culto somente a Javé.

A parte central do livro (12,1-26,19) surgiu a partir do séc. VIII a.C. no reino do Norte (Israel), foi levado ao reino do Sul (Judá), ampliado (4,44-28,68) e serviu para as reformas de Ezequias e Josias (cf. 2Rs 22,8-20). Depois da queda de Jerusalém (586 a.C.), para responder ao contexto do exílio e início do pós-exílio, criou se uma nova introdução (1,1-4,43) e o final (28,69-34,12). Nossa leitura de hoje faz parte desta nova introdução, em que Javé é declarado o único Deus vivo e verdadeiro (contra toda idolatria dos babilônios).

O Deuteronômio no capítulo 4 propõe um “credo histórico” (4,32-40). Moisés insiste no fato que Deus sempre se manifestou ao povo de Israel e com ele estabeleceu uma relação pessoal muito forte (revelando-se como Pai em 1,31). É algo inédito. Depois da exposição negativa sobre os ídolos (deuses falsos) com suas ameaças, o pregador (na boca de Moisés) passa a inculcar a doutrina positiva sobre Yhwh (Javé): um monoteísmo formal e explícito, como escreveu o Deutero-Isaias (Segundo Isaias) também no exílio babilônico (Is 45,5.18.22; etc.). A profissão de fé, “reconhecer”, se repete a maneira de estribilho (vv. 35 e 39).

Interroga os tempos antigos que te precederam, desde o dia em que Deus criou o homem sobre a terra, e investiga de um extremo ao outro dos céus, se houve jamais um acontecimento tão grande, ou se ouviu algo semelhante (v. 32).

Ainda que breve, o epílogo da introdução é uma peça oratória que utiliza seus melhores recursos, enumera (sete membros, no v. 34), interroga, interpela, solicita a colaboração dos ouvintes, pergunta, “interroga… investiga” (cf. Jó 8,8). Quer abraçar o espaço celeste “de um extremo ao outro” e remontar na história até a criação de Adão: “Deus criou o homem sobre a terra”. Colocado nessas coordenadas de espaço e tempo, o feito de Israel é o máximo e único, como é único seu Deus o Senhor. Primeiramente, Israel reconheceu Javé como o Deus presente na história do povo. À medida que se aprofunda a reflexão, descobre-se que ele é também o criador. Esta é a única frase no Dt em que se confessa que Deus é criador, o que já se encontra em Am 4,13, e depois no exílio, em Is 40,28 e na tradição sacerdotal de Gn 1.

O “acontecimento tão grande” de que Moisés está falando é a libertação do seu povo no Egito (Ex 14) e a teofania (manifestação divina) de Javé no monte Sinai (cf. Ex 19). Com Moisés, a religião ganhou uma nova fase, a fé como adesão a um único Deus que acompanha e liberta.

Investigando a história, porém, descobriu-se que o primeiro monoteísmo exclusivo que se conhece não foi o de Moisés (cerca de 1250 a.C.), mas do faraó Amenófis IV (ou em egípcio antigo Amenhotep IV; 1374-1347 a.C.), que declarou o culto ao deus do disco solar (Áton) como único legitimo, chamava-se Aquen-Aton e construiu uma nova capital (hoje Amarna). Mas como era a fé de uma ditadura imposta, depois da morte de Aquenáton, os sacerdotes de Tebas restauraram o politeísmo com o culto a Amon-Re e outros deuses. O filho de Aquenáton era jovem ainda e tinha que aceitar a volta ao politeísmo, chamando-se Tut-Ank-Âmon.

Existe, porventura, algum povo que tenha ouvido a voz de Deus falando-lhe do meio do fogo, como tu ouviste, e tenha permanecido vivo? (v. 33).

Alusão à teofania (descrita em Ex 19,16-25.18-21) que o povo assistiu, mas teve medo. Depois de ouvir a voz divina declarando os 10 mandamentos, os israelitas disseram a Moisés: “Fale-nos tu; não nos fale Javé, para que não morramos” (Ex 20,19). Moisés torna-se o mediador único como no pós-exílio o sumo sacerdote.

Muito menos se pode ver a Deus para não morrer (cf. Ex 33,20). O Deus de Israel é invisível ao contrário dos ídolos, imagens dos povos pagãos, e não deve ser representado por nenhuma imagem (cf. no decálogo: Ex 20,1-6; Dt 5,6-10). “A voz de Deus”, a tradução grega acrescentou “vivo” (omitido pelo hebraico); afirmar que Deus é vivo é uma das formas principais da fé no Deus verdadeiro e único (cf. 5,26; 6,4), implicando a rejeição de deuses falsos que não têm vida, e de suas imagens (Js 3,10; 1Sm 17,26.36; Is 37,4; Jr 10,8-10; Os 2,1; Sl 84,3…; cf. Mt 16,16; 26,63; Rm 9,26; 1Ts 1,9; 1Tm 3,15…).

Não tem imagens, mas “sinais” (símbolos) de Deus (cf. v. 34). O sinal do fogo já aparece na sarça ardente no pé do Horeb (Ex 3), como coluna de fogo na saída do Egito (Ex 13-14; cf. Gn 15,17s); no judaísmo, a festa de “Pentecostes” (Tb 2,1) comemora a entrega da lei e da aliança no monte Sinai; No NT, o Espirito Santo desce “em línguas como de fogo” (At 2,3).

Ou terá jamais algum Deus vindo escolher para si um povo entre as nações, por meio de provações, de sinais e prodígios, por meio de combates, com mão forte e braço estendido, e por meio de grandes terrores, como tudo o que por ti o Senhor vosso Deus fez no Egito, diante de teus próprios olhos? (v. 34).

Javé escolheu “para si um povo em meio às nações” (Ex 19,5s). No Egito realizou “prodígios” (dez pragas; Ex 7-12), combateu e derrotou o exército do faraó; “com mão forte e estendido” abriu o mar vermelho (Ex 14).

A escolha de Javé serviu para rejeitar a religião e a cultura de outros povos, alianças (políticas e matrimoniais) com eles e justificar a conquista da terra praticando destruição e violência (cf. Dt 7,1-6). Deve-se entender isso como defesa de um povo ameaçado em sua identidade cultural e religiosa por nações estrangeiras muito mais potentes.

Nossa liturgia omitiu os vv. 35-38 com suas referências aos “pais” (patriarcas) que Javé amava e, portanto, deu-lhes a promessa da terra da qual expulsou outras nações depois de saírem do Egito. Nota-se a situação paralela dos autores deste texto que estão voltando do exílio da Babilônia e esperam tomar posse de novo da terra.

Reconhece, pois, hoje, e grava-o em teu coração, que o Senhor é o Deus lá em cima do céu e cá embaixo na terra, e que não há outro além dele (v. 39).

A afirmação monoteísta de v. 39 explicita (e repete o v. 35) a inexistência de outros deuses (cf. Is 43,10-11; 44,6; 45,5 etc.). O decálogo (10 mandamentos) proibia simplesmente o culto aos deuses estrangeiros (5,7-9). Durante muito tempo, estes foram considerados como inferiores a Javé, filhos de Javé ou espíritos ineficazes, demônios desprezíveis. Abre-se agora uma nova etapa: esses deuses não existem! “Ficar sabendo” (v. 35), “reconhecer e gravar (meditar) no coração” (v. 39) é a caminho de fé: ouvir, pensar e amar.

Guarda suas leis e seus mandamentos que hoje te prescrevo, para que sejas feliz, tu e teus filhos depois de ti, e vivas longos dias sobre a terra que o Senhor teu Deus te vai dar para sempre (v. 40).

Tudo deve desembocar por parte do povo no cumprimento da lei, fonte de bênçãos. A felicidade do povo está condicionada à fidelidade da relação com Deus, observando as suas leis e seus mandamentos. São mandamentos que garantem a entrada e permanência na terra prometida. Sem as palavras de Deus, o povo não se manterá. A história deuteronomista (Js, Jz 1-2Sm; 1-2Rs) viu a causa da derrota e do exílio na infidelidade do povo para com Javé Deus e suas leis.

Na “boa terra” que Deus dá (1,25.35 etc.), o povo encontra a “felicidade”. Em hebraico, as duas palavras são aparentadas. Em paz nesta terra, o homem pode prolongar seus dias (vv. 26.40; 5,33; 11,9; 17,20; 22,7; 30,18; 32,47), tema sapiencial (Pr 3,2) e presente no quarto mandamento (honrar os pais, cf. 5,16; Ex 20,12).

 

2ª Leitura: Rm 8,14-17

Na segunda leitura encontramos o tema da Trindade atuando dentro de nós através do batismo e transformando nossas relações com Deus e entre nós.

Os peritos consideram sete cartas escritas pelo próprio Paulo (Rm; 1-2Cor; Gl; Fl; 1Ts; Fm), as outras por seus discípulos. Na Bíblia, as cartas de Paulo estão colocadas numa certa ordem, não cronológica, mas por tamanho (o mesmo critério encontra-se na sequência do Alcorão). A carta aos romanos é a mais volumosa, a carta a Filêmon a mais curta.

A carta aos Romanos parece ter uma finalidade bem precisa: os temas teológicos tratados e o debate com o judaísmo (Rm 9-11) mostram que o Paulo está preocupado em corrigir falsas interpretações a respeito de sua pregação entre os pagãos, provavelmente levadas a Roma por judeus e por cristãos judaizantes (Rm 16,17-18). O apóstolo expõe de maneira serena, ordenada e aprofundada, a doutrina que já havia exposto de modo polêmico na carta aos Gálatas: a gratuidade da salvação pela fé. Ele mostra que só Deus pode salvar e que ele salva não apenas os judeus, mas toda humanidade destruída pelo pecado. E Deus salva por meio de Jesus Cristo. Ora, para que a humanidade seja salva, Deus lhe dá uma anistia geral sob uma condição: que o homem acredite em Jesus Cristo, manifestação suprema do amor de Deus aos homens, e se torne discípulo dele. A seguir, o “Espírito” age dentro do homem, assim anistiado, e constrói nele uma vida nova, que destrói o pecado. Solidarizando-se com Jesus Cristo, princípio da nova humanidade (novo Adão; cf. 5,12-19), a humanidade pode recomeçar seu caminho e salvar-se.

Paulo quer mostrar aos judeu-cristãos de Roma (e a nós) que nenhuma lei pode salvar, por melhor que seja, nem mesmo a judaica, pois não consegue destruir o pecado; ao contrário, ela pode até alimentar o pecado. Somente a fé que temos em Jesus Cristo é que nos insere no âmbito da graça e nos possibilita a construir, no Espírito, a humanidade nova.

Contrapondo-se ao egoísmo, à “carne” (traduzida pela Bíblia Pastoral como “instintos egoístas”), a ação do Espírito cria um novo tipo de relacionamento dos homens entre si e com Deus: a relação de família. Agora podemos chamar Deus de Pai, pois somos seus filhos. E isso é a base para as relações sociais recompostas: o clima de família se alastra, porque todos são irmãos. A “herança” prometida por Deus aos “que são guiados pelo Espirito” (8,14) consiste em participar do Reino. Mas isso implica a seriedade de um testemunho, como o de Jesus Cristo.

Todos aqueles que se deixam conduzir pelo Espírito de Deus são filhos de Deus. De fato, vós não recebestes um espírito de escravos, para recairdes no medo, mas recebestes um espírito de filhos adotivos, no qual todos nós clamamos: Abá – ó Pai! (vv. 14-15).

Pela fé (e sua expressão sacramental, o batismo) recebemos o Espírito como guia, “mestre interior”. O Espírito é o princípio de uma vida propriamente divina em Cristo (cf. Gl 2,20), não é um “espírito de escravidão”, mas um “espírito de adoção filial”.

Paulo não convoca para uma revolta de escravos como o gladiador Espártaco fez em Roma (73 a 71 a.C.) que terminou com a derrota e a crucificação de 6000 escravos. Paulo quer libertar o homem de dentro, do seu egoísmo (lit. carne), dos vícios pagãos, da rigidez da lei judaica, superando as divisões de nação, raça, gênero e classe para uma vida de fraternidade e partilha (cf. Gl 3,26-28; 1Cor 11, 17-34; Fm).

O lema da revolução francesa (1789) foi “liberdade, igualdade, fraternidade”, mas já são palavras chaves nas cartas de Paulo. Qual a nossa opinião sobre escravidão?  Ainda existe? Qual o papel da igreja na história (aboliu a escravatura no início da idade média, mas admitiu-a nas colônias a partir de 1500), e na atualidade (cf. CF 2014)? Se somos filhos, a nossa responsabilidade é maior.

“Abá” (pai, papai) é termo aramaico, umas das poucas palavras apresentadas na língua original (outras são “Amém” e “Hosana”, ainda na liturgia atual), o que mostra sua originalidade. É uma expressão filial, cheia de familiaridade e ternura de Jesus e de seu Pai (Mc 14,36; cf. Mt 11,25; Lc 22,42 etc.). A nossa filiação adotiva nos faz participar dela (cf Gl 4,6). Paulo talvez aluda ao começo do Pai-nosso, na tradição de Lucas (Lc 11,2).

O próprio Espírito se une ao nosso espírito para nos atestar que somos filhos de Deus. E, se somos filhos, somos também herdeiros, herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo; se realmente sofremos com ele, é para sermos também glorificados com ele (vv. 16-17).

No AT, a “herança” designa a posse da Terra prometida (Dt 4,21: traduzido por “patrimônio”), e não supõe evidentemente a morte de ninguém. No NT, a Terra prometida se torna o conjunto dos bens divinos: o Reino de Deus (Mt 25,34), a vida eterna (Mt 19,29). O Pai comunica todos os seus bens ao seu Filho ressuscitado dos mortos e, por ele, aos crentes.

“Se realmente sofremos com ele, é para sermos também glorificados com ele”; a preposição “para” não marca a intenção que deveria dirigir os cristãos (como se lhes fosse preciso procurar o sofrimento com a finalidade de obter a glória), mas exprime a relação necessária entre os dois aspectos de um mistério único de morte e ressurreição, para o cristão como para o Cristo (cf. Fl 3,10-11).

Com o próximo v. 18 (omitido pela liturgia), Paulo introduz o tema da libertação dos sofrimentos do tempo atual numa nova criação na glória de Deus: “Penso, com efeito que os sofrimentos do tempo presente não têm proporção com a glória que deverá revelar-se em nós” (cf. 2Cor 4,17). Esta glória existe desde agora no Cristo ressuscitado, e mesmo, de certo modo, no cristão (2Cor 3,18). Mas ela ainda não foi manifestada. Paulo não fala somente de manifestação, mas de revelação, porque o ser humano não pode conceber atualmente uma ideia do esplendor dessa glória futura e porque, através dele, essa manifestação atingirá a criação inteira (cf. Rm 3,23; 8,19-23; Is 40,5; Sl 85,10).

 

Evangelho: Mt 28,16-20

Ouvimos hoje no Ano B a conclusão de Mt, que é lida também na festa da Ascensão do Senhor no Ano A. De fato, o evangelho de Mt não descreve a ascensão como Lc 1,50-53 e os At 1,9-11, mas apresenta apenas as últimas palavras de Jesus e deixa o resto à imaginação do leitor. Para este domingo da Trindade este trecho foi escolhido por causa da fórmula trinitária em v. 19.

O evangelho mais antigo de Mc terminou com a fuga das mulheres do túmulo vazio, e “não disseram nada a ninguém” (Mc 16,8). Parece que Mc queria provocar assim para o leitor falar tornando-se ele próprio um anunciador da Boa Nova. Ficou na imaginação do leitor, como os apóstolos receberiam depois a notícia e como o ressuscitado iria aparecer a eles na Galileia, porque já havia sido anunciado por Jesus na última ceia e pelo anjo no túmulo vazio (Mc 14,28p; 16,7p).

Mt, que tomou Mc como modelo, explicita esta última parte (como fazem Lc e Jo e também o final secundário de Mc 16,9-16). As mulheres não só sentiram medo, mas também “grande alegria”, e no caminho, o próprio ressuscitado apareceu a elas reforçando o recado do anjo (Mt 28,8-10). Mt inseriu ainda a guarda do túmulo (27,62-66). Os guardas se deixaram corromper para não contarem a verdade sobre o túmulo vazio, mas divulgaram a calúnia de que os discípulos teriam roubado o corpo para enganar (28,11-15).

Os onze discípulos foram para a Galileia, ao monte que Jesus lhes tinha indicado (v. 16).

Os doze estão reduzidos pelo suicídio do traidor, Judas Iscariotes (27,3-10; cf. At 1,15-26: Matias como substituto). Jesus e o anjo haviam indicado apenas “Galileia” (v. 7; 26,32), mas para Mt o monte é símbolo fundamental.

O “monte” podia ter feito parte de um relato anterior que Mt estava usando (cf. a ascensão em At 1,9-12; cf. Lc 24,50), mas podia ser contribuição própria de Mt, como no “sermão da montanha” (Mt 5,1; 8,1; em Lc 6,17, este sermão acontece na “planície”). Mt havia transferido o monte onde Jesus chamou os doze (cf. Mc 3,13s; Lc 6,12s) para este sermão diante do povo para mostrar Jesus como novo Moisés no monte Sinai que apresenta sua nova interpretação da Lei (Mt 5-7). A alusão a Moisés é importante para seus leitores judeu-cristãos (cf. a infância paralela de Jesus em Mt 2 com a de Moisés em Ex 2). De Mc 9,2-9, Mt copia a transfiguração na montanha onde apareceram Moisés e Elias (Mt 17,1-9), ambas haviam subido ao monte Horeb/Sinai (cf. Ex 19.3.20; 24,9.12-18 etc.; 1Rs 19,8-18). De Mc 11-14, Mt copia as passagens de Jesus pelo monte das oliveiras (21,1; 24,3; 26,30). Em At 1,9-12 (cf. Lc 24,50s), o monte das oliveiras é o lugar da ascensão, porque em Lc, Jesus só aparece em Jerusalém e redor (Emaus, 12 km). Mt é mais fiel ao modelo de Mc e narra a aparição na “Galileia” onde o evangelho começou (Mc 1,14p). Lógico para Mt, que a despedida de Jesus devia acontecer numa montanha (como aconteceu com Moisés no monte Nebo; cf. Dt 34).

Quando viram Jesus, prostraram-se diante dele. Ainda assim alguns duvidaram. Então Jesus aproximou-se e falou: (vv. 17-18a).

Mt, conforme seu costume, diminui a narrativa e se concentra nas palavras. Não comunica detalhes da aparição, apenas que os discípulos “viram” Jesus (cf. vv. 7.10; 1Cor 9,1; Jo 20,18.25). Nesta aparição no monte, Mt resume várias aparições diante dos discípulos (cf. 1Cor 15,5-8; Lc 24,13-53; At 1,11; Jo 20,19-21,25).

“Prostraram-se diante dele” (cf. Lc 24,52), assim os discípulos reconhecem a majestade divina em Jesus na sua ressurreição (2,11; 14,33; 28,9; cf. Mt 8,2; 9,18; 15,25 e Tomé em Jo 20,28). “Ainda assim alguns duvidaram”, motivo tradicional dos relatos da ressurreição (cf. Lc 24,38; Jo 20,25). O ressuscitado pode aparecer como um estranho (Lc 24,15s; Jo 20,14; 21,4), ou como ilusão ou fantasma (Lc 24,39). A aproximação de Jesus (cf. 17,7) deve tirar as dúvidas e prepara suas palavras finais. A palavra do anúncio (kerigma) substitui aqui as provas de identidade do ressuscitado e deve tirar as dúvidas (cf. Lc 24,30s.39-42; Jo 20,20.27-29).

“Toda a autoridade me foi dada no céu e sobre a terra. Portanto, ide e fazei discípulos meus todos os povos, batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, e ensinando-os a observar tudo o que vos ordenei! Eis que eu estarei convosco todos os dias, até ao fim do mundo” (v. 18b-20).

As palavras finais de Jesus se compõem em três partes: declaração da soberania, envio dos apóstolos para evangelizar e batizar, promessa da presença permanente do ressuscitado.

De certo modo, o final de Mt se parece com o final da Bíblia Hebraica, o decreto de rei persa Ciro: “Assim Ciro, rei da Pérsia, decreta: Javé, o Deus do céu, entregou-me todos os reinos do mundo. Ele me encarregou de construir para ele um Templo em Jerusalém, na terra de Judá. Todo aquele que, dentre vós, pertence a todo o seu povo, que o seu Deus esteja com ele e que se dirija para lá”. (2Cr 36,22s; cf. 1Esd 2s).

2Cr é o último livro da Bíblia hebraica que tem outra sequência dos livros do que a nossa Bíblia (que inclui no AT também uns livros em grego). O final do evangelho de Mt se parece com este decreto de Ciro pelo seguinte: Jesus ressuscitado diz que toda autoridade no céu e na terra foi entregue a ele. Só em vez de convocar os judeus do exílio para a voltarem a Jerusalém, Jesus envia os apóstolos para direção oposta, para todos os povos pagãos, e afirma que Ele (igual a Deus) estará com eles até o fim do mundo. O templo reconstruído é o Cristo ressuscitado (Mt 26,61p; 27,39p; Jo 2,18-22) onde os cristãos sentem a presença divina.

Jesus recebeu plena parte da soberania ilimitada de Deus, da sua “autoridade/poder no céu e sobre a terra”; uma outorga que lembra também a visão de Daniel onde o ancião (Deus) dá ao “Filho do Homem, poder (autoridade), honra e o reino e todos os povos, nações e línguas o serviram. Seu reino é um reino eterno…” (Dn 7,13s). Este universalismo se estende ao envio dos apóstolos.

O envio inclui quatro atividades (verbos): ir, fazer discípulos, batizar e ensinar. Anteriormente os discípulos foram enviados apenas a Israel (10,5). Apesar da decepção com seu povo (cf. 24,9; 27,25), Jesus não exclui os judeus, mas aumenta o raio da missão para “todos os povos” (cf. 24,14; 25,32). Em vez de dizer “evangelizai”, diz aqui “fazei discípulos”, o que inclui o anúncio do evangelho, mas visa a criação de comunidades (a construção da Igreja, cf. 16,18) explicitada no batismo e no ensino.

O batismo invocando as três pessoas da Trindade (1Cor 13,13) já era costume e instituição nas comunidades de Mt (na Síria no fim do séc. I), em Lc e At batiza-se “em nome de Jesus” (cf. At 2,38 etc.). A menção do ensino após o batismo não quer dizer que se possa omitir o catecumenato antes do batismo, mas fala do acompanhamento e aprofundamento necessário. Este ensino não são apenas discursos espontâneos no Espírito, mas repetir, atualizar e praticar as palavras que Jesus pronunciou na terra: “observar tudo o que vos ordenei” (cf. 2Cr 33,8; Ex 34,32; Dt 4,2; 12,14). Para Mt, Jesus é mais do que um novo Moisés, mas representa Javé dando instrução como Deus (cf. 23,8.10).

Jesus está no lugar de Javé também na promessa solene: “Eis que eu estarei convosco todos os dias, até ao fim do mundo”. Javé havia prometido sua companhia a Israel todo ou a pessoas por ele enviado (cf. Gn 26,24; Ex 3,12; Dt 20,1.4; 31,6; Js 1,9; Jz 6,12.16; Is 41,10; 43,5). Aqui Jesus garante sua presença de ressuscitado no meio da comunidade, não como presença visível a ser contemplada, mas como força, ajuda e consolo no meio de dificuldades e perseguições que a comunidade há de esperar (e no tempo de Mt, passou mesmo).

No texto grego original não diz “estarei”, mas “estou convosco”, exprimindo continuidade, presença permanente estável. Estas últimas palavras substituem a narrativa da ascensão, mas não a perspectiva da parusia (volta de Cristo): “até ao fim do mundo”, quando Jesus voltar e sua presença oculta com os seus se manifestará em plenitude.

Jesus é o “Deus conosco”, no início, no meio e no final. Já no início do Evangelho de Mt, Jesus é apresentado como Emanuel (hebraico: Deus conosco, cf. 1,23; Is 7,14), também “no meio” do evangelho (18,20) e agora no final de Mt.

Voltar