30 de Março de 2020, Segunda-feira – Quaresma: Jesus ergueu-se e disse: “Quem dentre vós não tiver pecado, seja o primeiro a atirar-lhe uma pedra.” E tornando a inclinar-se, continuou a escrever no chão. E eles, ouvindo o que Jesus falou, foram saindo um a um, a começar pelos mais velhos (vv. 6b-9a).

5ª Semana da Quaresma 

Leitura: Dn 13,1-9.15-17.19-30.33-62 (ou versão breve 13,41c-62)

A leitura de hoje é uma das mais longas no ano litúrgico. A versão mais breve, porém, não revela toda a trama.

A história da salvação da bela Susana não está na Bíblia hebraica (e na dos protestantes). Ela encontra-se só no anexo grego do livro de Dn. Vários ingredientes contribuíram para sua popularidade: o tema com seu drama e seu resultado feliz, que é o triunfo da inocência; a descrição irônica da paixão de dois velhos e o processo de vingança; a figura do rapaz Daniel que salva a situação com um recurso bastante simples. Pode ter existido um original aramaico, que na origem não tinha nenhuma relação com o livro de Dn, mas o nome do herói bíblico (“Daniel” significa “Deus julga”) possibilitou a identificação e a inserção neste livro.

A Nova Bíblia Pastoral (p. 1107) comenta: A história de Susana remonta a um original semítico de crítica à corrupção dos governantes asmoneus e saduceus, ao relatar a vida de uma judia que segue os valores da cultura e é fiel à Lei de Moisés. Critica a apropriação do corpo da mulher e o abuso de poder das autoridades patriarcais. O relato é totalmente critico frente aos dois anciões e aliados, na qualidade de autoridades iníquas, que representam o patriarcalismo e seus mecanismos de dominação, e também o Sinédrio, autoridade sustentada pelos asmoneus e pela política econômica. Por sua vez, o povo e os outros anciãos reunidos em assembleia representam os fiéis à Lei de Moisés. Daniel é o jovem representado a voz da profecia, que resiste contra as autoridades oficiais, e por isso recebe o direito de ancianidade. No entanto, Susana depende unicamente da defesa que provém de Deus.

Na Babilônia vivia um homem chamado Joaquim. Estava casado com uma mulher chamada Susana, filha de Helcias, que era muito bonita e temente a Deus. Também os pais dela eram pessoas justas e tinham educado a filha de acordo com a lei de Moisés. Joaquim era muito rico e possuía um pomar junto à sua casa. Muitos judeus costumavam visitá-lo, pois era o mais respeitado de todos (vv. 1-4).

Susana transcreve a palavra hebraica por “lírio”, como Judite era “muito bela e temente a Deus” (cf. Jt 8,7s). Os pais dela eram “justos” (atributo frequente na literatura sapiencial, retomado no NT, por ex. José em Mt 1,18; Zacarias e Isabel em Lc 1,6; Simeão em Lc 2,25; Jesus em Lc 23,47 e José de Arimateia em 23,50). A “lei de Moisés” se tornou fundamento da vida judaica e princípio da educação. A situação confortável de Joaquim e de sua casa contraria a situação dos judeus no início do exílio e supõe uma longa permanência na Babilônia. De fato, nem todos voltaram depois do exílio, muitos permaneceram lá (cf. o Talmud babilônico, escrito judaico no séc. VI d.C., e a sinagoga de Duro Europos do séc. II e III na atual Síria)

Ora, naquele ano, tinham sido nomeados juízes dois anciãos do povo, a respeito dos quais o Senhor havia dito: “Da Babilônia brotou a maldade de anciãos-juízes, que passavam por condutores do povo.” Eles frequentavam a casa de Joaquim, e todos os que tinham alguma questão se dirigiam a eles. Ora, pelo meio-dia, quando o povo se dispersava, Susana costumava entrar e passear no pomar de seu marido. Os dois anciãos viam-na todos os dias entrar e passear, e acabaram por se apaixonar por ela. Ficaram desnorteados, a ponto de desviarem os olhos para não olharem para o céu, e se esqueceram dos seus justos julgamentos (vv. 5-9).

A cena acontece numa comunidade judaica pequena no exílio babilônico; não lhe falta o bem-estar regido por chefes locais (cf. Dt 1,9-18). Mas os dois anciãos, nomeados juízes, são retratados sem piedade: dois velhos apaixonados como rapazes (brincando de esconde-esconde como crianças, até confessarem um ao outro o mesmo desejo, vv. 10-14), mas abusando seu poder dentro da comunidade (a citação é de Jr 29,21-23). O “céu” (v. 9) designa Deus (cf. 4,23), os “seus justos julgamentos”, os mandamentos de Deus ou o modo pelo qual ele julga os maus.

Assim, enquanto os dois estavam à espera de uma ocasião favorável, certo dia, Susana entrou no pomar como de costume, acompanhada apenas por duas empregadas. E sentiu vontade de tomar banho, por causa do calor. Não havia ali ninguém, exceto os dois velhos que estavam escondidos, e a espreitavam. Então ela disse às empregadas: “Por favor, ide buscar-me óleo e perfumes e trancai as portas do pomar, para que eu possa tomar banho” (vv. 15-17).

O erotismo da cena lembra o começo do adultério de Davi com Betsabeia (2Sm 11,2ss).

Apenas as empregadas tinham saído, os dois velhos levantaram-se e correram para Susana, dizendo: “Olha, as portas do pomar estão trancadas e ninguém nos está vendo. Estamos apaixonados por ti: concorda conosco e entrega-te a nós! Caso contrário, deporemos contra ti, que um moço esteve aqui, e que foi por isso que mandaste embora as empregadas”. Gemeu Susana, dizendo: “Estou cercada de todos os lados! Se eu fizer isto, espera-me a morte; e, se não o fizer, também não escaparei das vossas mãos; mas é melhor para mim, não o fazendo, cair nas vossas mãos do que pecar diante do Senhor!” (vv. 19-23).

Pela Lei de Moisés, a pena da morte cai sobre os adúlteros flagrados, “tanto o homem como sua cúmplice” (Lv 20,10; Dt 22,22; cf. Jo 8,4s).

Então ela pôs-se a gritar em alta voz, mas também os dois velhos gritaram contra ela. Um deles correu para as portas do pomar e as abriu. As pessoas da casa ouviram a gritaria no pomar e precipitaram-se pela porta do fundo, para ver o que estava acontecendo. Quando os velhos apresentaram sua versão dos fatos, os empregados ficaram muito constrangidos, porque jamais se dissera coisa semelhante a respeito de Susana (vv. 24-27).

A calúnia dos sedutores mal sucedidos lembra a mulher de Putifar que acusou o honesto José no Egito para se salvar da sua própria tentativa de adultério (Gn 39,7-20).

No dia seguinte, o povo veio reunir-se em casa de Joaquim, seu marido. Os dois anciãos vieram também, com a intenção criminosa de conseguir sua condenação à morte. Por isso, assim falaram ao povo reunido: “Mandai chamar Susana, filha de Helcias, mulher de Joaquim”! E foram chamá-la. Ela compareceu em companhia dos pais, dos filhos e de todos os seus parentes. Os que estavam com ela e todos os que a viam, choravam. Os dois velhos levantaram-se no meio do povo e puseram as mãos sobre a cabeça de Susana. Ela, entre lágrimas, olhou para o céu, pois seu coração tinha confiança no Senhor (vv. 28-30.33-35).

A liturgia de hoje saltou os vv. 31-32 em que os dois anciãos ordenaram que fosse tirado o véu de Susana (cf. 1Cor 11,2-16). “Puseram a mão sobre a cabeça de Susana” (v. 34). Em Lv 24,14, a comunidade maculada pelo crime purifica-se pela lapidação do culpado, sobre o qual se põe a mão como sobre um animal que substitui a comunidade num sacrifício (Lv 16,21).

Entretanto, os dois anciãos deram este depoimento: “Enquanto estávamos passeando a sós no pomar, esta mulher entrou com duas empregadas. Depois, fechou as portas do pomar e mandou as servas embora. Então, veio ter com ela um moço que estava escondido, e com ela se deitou. Nós, que estávamos num canto do pomar, vimos esta infâmia. Corremos para eles e os surpreendemos juntos. Quanto ao jovem, não conseguimos agarrá-lo, porque era mais forte do que nós e, abrindo as portas, fugiu. A ela, porém, agarramos, e perguntamos quem era aquele moço. Ela, porém, não quis dizer. Disto nós somos testemunhas”. A assembléia acreditou neles, pois eram anciãos do povo e juízes. E condenaram Susana à morte. Susana, porém, chorando, disse em voz alta: “Ó Deus eterno, que conheces as coisas escondidas e sabes tudo de antemão, antes que aconteça! Tu sabes que é falso o testemunho que levantaram contra mim! Estou condenada a morrer, quando nada fiz do que estes maldosamente inventaram a meu respeito!” O Senhor escutou sua voz (vv. 36-44).

Susana reza em alta voz (vv. 42-43; cf. Pr 15,3; Sl 7,10; 17,3; 27,12; 33,13-15; 120,2; Hb 4,13) a Deus que conhece as coisas escondidas (cf. Sl 139). E o Senhor escuta sua voz (v. 44).

Enquanto a levavam para a execução, Deus excitou o santo espírito de um adolescente, de nome Daniel. E ele clamou em alta voz: “Sou inocente do sangue desta mulher!” Todo o povo então voltou-se para ele e perguntou: “Que palavra é esta, que acabas de dizer?” De pé, no meio deles, Daniel respondeu: “Sois tão insensatos, filhos de Israel? Sem julgamento e sem conhecimento da causa verdadeira, vós condenais uma filha de Israel? Voltai a repetir o julgamento, pois é falso o testemunho que levantaram contra ela!” Todo o povo voltou apressadamente, e outros anciãos disseram ao jovem: “Senta-te no meio de nós e dá-nos o teu parecer, pois Deus te deu a honra da velhice” (vv. 45-50).

Deus intervém suscitando o “santo espírito” (cf. 5,12) de um adolescente de nome Daniel que evoca a figura de Samuel, que era jovem e depois tornou-se juiz em Israel (1Sm 3; 7,15-17). Seu grito chama atenção: “Sou inocente do sangue dessa mulher!” (vv. 44-47; cf. Mt 27,24s: Pilatus; At 18,6: Paulo). O grito do rapaz atravessa a multidão como protesto crítico, contra a perversidade de uns e a leviandade de outros; é uma voz profética diante dos chefes institucionais e uma comunidade complacente. O tribunal dos “outros anciãos” (v. 50; vindos de outras cidades) contradiz em certo sentido o v. 5 onde os dois velhos são os próprios juízes na casa de Joaquim (v. 28). Disseram ao jovem: “Senta-te no meio de nós e dá-nos o teu parecer, pois Deus te deu a honra da velhice (o privilégio de anciões)” (v. 50). “Velhice venerável não é longevidade” (Sb 4,8s; cf. Eclo 25,3-6).

Falou então Daniel: “Mantende os dois separados, longe um do outro, e eu os julgarei.” Tendo sido separados, Daniel chamou um deles e lhe disse: “Velho encarquilhado no mal! Agora aparecem os pecados que estavas habituado a praticar. Fazias julgamentos injustos, condenando inocentes e absolvendo culpados, quando o Senhor ordena: ‘Tu não farás morrer o inocente e o justo!’ Pois bem, se é que viste, dize-me à sombra de que árvore os viste abraçados?” Ele respondeu: “É sombra de uma aroeira.” Daniel replicou “Mentiste com perfeição, contra a tua própria cabeça. Por isso o anjo de Deus, tendo recebido já a sentença divina, vai rachar-te pelo meio!” Mandando sair este, ordenou que trouxessem o outro: “Raça de Canaã, e não de Judá, a beleza fascinou-te e a paixão perverteu o teu coração. Era assim que procedíeis com as filhas de Israel, e elas por medo sujeitavam-se a vós. Mas uma filha de Judá não se submeteu a essa iniquidade. Agora, pois, dize-me debaixo de que árvore os surpreendeste juntos?” Ele respondeu: “Debaixo de uma azinheira.” Daniel retrucou: “Também tu mentiste com perfeição, contra a tua própria cabeça. Por isso o anjo de Deus já está à espera, com a espada na mão, para cortar-te ao meio e para te exterminar!” (vv. 51-59).

Daniel interroga os anciões separadamente, e seus depoimentos contraditórios revelam sua mentira (cf. Eclo 25,2). O castigo pronunciado em grego tem seu parecido com os nomes das árvores correspondentes (cf. vv. 54-55.58-59). A distinção entre “filhas de Israel” e “filha de Judá” indica uma tensão entre os habitantes do antigo território de Israel e os judeus como havia após o cisma dos samaritanos contra os quais o texto polemiza indiretamente (vv. 56-57). O terrível castigo de “rachar/cortar ao meio” encontra-se também em Lc 12,46.

Toda a assistência pôs-se a gritar com força, bendizendo a Deus, que salva os que nele esperam. E voltaram-se contra os dois velhos, pois Daniel os tinha convencido, por suas próprias palavras, de que eram falsas testemunhas. E, agindo segundo a lei de Moisés, fizeram com eles aquilo que haviam tramado perversamente contra o próximo. E assim os mataram, enquanto, naquele dia, era salva uma vida inocente (vv. 60-62).

Já na lei de Moisés, “uma testemunha não é suficiente … A causa será estabelecida pelo depoimento de duas ou três testemunhas” (Dt 19,15; cf. 17,2-7). O que Daniel exemplificou, era interrogá-las separadamente para descobrir uma incoerência ou contradição de falsas testemunhas. “Agindo segundo a lei de Moises, fizeram com eles aquilo que havia tramado perversamente contra o próximo” (v. 61; cf. Dt 19,18s). No livro de Est, o vilão Amã que tramava matar o povo judeu, foi enforcado depois da descoberta da sua intriga (cf. Est 9,24s).

Susana experimentou que a verdade e fidelidade prevalecem (Sl 85,11s) e que Deus defende os justos enviando ajuda, um “jovem”, desta vez não um anjo, mas um ser humano, cujo nome significa “Deus julga” (Dani-El). Daniel que tem uma consciência sadia, não manchada nem inflada, através da qual Deus volta a tomar posse de seu povo. Outro jovem revelará a justiça de Deus através da sua cruz e ressurreição, renovando a aliança de Deus para com seu povo. Na sua regra para os monges, S. Bento recomenda que o superior deva ouvir também o a opinião de um jovem, não só o conselho dos velhos.

 

Evangelho: Jo 8,1-11 (ou opcional: Jo 8,12-20, ano C)

É hoje opinião corrente que este relato sobre a adúltera perdoada é inserção posterior em Jo. A linguagem em parte não é de João; o texto falta nos manuscritos antigos; alguns manuscritos o colocam depois de Lc 21,38. Contudo, o relato é canônico, ou seja, faz parte do NT inspirado, conserva a recordação de um episódio de Jesus, e é uma jóia literária e religiosa. S. Jerônimo o acolheu na sua tradução em latim (Vulgata), assim se espalhou no ocidente.

Jesus foi para o monte das Oliveiras. De madrugada, voltou de novo ao templo. Todo o povo se reuniu em volta dele. Sentando-se, começou a ensiná-los (vv. 1-2).

A cena se desenrola publicamente, no templo, onde Jesus costuma ensinar (18,20). A cena e o estilo combinam muito melhor com os evangelhos sinóticos (cf. Mc 11,11s.19s.27; 14,49; Lc 19,47-20,1; 21,37): o “monte das Oliveiras” (só aqui em Jo; cf. 18,1), a volta ao templo noutro dia, onde ensina sentado (Mc 4,1s; Mt 5,1s etc.; em Jo, Jesus fica mais de pé, cf. 7,37) com o povo em volta, os detalhes do diálogo sem o dualismo joanino, o perdão à mulher pecadora pela palavra de Jesus (cf. Lc 7,36-50).

Entretanto, os mestres da Lei e os fariseus trouxeram uma mulher surpreendida em adultério. Colocando-a no meio deles, disseram a Jesus: “Mestre, esta mulher foi surpreendida em flagrante adultério. Moisés na Lei mandou apedrejar tais mulheres. Que dizes tu?” Perguntavam isso para experimentar Jesus e para terem motivo de o acusar (vv. 3-6a).

O conjunto “mestres da lei e fariseus” (ou: letrados do partido dos fariseus) é sinótico (Jo não costuma mencionar os mestres da lei, mas diz logo “os judeus”). Eles apresentam ao “mestre” um caso legal prático, provavelmente com intenção capciosa (como a moeda de César, Mc 12,13-17p; cf. Lc 6,7; Jo 6,6). Não lhe pedem uma sentença forense (o mestre não é juiz), mas um parecer sobre a aplicação da lei mosaica (não de uma observância qualquer) a um caso particular. Isso pressupõe que os interlocutores viram Jesus distanciar-se da lei ao perdoar pecados. A pergunta pode equivaler: nós a surpreendemos em flagrante adultério; devemos levá-la ao tribunal competente ou a executamos sem mais? (cf. Gn 38; Dt 17,7).

A Lei de Moisés decreta pena de morte para adúlteros (Lv 20,10: homem e mulher; Dt 22,22: apedrejar ambos), pena de morte por lapidação para a prometida ou desposada, infiel ao homem a quem legitimamente pertence, embora ainda não conviva com ele (Dt 22,21; cf. Mt 1,19). Ez 16,38-40 menciona a lapidação como pena normal das adúlteras. No plano simbólico, muitos textos do AT apresentam Javé Deus como esposo que perdoa e reconcilia consigo a mulher infiel: Samaria (Os 2) ou Jerusalém (Is 1,21-26; 49; 54; Ez 16).

No tempo de Jesus, os romanos se reservavam para si o direito de condenar à morte (cf. 18,31). Os fariseus queriam linchar a pecadora (cf. At 7,58: Estevão)? Parece que não há saída desta pergunta armadilha: Se Jesus concordasse com a lei de Moisés neste sentido, estaria contrariando sua própria misericórdia para com os pecadores (cf. Lc 15,1s) e se colocando ainda contra Roma. Se ele não concordasse com a aplicação da Lei de Moisés, estaria contra a vontade de Deus no Antigo Testamento (cf. Mc 12,13.15).

Mas Jesus, inclinando-se, começou a escrever com o dedo no chão. Como persistissem em interrogá-lo, Jesus ergueu-se e disse: “Quem dentre vós não tiver pecado, seja o primeiro a atirar-lhe uma pedra.” E tornando a inclinar-se, continuou a escrever no chão. E eles, ouvindo o que Jesus falou, foram saindo um a um, a começar pelos mais velhos (vv. 6b-9a).

Jesus, em lugar de dar logo uma resposta verbal, escreve no chão, depois responde e continua a escrever. O que escreveu? O narrador não diz, mas os comentaristas encontraram amplo campo para conjecturas: algum texto da legislação penal (costume romano de escrever a sentença e depois pronunciá-la), os nomes dos que “se afastam do Senhor, estarão escritos na terra” (Jr 17,13), os pecados das pessoas presentes e da humanidade, ou simplesmente rabiscos. De fato, este gesto é um recurso narrativo, como que tomando tempo para refletir (v. 6) e na segunda vez (v. 8), como que esperando que os “impecáveis” executassem a sentença.

Mas podemos lembrar que Deus escreveu com seu dedo os dez mandamentos na pedra (Ex 31,18). Jesus escreve com seu dedo no pó da terra. A Lei ao pé da letra não basta (cf. a nova aliança em Jr 31,31-34; Ez 11,19s; 36,26s). Paulo escreveu: “A letra mata, o Espirito comunica a vida” (2Cor 3,6).

A resposta de Jesus (v. 7: “Quem estiver sem pecado …”) não se refere à situação jurídica (houve inquérito?) nem às leis do AT (cf. Dt 13,10; 17,7: as testemunhas deviam ser os primeiros a atirar pedras, depois o povo) nem à situação política (privilégio dos romanos de condenar à morte). Jesus questiona a situação dos que o interrogam: Eles têm direito de julgar em nome do AT ou são pecadores também (cf. Mt 5,27s)? São eles realmente pessoas melhores (cf. Lc 13,1-5)? Este argumento talvez não convencesse fariseus, mas reflete a missão cristã anunciando o juízo de Deus sobre todas as pessoas (Rm 1,18; 3,9-18).

Com a atitude serena e soberana de Jesus se desprende uma força que desmascara (“colocaste nossos segredos ante a luz da tua face”, Sl 90,8), uma indignação que os faz “retroceder confusos”, “voltar atrás envergonhados” (Sl 70,3-4; 129,5). Há outro “adultério”, mais grave, a infidelidade dos dirigentes a seu Deus, denunciada pelos profetas (cf. Os 2; Jr 2-3; Ez 16; 23).

Jesus continua a escrever para sua palavra surtar efeito no tempo (cf. o autoconhecimento do oráculo de Délfi: “Conheça-te a ti mesmo”). Os que saem primeiro são os mais velhos (anciãos do sinédrio como o fariseu Nicodemos, cf. 3,1s.4; ou simplesmente: os mais sábios com mais experiência de vida).

E Jesus ficou sozinho com a mulher que estava lá, no meio do povo. Então Jesus se levantou e disse: “Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou?” Ela respondeu: “Ninguém, Senhor.” Então Jesus lhe disse: “Eu também não te condeno. Podes ir, e de agora em diante não peques mais” (vv. 9b-11).

Ficaram só Jesus e a pecadora “no meio” (o texto grego não diz: “do povo”, v. 9b). Stº. Agostinho comentou: “Restaram só dois, a miserável e o misericordioso.” Resta ainda esclarecer a posição requerida de Jesus a respeito desta pecadora flagrada. A cena não é apenas uma controvérsia com os escribas, mas um problema pastoral que só se resolve pela palavra de Jesus (vv. 7b.11).

Agora Jesus toma iniciativa, porque a solução do caso não pode ser: porque todos são pecadores, todos são isentos? (cf. Mt 7,1-5), mas: todos são pecadores e necessitam de conversão e perdão; nova vida só é possível na base do perdão (cf. Lc 15; Mt 18 e a tradição batismal em 1Cor 6,9-11; cf. “de agora em diante” em relação à vida anterior de pecado em Rm 6,19.21; 8,1; 1Cor 7,14; 2Cor 5,16; 6,2; Ef 5,8; 1Pd 2,10.15). Mas a graça divina exclui o pecado (Rm 6,1), por isso a palavra final: “Não peques mais”.

Na vida de Davi há um caso judicial notável (2Sm 14): o rei tem que sentenciar se deve condenar um réu homicida ou perdoá-lo (sem saber que se trata do seu próprio filho culpado, Absalão). A lei foi feita para o homem (e a mulher), e Jesus não veio para julgar (condenar) e sim para salvar (3,17; 12,47). A salvação dessa mulher está no perdão e na emenda (Ez 16,63).

O site da CNBB comenta: Quando falamos em pecado, sempre nos referimos aos pecados que os outros cometeram, jamais aos nossos, porque os outros precisam ser condenados pelos seus erros e nós somos diferentes, precisamos ser compreendidos. Quando fazemos isso, geralmente escondemos dos outros a face amorosa e misericordiosa de Deus, porque esta face é só para nós, e lhes mostramos um Deus que pune e é vingativo, que quer o castigo de todos, e esta face não é para nós. Com isso, nos tornamos um obstáculo para a conversão dos outros e, em consequência disso, Deus não agirá com misericórdia e amor conosco.

Opcional: Jo 8,12-20 (quando no Ano C se lê 8,1-11 no 5º domingo da Quaresma)

Depois do acréscimo posterior (vv. 1-11), o evangelho continua na linguagem típica de Jo: Jesus revela a sua própria pessoa como salvação exclusiva (“Eu sou …”; cf. 6,35; 8,12; 10,7.9.11.14; 11,25s; 14,6; 15,1.5) e universal (“do mundo”); questionado, se defende depois contra os adversários.

De novo, lhes Jesus falava: “Eu sou a luz do mundo. Quem me segue, não andará nas trevas, mas terá a luz da vida” (v. 12).

Um dos ritos da “festa das Tendas” (7,2) consistia em acender vários candelabros num átrio do templo. Jesus apresenta-se como “luz do mundo” (v. 12), não só de Israel. A luz revela as formas e permite a visão (Jó 38,12-14), é por isso que é símbolo de conhecimento. Além disso, é vida. Embora a expressão “luz da vida” (ou luz viva, que não é preciso alimentar periodicamente, à semelhança da água da vida/viva que mana sempre) não seja frequente (Sl 56,14; Jo 33,30), a idéia é comum, já que viver é “ver a luz do dia”, e o parto é “dar à luz”. A luz é um dos símbolos mais ricos e frequentes para falar de Deus e do divino (cf. Sl 27,1; 36,9-10). A luz é a primeira criação (Gn 1,3) e anuncia a ressurreição (Mt 28,1p; cf. 2Cor 4,6; Ef 4,8-14).

No evangelho de João, há uma tendência dualista: o símbolo atrai seu oposto, as “trevas”, morte física (Jó 10,20-22) e morte do espírito. A luz se impõe com sua evidência, não precisa de demonstrações, mas a pessoa pode fechar os olhos à luz (cf. 3,19-21; cap. 9). “Seguir” Jesus é caminhar atrás dele, corresponde ao hebraico “ir atrás de” e significa a total adesão à pessoa de Jesus. É um convite a seguir a Jesus e escapar das trevas da morte (cf. 12,35s)

A Bíblia de Jerusalém (p. 2006) anota a respeito da luz: “No NT, o tema da luz desenvolve-se através de três linhas principais, mais ou menos distintas.

  1. Como o sol ilumina uma estrada, também é luz tudo o que ilumina o caminho para Deus: outrora, a Lei, a Sabedoria e a Palavra de Deus (Ecl 2,13; Pr 4,18-19; 6,23; Sl 119,105); agora, o Cristo (Jo 1,9; 9,1-39; 12,35; 1Jo 2,8-11: cf. Mt 17,2; 2Cor 4,6), comparável a Nuvem luminosa do Êxodo (Jo 8,12; cf. Ex 13,21s; Sb 18,3s); finalmente todo cristão, que manifesta Deus aos olhos do mundo (Mt 5,14-16; Lc 8,16; Rm 2,19; Fl 2,15; Ap 21,24).
  2. A luz é símbolo da vida, felicidade e alegria; as trevas, símbolo de morte, desgraças e lágrimas (Jó 30,26; Is 45,7; cf. Sl 17,15); às trevas do cativeiro se opõe, portanto a luz da libertação e da salvação messiânica (Is 8,22-9,1; Mt 4,16; Lc 1,79; Rm 13,11-12), atingindo até nações pagãs (Lc 2,32; At 13,47), através de Cristo-Luz (Jo – cf. os textos citados acima; Ef 5,14), para se consumar no Reino dos Céus (Mt 8,12; 22,13; 25,30; Ap 22,5; cf. 21,3-4).
  3. O dualismo luz-trevas vem caracterizar, por isso, os dois mundos opostos do Bem e do Mal (cf. os textos essênios de Qumrã). No NT, aparecem os dois reinos sob os respectivos domínios de Cristo e de Satanás (2Cor 6,14-15; Cl 1,12-13; At 26,18; 1Pd 2,9), um pelejando por vencer o outro (Lc 22,53; Jo 13,27-30). Os homens se dividem em filhos da luz e filhos das trevas (Lc 16,8; 1Ts 5,4; Ef 5,5-7; Jo 12,36), conforme vivam sob o influxo da luz (Cristo) ou das trevas (Satanás) (Mt 6,23; 1Ts 5,4s; 1Jo 1,6-7; 2,9-10), e se fazem reconhecer por suas obras (Rm 13,12-14; Ef 5,8-11). Essa divisão (julgamento) entre os homens tornou-se manifesta com a vinda da Luz, obrigando cada um a se definir a favor ou contra ele (Jo 3,19-21; 7,7; 9,39; 12,46; cf. Ef 5,12-13). A perspectiva é otimista: as trevas, um dia, terão de ceder lugar à luz (Jo 1,5; 1Jo 2,8; Rm 13,12).

Então os fariseus disseram: “O teu testemunho não vale, porque estás dando testemunho de ti mesmo” (v. 13).

Jesus se declarou salvador (luz do mundo), mas os fariseus questionam se é legitimo. Não se discute o conteúdo (a “luz” podia ser substituída por água, verdade, etc.), indício de que v. 12 já era provérbio tradicional inserido por Jo. As palavras “Eu sou…” remetem à comunicação antiga por mensageiros. O enviado precisava se apresentar e legitimar (“Eu vim para …”, “Eu sou …” cf. Tb 12,14-18).

Jesus respondeu: “Ainda que eu dê testemunho de mim mesmo, o meu testemunho é válido, porque sei de onde venho e para onde vou. Mas vós não sabeis donde venho, nem para onde vou. Vós julgais segundo a carne, eu não julgo ninguém, e se eu julgo, o meu julgamento é verdadeiro, porque não estou só, mas comigo está o Pai, que me enviou. Na vossa Lei está escrito que o testemunho de duas pessoas é verdadeiro. Ora, eu dou testemunho de mim mesmo e também o Pai, que me enviou, dá testemunho de mim.” (vv. 14-18).

Sobre o testemunho de Jesus, cf. 5,31-37 (comentário de 5ª feira da semana passada). Na “vossa lei” (Jo já se distancia do AT), apenas o testemunho coerente de duas pessoas é aceito (v. 17; cf. Dt 19,15 e a leitura de hoje). Jesus, porém, só pode testemunhar de si mesmo, porque ele é o único que pode revelar Deus num mundo de escuridão (cf. 1,18; 5,37; 6,46). Só se pode acessar e conhecer o Pai através do Filho (cf. Mt 11,27p; Jo 14,6), portanto, fora desta revelação não há legitimação. A legitimação de Jesus é sua união com o Pai (v. 16).

A descrença não aceita isso. As autoridades judaicas não podem aceitar o testemunho de Jesus, porque julgam “segundo a carne” (v. 15; cf. 3,6; 6,63), “segundo as aparências” (7,24) e não conhecem o Pai, que dá testemunho de Jesus (vv. 17-19); assim continuam nas trevas, na ignorância sobre a origem e o destino de Jesus, sobre o próprio Pai. Jesus, porém, julga verdadeiro, porque em união com o Pai. Jesus não julga ninguém (v. 15b), seu ofício é salvar (cf. 3,17s), mas sua presença no mundo leva ao “julgamento verdadeiro” (porque em união com o Pai, cf. v. 16): conforme as pessoas se posicionam a ele, terão luz e vida ou não terão.

Perguntaram então: “Onde está o teu Pai?” Jesus respondeu: “Vós não conheceis nem a mim, nem o meu Pai. Se me conhecêsseis, conheceríeis também o meu Pai” (v. 19).

Não houve progresso no diálogo, mas só posicionamento entre Jesus e os fariseus. A pergunta “onde está o teu Pai” remete à pergunta inicial sobre a legitimação. Na última ceia, Filipe disse: “Mostra-nos o Pai, e isso nos basta”. Jesus lamenta: “Há tanto tempo já estou convosco e tu não me conheces … Quem me vê, vê o Pai … Crede-me: eu estou no Pai e o Pai está em mim” (14,9-11).

Jesus disse estas coisas, enquanto estava ensinando no templo, perto da sala do tesouro. E ninguém o prendeu, porque a hora dele ainda não havia chegado (v. 20).

Jesus estava falando no pátio onde também as mulheres tinham acesso, perto da tesouraria (cf. Mc 12,41.43; Lc 21,1). Ninguém prendeu ainda Jesus, “porque a hora dele ainda não havia chegado” (v. 20; cf. 2,4; 7,6.30.44; 13,1).

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