30 de Setembro 2019, Segunda-feira:  “Quem receber esta criança em meu nome estará recebendo a mim. E quem me receber estará recebendo aquele que me enviou. Pois aquele que entre todos vós for o menor, esse é o maior” (vv. 47b-48).

26ª Semana do Tempo do Comum 

Leitura: Zc 8,1-8

Continuamos na leitura do profeta Zacarias e ouvimos hoje o início de um conjunto de dez oráculos de encorajamento, promessas que dão força para enfrentar o futuro. Todas elas se referem à salvação messiânica, descrita como uma era de felicidade simples e tranquila, sob a bênção de Javé, presente em Sião. Desse modo, o profeta Zacarias procura estimular os construtores desencorajados, diante das tarefas que devem realizar (terminar a reconstrução do templo destruído em 586 pelos babilônios). Todavia, os oráculos também anunciam para o futuro a nova Aliança que se estabelecerá entre Deus e os homens (v. 8). Por outro lado, o profeta também frisa que o futuro a ser construído depende da prática da justiça no presente (vv. 16-19).

A palavra do Senhor dos exércitos foi manifestada nos seguintes termos: (v.1).

A introdução sem mencionar o destinatário é incomum; a atuação de Zacarias se deu no mesmo período do profeta Ageu, em 520-518 a.C. (cf. 1,1; 7,1; Ag 1,1).

Isto diz o Senhor dos exércitos: Tomei-me de forte ciúme por Sião, consumo-me de zelo ciumento por ela. Isto diz o Senhor: Voltei a Sião e habitarei no meio de Jerusalém; Jerusalém será chamada Cidade Fiel, e o monte do Senhor dos exércitos, Monte Santo (vv. 2-3).

Javé dos exércitos (traduzido muitas vezes por “Senhor todo-poderoso”, o termo aparece em 1Sm, ligado a arca da aliança) está cheio de paixão pelo seu povo, com “forte ciúme de Sião”; é expressão do Deus único, cujo amor não tolera rivais (1,14; cf. Os 11,8; Is 54,7). Seu amor é matrimonial porque fez uma aliança com Israel. Não é ciúme com relação aos homens, mas a outros deuses, aos quais queriam associá-lo (cf. Ex 20,5; 34,14).

“Voltei a Sião e habitarei no meio de Jerusalém” (cf. 2,14), a volta do Senhor prolonga um tema de Jeremias, Ezequiel e Segundo Isaías, dando esperança depois do abandono sentido no exílio (cf. Is 54,6-8). “Cidade Fiel” é título tomado de Is 1,21.26 (cf. 62,12) e significa fidelidade matrimonial, resposta ao amor do Senhor. Os novos nomes exprimem uma mudança interior operada e a reentrada em graça junto de Deus. “Sião” é o morro (”monte santo”) onde foi Jerusalém foi construído (2Sm 5,6s; 1Rs 8,1; Sl 2,6; 14,7; 48,3.14s; 69,36; 87,2; Is 2,2s); a partir do pós-exílio torna-se símbolo da salvação (cf. no NT: Hb 12,22; Ap 14,1; 1Pd 2,6).

Isto diz o Senhor dos exércitos: Velhos e velhas ainda se sentarão nas praças de Jerusalém, cada qual com seu bastão na mão, devido à idade avançada; as praças da cidade se encherão de meninos e meninas a brincar em suas praças (vv. 4-5).

Zc apresenta uma cena aprazível e sugestiva, mas rara em nossas cidades: as idades extremas convivem pacificamente em Jerusalém, os anciãos com o bastão na mão e as crianças brincando nas praças (cf. Jr 31,13 e o fundo contrastante de Lm 2,10.21 que lamenta a queda e destruição de Jerusalém pelos babilônios em 586 a.C.).

Os habitantes de Jerusalém poderão alcançar uma velhice feliz graças a um longo período de paz e prosperidade. Estando o Senhor na cidade, a paz e a serenidade vão reinar em todos os cantos. Para ilustrar a idéia de paz e segurança na cidade, o profeta traz duas imagens eloquentes: a primeira, os idosos e as idosas ainda se sentarão nas praças de Jerusalém, cada qual com o seu bastão na mão, devido à idade avançada. Se as pessoas estão vivendo muitos anos e porque a situação social está boa, os bens e as riquezas estão circulando. A segunda, as praças da cidade se encherão de meninos e meninas a brincar. Quando a paz e segurança são grandes, a alegria das cidades é celebrada pelos jovens, brincando e dançando nas praças. Para as cidades brasileiras, essas imagens são raras. As nossas praças se tornaram cenários de guerra e de violência. Essas são imagens da cidade celeste, não das cidades atuais.

Isto diz o Senhor dos exércitos: Se tais cenas parecerem difíceis aos olhos do resto do povo, naqueles dias, acaso serão também difíceis aos meus olhos? – diz o Senhor dos exércitos (v. 6).

O “resto do povo” são os exilados e repatriados que ficavam desanimados e incrédulos. A pergunta engloba e sustenta qualquer promessa, também as maravilhosas do Segundo Isaías (Is 40-55), que só se cumpriram em parte (volta do exílio). O que excede ao homem, não excede a Deus, a começar pela descendência do velho Abraão (Gn 18,14; cf. Sl 118,23; Is 50,2; 55,8-11; Jr 32,17.27; Lc 1,37).

Isto diz o Senhor dos exércitos: Eis que eu vou salvar o meu povo da terra do oriente e da terra do pôr-do-sol: eu os conduzirei, e eles habitarão no meio de Jerusalém; serão meu povo e eu serei seu Deus, em verdade e com justiça (vv. 7-8).

Será o segundo ou um terceiro êxodo? O primeiro foi a libertação da escravidão do Egito, o segundo a volta do exílio (cativeiro, desterro) da Babilônia.

O texto não menciona Babilônia nem o país do norte; os dispersos se encontram nas terras “do nascer e do pôr-do-sol”, ou seja, no oriente e no ocidente (v. 7; cf. Is 60,1-9). Não se trata de apenas, dos cativos da Babilônia (como em 2,10s), mas de todos os judeus dispersos no mundo. Sua volta será seguida da renovação da Aliança (cf. Jr 31,31), como indica a fórmula da aliança: “serão meu povo e eu serei seu Deus” (cf. Dt 26,16-19; 27,9; 28,9; Jr 30,22; 31,33 etc.).

A fórmula clássica da aliança – “serão meu povo e eu serei seu Deus” – se reforça com uma expressão adverbial, “na fidelidade e na justiça”, que admite diversas interpretações e reciprocidade: Serei seu Deus “autêntico e legítimo”, e como tal me reconhecerão; serei leal cumpridor de meus compromissos, e eles o serão dos seus; nossas relações serão leais e estáveis. Em hebraico, o contrário de “justiça” é “maldade” (iniquidade; característica da Babilônia, cf. 5,5-11), autêntico (verdade, fidelidade) se opõe a “falsidade”, palavra que designa o falso testemunho (5,1-4).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 984) comenta: Deus toma a iniciativa de restabelecer a aliança, baseada “na fidelidade e na justiça” e que constitui por um lado uma exigência moral feita ao povo (1Rs 3,6; Jr 4,2), e por outro, uma garantia que Deus dá por sua conta própria (Is 11,5; Sl 19,10; 85,14).

Evangelho: Lc 9,46-50

Lc continua copiando uma sequência de Mc (desde Mc 8,27). Como em Mc, os discípulos não reagem com compreensão aos anúncios da paixão, mas esperam por um messias grande, um rei triunfante em vez de um servo sofredor (Is 53).

Houve entre os discípulos uma discussão para saber qual deles seria o maior. Jesus sabia o que estavam pensando. (vv. 46-47a).

Lc dispensa os detalhes de Mc (caminho e casa em Cafarnaum). Os discípulos não compreenderam o segundo anúncio da paixão de Cristo (vv. 43b-45, evangelho de sábado passado)), eles continuam com a mentalidade e critérios humanos, disputando o primeiro lugar, talvez a frente dos três apóstolos preferidos (cf. 5,10; 8,51; 9,28 etc.) ou em lugar de Pedro (cf. Mc 10,35s). Os discípulos ainda são filhos deste mundo e da mentalidade de concorrência e poder que estão nele instaurada.

Em Mc, Jesus pergunta sobre a conversa e os discípulos ficam calados; em Mt, os discípulos perguntam sobre a questão; em Lc, Jesus já “sabia” da “discussão” (lit: “uma questão que lhes veio ao espírito”). Mas para compreender o messianismo de Jesus é preciso mudar a ideia que se tem a respeito do poder. Enquanto persistir entre os discípulos o desejo do poder que domina, não haverá possibilidade alguma de construir o Reino de Deus.

Pegou então uma criança, colocou-a junto de si e disse-lhes: “Quem receber esta criança em meu nome estará recebendo a mim. E quem me receber estará recebendo aquele que me enviou. Pois aquele que entre todos vós for o menor, esse é o maior” (vv. 47b-48).

Em Lc, Jesus coloca uma criança “junto de si” (em Mc e Mt: “no meio deles”) e a identifica com consigo mesmo e com o Pai (cf. Mt 18,1-5; Jo 12,44; 13,20).

A Bíblia do Peregrino (p. 2488) comenta: Ao verem o êxito do exorcismo depois da transfiguração, todos tinham admirados “a grandeza” de Deus (v. 43). Pois bem, a grandeza se acede pela pequenez do menino, pela humildade de Jesus. É frequente no AT essa preferência de Deus pelo pequeno (cf. 1Sm 16,5-13; o menino de Is 11,6) … Um menino, que por si só não se vale, que não conta naquela sociedade, é colocado no lugar mais próximo de Jesus. Pelo serviço ao menino, em atenção a Jesus, serve-se a Jesus; servindo a Jesus serve-se ao Pai.

Identificando-se com uma criança quer dizer que não tem nenhuma pretensão, ele sendo o Mestre e o Senhor (Jo 13,12-16). Em Lc 22,26, Jesus repete a mesma frase na última ceia. Os discípulos imitam o Mestre quando não se impõem, nem procuram grandezas, mas dão preferência aos pequenos e fracos. Acolher uma criança ganha uma motivação extraordinária.

Na sociedade antiga, crianças não estavam no centro da atenção, tinham pouco valor, porque não podiam ainda contribuir igual aos adultos. Os romanos jogavam crianças indesejadas no lixo! Jesus, porém, coloca a criança “junto de si” e identifica-se com ela. Enquanto nas outras religiões, é o ancião que é valorizado por sua sabedoria, na religião crista também é a criança que ganha valor, porque o próprio Jesus se fez pequeno e servo e apresentou a humildade de crianças como exemplo de fé (18,15-17p). Daí também o empenho da Igreja pela vida (contra aborto) e suas instituições como orfanatos, creches, escolas, pastoral da criança, pastoral do menor etc.

João disse a Jesus: “Mestre, vimos um homem que expulsa demônios em teu nome. Mas nós o proibimos, porque não anda conosco.” Jesus disse-lhe: “Não o proibais, pois quem não está contra vós, está a vosso favor” (vv. 49-50).

Não só o desejo de conseguir os primeiros lugares, querer ser o primeiro entre os discípulos, é um obstáculo de entender e seguir o caminho de Jesus à cruz, mas também o fechamento e falta de generosidade como demonstra a continuação do Evangelho hoje. É um problema que surge nas primeiras comunidades que precisam definir sua identidade de cristãos: quem faz parte e quem não faz. A pergunta de João se refere a exorcistas profissionais, talvez itinerantes, que, conhecida a fama de Jesus, invoca seu nome nos exorcismos. Aos discípulos isso parece um abuso (como pôr num produto uma marca famosa). Jesus responde com uma declaração de tolerância. Mas há de completar com outra declaração em 11,23 (cf. Mt 12,30): “Quem não está a meu favor, está contra mim. E quem não ajunta comigo, dispersa.” Mas não há contradição, porque o texto de hoje fala da tolerância na Igreja (“nós”), enquanto em 11,23 se trata da mediação única (único caminho) da sua pessoa (“comigo”).

O caso é semelhante ao de Josué e Moisés, narrado em Nm 11: os ciúmes exclusivistas de Josué contrastam como a magnanimidade de Moisés. Semelhante é também a reação de Paulo em Fl 1,15-18. A sequência lembra Mt 25,31-46: Jesus identifica-se com os menores (25,40.45) e a questão quem pertence ao reino (ao Filho do Homem), é definida pelo bem ou mal que os homens fazem a estes menores. Jesus não quer que o grupo daqueles que o seguem se torne seita fechada e monopolizadora da sua missão. Toda e qualquer ação que liberta e faz o bem ao ser humano é parte integrante da missão de Jesus (cf. Mt 7,20p).

É um apelo a tolerância que nem sempre foi ouvido na história da Igreja. Muitas vezes na história da Igreja, certos grupos ou pessoas que não seguiam em tudo a doutrina oficial foram proibidos, condenados e mortos. Na visão de Jesus, a Igreja oficial não deve ser uma panela intolerante que exclui e proíbe tudo que não está 100% sob seu controle.  O nome (e a pessoa) de Jesus não é uma marca registrada pertencente somente à Igreja Católica, porque pertence à humanidade, e “o Espírito sopra onde ele quer” (Jo 3,8), não só onde a Igreja quer. É necessário definir a doutrina para maior clareza e evitar confusão, mas há de reconhecer também que existem elementos de verdade e santidade em outras religiões (NA 2), embora só na Igreja Católica se encontrem a “plenitude dos meios de salvação” (UR 3).

Assim falam os documentos do Concílio Vaticano II (UR, NA, LG) que nos animam no caminho do diálogo inter-religioso e ecumênico. A existência de outras igrejas e religiões pode incomodar, mas a liberdade e concorrência num mercado e estado livres estimulam também para melhor qualidade. A Igreja Católica não se deve subestimar, mas também não acomodar na tradição. Jesus quer liberdade e tolerância, generosidade e qualidade.

O site da CNBB comenta: A lógica que nos é proposta por Jesus nos desafia a entender as relações de autoridade e de poder de uma forma totalmente diferente da proposta pelo mundo: autoridade significa conduzir as outras pessoas para uma vida melhor e poder significa serviço e humildade. Com isso, o Evangelho nos mostra que devemos nos afastar da opressão, da dominação e do autoritarismo do poder pelo poder. O Evangelho de hoje também nos mostra que o fato de sermos a Igreja de Jesus Cristo não nos dá o direito de nos apossarmos da sua pessoa e da sua ação, uma vez que ele chama diferentes pessoas através de modos diferentes para que, de diferentes modos, continue agindo no meio dos homens.

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