31 de Maio de 2020, Domingo de Pentecoste: De repente, veio do céu um barulho como se fosse uma forte ventania, que encheu a casa onde eles se encontravam. Então apareceram línguas como de fogo que se repartiram e pousaram sobre cada um deles.

Domingo de Pentecostes        

 1ª Leitura: At 2,1-11

O evento de Pentecostes está na primeira leitura de hoje (os textos da vigília podem servir apenas como preparação: Gn 11,1-9; Rm 8,22-27; Jo 7,37-39…). No final do seu primeiro livro, o evangelho, Lucas já contou como Jesus prometeu aos apóstolos a “força do alto”, ou seja, o Espírito que “meu Pai prometeu” e a ascensão do Senhor em seguida (Lc 24,49-51), mas deu a impressão que tudo isso aconteceu no mesmo dia (cf. Jo 20,1-23; evangelho de hoje): a descoberta do túmulo vazio, as aparições do ressuscitado e sua ascensão ao céu.

No seu segundo livro, chamados posteriormente “Atos dos Apóstolos”, o evangelista já diferencia o tempo (inspirando nosso calendário litúrgico): quarenta dias de aparições do ressuscitado até a sua ascensão (cf. At 1,1-11; leitura do domingo passado), em seguida nove dias de oração na espera pela vinda do Espirito prometido (a primeira novena dos cristãos). Nesse período se escolheu o apóstolo Matias para substituir Judas Iscariotes (1,12-26) e assim recompor o colégio dos Doze (símbolo das doze tribos do povo de Deus, Israel).

Os At foram chamados o “Evangelho segundo o Espírito”, porque o Espírito Santo é o protagonista que está no início da comunidade, aliás junto com Maria (cf. 1,13-14; 2,1) como no início do Ev (Lc 1,35), e impulsiona a missão de Igreja como fez com Jesus (cf. Lc 3,22; 4,1.14.18). Os At começam, onde o Ev de Lc terminou, com a despedida de Jesus e sua ascensão ao céu, e apresentam seu programa em 1,8: “Recebereis o poder do Espírito Santo que descerá sobre vós, para serdes minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judeia e na Samaria, e até os confins da terra.”

Quando chegou o dia de Pentecostes, os discípulos estavam todos reunidos no mesmo lugar (v. 1).

Quem estava reunido em 2,1? Não a assembleia dos cento e vinte de 1,15-26, mas o grupo apostólico apresentado em 1,13s com as mulheres, todos eles “galileus” (vv. 1,11; 2,7). Jesus havia pedido de não se afastar de Jerusalém até chegar o Espírito (1,4; Lc 24,49). O “mesmo lugar” deve ser a “sala superior onde costumavam ficar” (1,13), ou seja, o cenáculo onde se celebrava a última ceia antes da Páscoa (Lc 22,12).

Como a Páscoa, também “o dia de Pentecostes” já é uma festa judaica. A palavra grega penta significa cinco (cf. Pentateuco – os primeiros cinco livros da Bíblia, a Torá-Lei de Moisés). “Pentecostes” significa “cinquenta” (lit. o dia da Quinquagésima), isto é, tendo terminado o período de cinquenta dias entre a Páscoa e Pentecostes; foi chamado também a “Festa das Semanas” (depois de sete semanas: 7 x 7 dias = 49 + 1 = 50). Era a festa da primeira colheita (Ex 23,14), depois Pentecostes tornou-se também festa da renovação da Aliança (cf. 2Cr 15,10-15) e evoca o dom da Lei no monte Sinai. Este novo valor litúrgico podia inspirar a encenação de Lucas a aliança do Sinai entre Deus e Israel.

De repente, veio do céu um barulho como se fosse uma forte ventania, que encheu a casa onde eles se encontravam. Então apareceram línguas como de fogo que se repartiram e pousaram sobre cada um deles. Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar em outras línguas, conforme o Espírito os inspirava (vv. 2-4).

A narração se inspira em três relatos do Antigo Testamento: no primeiro (Ex 19-24), apresenta-se o conteúdo judaico da festa de Pentecostes, a entrega da Lei de Moisés e a Aliança com o povo de Israel no monte Sinai. No segundo (Nm 11,16-30), Javé Deus distribui o Espírito de Moisés em setenta anciãos (juízes em Ex 18,13-27) que começaram a profetizar (Nm 11,11.25). No terceiro, no início da humanidade (Gn 11,1-9), os povos da terra se dispersam por causa da confusão de línguas na construção da torre sem Deus, em Babel depois do dilúvio.

Em Ex 19,16-19, Javé Deus desceu sobre o monte Sinai/Horeb “no fogo”, junto com fumaça, tempestade e trovão, e depois falou a Moisés e ao povo de Israel. Aqui em At 2,2-3 “veio do céu… uma forte ventania… e apareceram línguas como de fogo”, e depois os apóstolos falam aos romeiros de tantas nações.

Há afinidade entre o Espírito e o vento, “respiração”, ar (cf. Gn 1,2; 2,7; Ez 37,5-10; Jo 20,22): a mesma palavra significa “espírito” e “sopro” (em hebraica é feminina: ruach, em grego é neutro: pneuma). A forma das chamas (Is 5,2; cf. Is 6,6s) é relacionada aqui com o dom das línguas.

Segundo um de seus aspectos (vv. 4.11.13), o milagre de Pentecostes assemelha-se ao carisma da glossolalia (“falar em línguas”), frequente nos primórdios da Igreja (At 10,46; 11,15; 19,6; 1Cor 12-14; cf. Mc 16,17). Encontramos seus antecedentes no antigo profetismo israelita (cf. Nm 11,25-29; 1Sm 10,5-6.10-13; 19,20-24; 1Rs 22,10), por ex. em Jl 3,1-5, citado depois na primeira pregação de Pedro (vv. 17s).

Moravam em Jerusalém judeus devotos, de todas as nações do mundo. Quando ouviram o barulho, juntou-se a multidão, e todos ficaram confusos, pois cada um ouvia os discípulos falar em sua própria língua. Cheios de espanto e de admiração, diziam: “Esses homens que estão falando não são todos galileus? Como é que nós os escutamos na nossa própria língua? Nós que somos partos, medos e elamitas, habitantes da Mesopotâmia, da Judéia e da Capadócia, do Ponto e da Ásia, da Frígia e da Panfília, do Egito e da parte da Líbia, próxima de Cirene, também romanos que aqui residem; judeus e prosélitos, cretenses e árabes, todos nós os escutamos anunciarem as maravilhas de Deus na nossa própria língua!” (vv. 5-11).

Em Pentecostes reuniam-se em Jerusalém multidões de judeus vindos de numerosos países. Este será o palco do dom inicial do Espírito enviado por Jesus (v. 33); esse dom se manifesta por uma espécie de explosão da linguagem. Em Lc, a pregação apostólica (2,1-41) parte de Jerusalém (cf. 1,8), onde também seu evangelho começou e terminou (no templo, cf. Lc 1,9; 24,53)

O relato de 2,1-13 é simbólico. De fato, quando o autor escreveu (entre 80 e 90 d.C.), as comunidades cristãs já se haviam espalhado por todas as regiões aqui mencionadas (vv. 8-10). Lucas mostra o que está na base de qualquer comunidade cristã: o Espírito Santo faz lembrar, compreender e continuar o testemunho de Jesus (cf. Jo 14,26; 16,12-15).

No Pentecostes judaico comemora-se a antiga Aliança com Israel e o dom (entrega) da Lei (de Moisés). No novo Pentecostes, Deus entrega o dom do Espírito, realizando a “Nova Aliança” (cf. Lc 22,20; 1Cor 11,25), dessa vez com toda a humanidade (cerca de doze nações mencionadas em vv. 8-10). A “língua” da comunidade da nova aliança é o testemunho de Jesus (cf. a pregação de Pedro em seguida, vv. 14-36), ou seja, o Evangelho, cujo centro é o amor de Deus que reúne os seres humanos, provocando aproximação e entendimento (exatamente o contrário da confusão de línguas em Babel onde se queria construir uma torre sem Deus; cf. Gn 11,1-9, primeira leitura da vigília). Mas o testemunho provoca conflitos (cf. v. 13).

Como os cristãos empolgados pelo Espírito na Igreja primitiva (e hoje nos movimentos carismáticos e pentecostais), os apóstolos parecem falar em um estado de exaltação característico (“cheios de vinho doce”, v. 13, omitido pela liturgia de hoje). A glossolalia utilizava palavras em línguas estranhas, desconhecidas (língua dos anjos) para cantar os louvores de Deus (cf. 1Cor 12,10; 13,1; 14,2ss). Mas falar “em outras línguas” (v. 4) é fazer-se entender na língua dos outros povos e tal é, para o autor, o aspecto mais importante do acontecimento: O Evangelho será anunciado e entendido por todas as nações! O dom do Espírito restabelece aqui a unidade de linguagem que se tinha desfeito na torre de Babel (Gn 11,1-9) e prefigura assim a dimensão universal da missão dos apóstolos (cf. 1,8).

Os peregrinos não são pagãos, mas são “judeus devotos”, que vieram de outras nações, e por ocasião da festa encontram-se em Jerusalém. (Estes doze povos, de onde eles vêm, podem estar relacionadas ao zodíaco). Os “prosélitos” são aqueles que, não sendo judeus de origem, abraçaram a religião judaica e aceitaram a circuncisão tornando-se assim membros do povo eleito (cf. 6,5; 13,43; Mt 23,15). Não confundir com os “tementes a Deus“ (10,2; Lc 7,4-5), que simpatizavam com o judaísmo e frequentavam as sinagogas, mas não chegavam até a circuncisão e a prática ritual da Lei. “Judeus” e “prosélitos” não são, pois, novas denominações de povos: apenas qualificam os que acabam de ser enumerados.

Haverá outro Pentecostes para os pagãos (gentios) na casa do centurião romano Cornélio (10,44-48; cf. 11,15), ou seja, a descida inesperada do Espírito que faz os pagãos falarem em línguas como sinal que também estes povos são chamados a comunhão na Igreja Católica. Na Bíblia ainda não aparece a palavra católica que significa (em grego) “universal, para todos”, mas sim seu conteúdo.

Pentecostes é considerado o nascimento da Igreja; a evangelização se alimenta agora do ar (Espírito) e não mais da presença física (apenas sacramental) de Jesus.

 

2ª Leitura: 1Cor 12,3b-7.12-13

A segunda leitura nos apresenta a importância de ficar “na unidade do Espírito Santo” (conclusão de muitas orações). Na comunidade de Corinto, ao que parece, os dons espirituais ou “carismas” davam origem a divisões por inveja ou competição, por vaidade comparativa (cf. 1,10-13; 3,1-4). O apóstolo responde desenvolvendo um argumento duplo: origem e função. A origem é única e mantém um controle unificado: o Espírito Santo. A função é plural, mas de forma orgânica, como um corpo, ou seja, existe uma diferenciação a serviço da unidade do organismo.

A Nova Bíblia Pastoral (p. 1399) comenta: Paulo retoma a agenda dos assuntos consultados, agora “a respeito dos dons espirituais”, aqui compreendidos como carismas em si, ou como pessoas com carismas. O assunto é o mais desenvolvido na carta, ocupando três capítulos (12-14).

Ninguém pode dizer: Jesus é o Senhor a não ser no Espírito Santo (v. 3b).

Na comunidade de Corinto (Grécia), a efervescência dos carismas era muito forte. Como o fenômeno de dons espirituais era comum nos cultos pagãos, adverte-se contra a ilusão dos ídolos mudos (v. 2; cf. Sl 115,5; 135,16; Br 6). Um primeiro critério para discernir os dons do Espírito é a proclamação do senhorio de Jesus (cf. Fl 2,11 e a conclusão da pregação de Pedro em Pentecostes em At 2,36). Lembramos que “Senhor” (Kýrios) é a tradução grega do nome hebraico de Deus (Javé – Yhwh) no Antigo Testamento.

A Bíblia do Peregrino (p. 2757) comenta: A reiterada confissão batismal de Jesus como “Senhor” só é possível por inspiração do Espírito, e é portanto um critério básico para julgar os carismas. Quanto à anti-confissão “maldito seja Jesus!” [v. 3a, omitido pela liturgia de hoje] tenta-se explicá-la de modos diversos: serve de contraste para realçar a confissão positiva; distingue em Jesus o humano ou corpóreo (maldito) e o divino ou espiritual (Senhor); fórmula de abjuração ou apostasia que as autoridades locais, judaicas ou pagãs, exigiam dos cristãos, temor de alguns carismáticos de que, durante o êxtase, se lhes escape alguma blasfêmia involuntária (coisa impossível). Em qualquer caso, um critério, por sua natureza, se abre em duas direções.

Há diversidade de dons, mas um mesmo é o Espírito. Há diversidade de ministérios, mas um mesmo é o Senhor. Há diferentes atividades, mas um mesmo Deus que realiza todas as coisas em todos (vv. 4-6).

O primeiro argumento é afirmar a unidade de origem e a variedade de manifestação dos “dons” (lit. carismas). A Bíblia do Peregrino (p. 2757) comenta: O trio correlativo não se deve atribuir membro a membro, mas é cumulativo: “carismas, ministérios e atividades” têm sua origem comum em Deus (cf. Os 14,9). Não são qualidades naturais, nem fruto do esforço humano; não são méritos nem privilégios; uma vez recebidos, não ficam à disposição autônoma do homem.

Paulo estabelece um paralelo entre os ministérios (serviços) e os modos de agir, e atribui o conjunto desta animação eclesial não só ao “Espírito”, mas também ao “Senhor” (Jesus) e a “Deus” (Pai). Note-se a formulação trinitária do pensamento (cf. 2Cor 13,13).

Desde já, Paulo prenuncia os grandes temas da parábola do corpo (vv. 12-27): a diversidade e a unidade (cf. a oposição entre “diversidade de” e “o mesmo…”).

A cada um é dada a manifestação do Espírito em vista do bem comum (v. 7).

Depois do esquema trinitário, para dizer que todos os dons ou ministérios provém da comunidade divina, Paulo frisa o serviço da fraternidade humana. Os carismas não têm sentido, a não ser pelo Espírito que tudo unifica e pelo serviço às pessoas. Todo carisma individual visa ao bem da comunidade. Aos colaboradores de Moisés foi dada uma parte igual de “espírito” para alívio do chefe, a serviço da comunidade (Nm 11).

A liturgia de hoje omite um elenco a seguida, a título de ilustração, com dons ligados à palavra, como sabedoria e ciência (v. 8); outros ligados ao poder, como fé, cura e milagres (vv. 9-10); outros ligados à profecia e ao discernimento (v. 10); e outros, como falar em línguas e interpretá-las (v. 10). Nova lista de carisma encontra-se no v. 28, assim como em Rm 12,6-8 e Ef 4,11.

Como o corpo é um, embora tenha muitos membros, e como todos os membros do corpo, embora sejam muitos, formam um só corpo, assim também acontece com Cristo (v. 12).

Paulo propõe um segundo argumento, desenvolvendo a imagem (não alegoria estrita) de um organismo. Como o corpo humano une a pluralidade de seus membros, “assim também acontece com Cristo” (subentender: “ele (Cristo) é um, e tem vários membros”). O messias-Cristo é princípio unificador da sua Igreja, constitui todos os cristãos na unidade do seu Corpo.

A Bíblia do Peregrino (p. 2758) comenta: É obvio o aspecto da diversidade funcional, é essencial o aspecto da correlação e interdependência. A pluralidade e variedade a serviço da unidade. Unida ao Messias, a Igreja é como um corpo. Não é legítimo identificar cada membro mencionado com uma função específica na Igreja; é legítimo sim observar o interesse do autor pelos membros mais fracos, mais escondidos, menos vistosos.

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2221) comenta: Paulo recorre a um tema conhecido da cultura helenista: o corpo humano, como imagem do corpo social, incitando ao respeito pela diversidade de seus membros e à necessária unidade de todos na prossecução de um objetivo comum (cf. as oposições “um-todos” ou “um-vários”). Mas Paulo modificou profundamente o significado desta imagem do “corpo” à luz da sua experiência cristã e da prática eucarística do “corpo de Cristo”.

A Nova Bíblia Pastoral (p. 1399) comenta: A metáfora ou comparação do corpo humano como imagem do corpo social era comum na literatura antiga. Mas era usada para manter a estrutura hierárquica e para justiçar o poder de dominação. Paulo inverte o uso da comparação, para colocar o Cristo como cabeça, isto é, como origem da comunidade (Rm 12,4-5). Outra inversão está na diversidade entre as pessoas que compõem a fraternidade. E a inversão principal é o critério de atenção aos membros mais fracos. A comunidade cristã, já marginalizada, corria o perigo de marginalizar outras pessoas. Então o Apóstolo insiste: que haja unidade na diversidade, o que implica mais atenção aos membros mais fracos. A nova lista de carismas (v. 28) estabelece uma espécie de prioridade entre apóstolos, profetas e doutores, mas não prioridade organizada nem exaustiva; o mesmo se nota na lista anterior (vv. 8-10) e nas demais (Rm 12,6-8 e Ef 4,11).

A Bíblia de Jerusalém (p. 2163s) comenta a imagem do corpo, desenvolvida mais nos próximos versículos (vv. 14-27) e utilizada também em outras partes por Paulo: Embora utilize o clássico apólogo que compara a sociedade a um corpo unido nos seus diversos membros, não é a esse apólogo que Paulo deve a sua concepção de Corpo de Cristo. Ela é inspirada pela fé cristã de Paulo (cf. 9,4s; Gl 1,15s), fé em Jesus ressuscitado num corpo vivificado pelo Espírito (Rm 1,4), primícias do mundo novo (1Cor 15,23), ao qual os cristãos se unem em seus próprios corpos (Rm 8,11), pelos ritos do batismo (1Cor 12,13; cf. Rm 6,4) e da eucaristia (1Cor 10,16s). Os cristãos tornam-se assim “membros” de Cristo (1Cor 6,15); unidos todos ao seu corpo pessoal constituem com ele o Corpo de Cristo que chamamos “místico” (1Cor 12,27; cf. Rm 12,4s). Esta doutrina de grande realismo, que já aparece em 1Cor, ocorre de novo, e com mais amplidão, nas cartas do cativeiro. Sem dúvida, é no Corpo de Cristo crucificado segundo a carne e vivificado pelo Espírito (Ef 2,14-18; Cl 1,22) que se realiza a reconciliação dos homens, membros de Cristo (Ef 5,30). Mas Paulo acentua principalmente a unidade desse corpo, que reúne todos os cristãos no mesmo Espírito (Ef 4,4; Cl 3,15) e a identificação de tal corpo, concebido como uma pessoa (Ef 4,12s, Cl 12,19), tem o Cristo como Cabeça (Ef 1,22; 4,15s; 5,23; Cl 1,18; 2,19; comparar 1Cor 12,21), certamente por influência da concepção de Cristo Cabeça das Potências angélicas (Cl 2,10). Enfim, a noção de Corpo de Cristo chega a englobar, de certo modo, o universo inteiro reunido sob o domínio do Kyrios (Ef 1,23; cf. Jo 2,21).     

De fato, todos nós, judeus ou gregos, escravos ou livres, fomos batizados num único Espírito, para formarmos um único corpo, e todos nós bebemos de um único Espírito (v. 13).

O Espírito= vento, toma no batismo figura líquida: o ser humano batiza (se submerge) nele e o absorve (ou bebe; alusão à eucaristia). Para Paulo, o batismo nos liberta da escravidão do pecado (e da Lei judaica) e nos faz filhos e filhas de Deus sem distinção no Espírito (todos no único Espírito, cf. Ef 4,4-6), “judeus ou gregos, escravos ou livres”. Comparado com Gl 3,28, falta aqui o binômio homem e mulher; “gregos” equivale a pagãos.

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2221) comenta: Literalmente, este v. é um parêntese: não faz parte da narrativa-parábola, mas já fornece, por antecipação, uma explicação teológica baseada no batismo e na Eucaristia. O primeiro membro é paralelo a 10,2 “Todos foram, em Moisés, batizados na nuvem e no mar”. “Beber uma bebida espiritual” (10,4) era uma alusão à Eucaristia.

A Bíblia de Jerusalém (p. 2163) resume o contexto: Os caps. 12-14 tratam do bom uso dos dons do Espírito (carismas), concedidos à comunidade como testemunho visível da presença do Espírito e para remediar a situação anormal de uma jovem comunidade cristã cuja fé ainda não transformara a mentalidade impregnada de paganismo. Os coríntios eram tentados a apreciar principalmente os dons mais vistosos e a utilizá-los em ambiente anárquico, semelhantes ao de certas cerimônias pagãs. Paulo reage afirmando que os dons são concedidos para o bem dá comunidade e, por conseguinte, não devem ocasionar rivalidade (c. 12). Depois, mostra que a caridade supera a todos (c. 13). Por último, explica que a hierarquia dos dons há de ser estabelecida de acordo com a contribuição que cada dom traz à edificação da comunidade (c. 14).

 

Evangelho: Jo 20,19-23

O evangelho de hoje apresenta a aparição de Jesus ressuscitado diante dos discípulos “no primeiro dia da semana” (cf. 2º domingo da páscoa). Em Jo, a ressurreição de Jesus e o envio do Espírito Santo aos apóstolos coincidem neste mesmo dia. Também em Lc, para finalizar seu evangelho, Jesus sobe ao céu no mesmo dia em que ressuscitou (24,50). Mas no segundo volume de Lc, nos At, passam 40 dias até a ascensão (cf. 1,3.9) e 50 dias até Pentecostes (At 2, cf. leitura de hoje). Lc e Jo usam de liberdade artística e de meios literários para associar o dom do Espírito ao envio dos apóstolos e à ressurreição com a qual a eternidade entra em nosso mundo limitado (no espaço pelas “portas fechadas”, e no tempo).

O quarto evangelho narra que bem cedo, “no primeiro dia da semana”, Maria Madalena “viu” o túmulo vazio (vv. 1-2; cf. Mc 16,1-7p); Pedro e o outro discípulo verificaram o túmulo (vv. 3-10; em Lc 24,12, só Pedro). O discípulo amado (suposto autor do evangelho, cf. 21,24) “viu e acreditou”. Em seguida, o próprio Jesus ressuscitado apareceu a Madalena (vv. 11-18). Ela foi anunciar aos discípulos: “Vi o Senhor” (v. 18). Como os discípulos reagiram a este anúncio pela mulher? Jo nos diz nada a respeito (cf. Lc 24,11).

Ao anoitecer daquele dia, o primeiro da semana, estando fechadas, por medo dos judeus, as portas do lugar onde os discípulos se encontravam, Jesus entrou e pondo-se no meio deles, disse: “A paz esteja convosco” (v. 19).

Como em Lc 24, a aparição diante dos discípulos acontece em Jerusalém e é a segunda no mesmo dia, “o primeiro da semana” (futuramente chamado pelos cristãos: “domingo”, dies domínicus = dia do Senhor).

Os discípulos tinham fechados “as portas do lugar onde se encontravam” (pela tradição era o lugar da última ceia, o cenáculo no andar superior, cf. Lc 22,11s; At 1,13) “por medo dos judeus”, quer dizer, das autoridades judaicas que condenaram Jesus, não do povo em geral (os próprios discípulos eram judeus). Mas o Ev de Jo generaliza, sua comunidade estava sendo perseguida pelos judeus que acabaram de excluir os cristãos da sinagoga (9,22; 16,2).

Mas o Cristo ressuscitado acabou de vencer a morte; o seu corpo não pode ser barrado pelas barreiras deste mundo, por uma pedra no túmulo ou por portas fechadas que aqui servem para demonstrar mais o poder sobrenatural do corpo do ressuscitado.

Como em Lc 24,36, Jesus pronuncia a saudação costumeira da paz (“shalom alehem”) que só na boca do ressuscitado ganha sentido pleno (vv. 19.26; cf. 14,27): ele venceu o mundo com todos seus inimigos e medos (16,33; cf. 1Jo 5,4s).

Depois destas palavras, mostrou-lhes as mãos e o lado. Então os discípulos se alegraram por verem o Senhor.

O relato em Lc 24,36-42 parece ter servido de modelo: a aparição de Jesus diante dos discípulos no mesmo dia e a saudação de paz; como primeira prova mostra as mãos (em Jo também o lado, cf. 19,34), para não ser uma ilusão, alucinação, fantasma ou espírito desencarnado. Como segunda prova, come um pedaço de peixe assado (Lc 24,42s); em João, a segunda prova será o convite a Tomé de tocar nas marcas dos pregos, vv. 24-29 (e o peixe assado encontramos no anexo de Jo 21,9-14).

Jesus identifica-se com as marcas da cruz. O ressuscitado é o crucificado, não é outra pessoa nem outro corpo, nem apenas a alma. Como ressuscitado, Jesus levou suas chagas para eternidade, fazem parte da sua identidade, como a cruz é seu símbolo que virou a bandeira da vitória (cf. 1Cor 1,23s).

A reação dos discípulos é a alegria “por verem o Senhor”; agora eles sabem que é o próprio Senhor. Como ele havia prometido em 16,16-20, agora voltou depois de uma breve separação e dá a alegria. O medo e a tristeza dão lugar a alegria (cf. Mc 16,8; Mt 28,8), mas ainda continuam portas fechadas na comunidade da Igreja que Jesus vai superar (cf. v. 26).

Novamente, Jesus disse: “A paz esteja convosco. Como o Pai me enviou, também eu vos envio”. E depois de ter dito isto, soprou sobre eles e disse: “Recebei o Espírito Santo. A quem perdoardes os pecados, eles lhes serão perdoados; a quem os não perdoardes, eles lhes serão retidos” (vv. 21-23).

No Ev de Jo, Jesus é o Enviado (missionário) do Pai (3,34; 5,23s etc.; cf. 9,7), agora o Filho envia os discípulos no mesmo movimento (o Filho fez o que viu do Pai, os discípulos devem fazer o que viram e ouviram de Jesus, cf. 5,19).

Em Jo acontece tudo de vez: sua Páscoa já é Pentecostes. Nos outros evangelistas, acontece mais em etapas: a aparição (“ver Jesus”, testemunho ocular), o envio (missão da Igreja) e o dom do Espírito (capacidade para esta missão; cf. At 1-2). Como o Pai enviou Jesus, Jesus envia os apóstolos e dá o mesmo Espirito de Deus, o Espírito Santo.

Dando o Espírito, Jesus atua como o Pai na criação do ser humano (Adão), formado de barro: “Soprou nas narinas, e Adão tornou-se um ser vivo” (Gn 2,7). O Espirito vivificante renova a Igreja, a ressurreição equivale uma nova criação (cf. Ez 37,1-14; 2Cor 5,17; Rm 8,11; cf. o significado do “primeiro dia da semana” aludindo à criação da luz: Mt 28,1p e Gn 1,3-5).

Assim será a missão dos apóstolos igual a de Jesus: não condenar, mas perdoar, salvar (3,17). Em Mt 28,19 é para batizar e ensinar (com o batismo, os pecados são perdoados, cf. At 2,38; Lc 24,27). Perdoar pecados é privilégio divino (Mc 2,7p), mas como enviados de Jesus e com o Espírito divino, os apóstolos têm poder para isso. E quando não perdoarem, não haverá perdão sem eles? Deus é sempre maior, mas eles devem se empenhar para transmitir e viver este perdão e a reconciliação de maneira radical como fez Jesus, até entregar sua própria vida como Cordeiro que tira o pecado do mundo (1,29).

Podemos comparar estes vv. com a terceira parte do Credo da missa: o Espírito Santo e suas obras: Igreja (católica) e comunhão (dos santos), batismo e remissão dos pecados, ressurreição e nova vida (eterna). O Espírito de Deus e de Jesus significa paz (a pomba em Mc 1,10p; cf. Is 42,1-4). Paz e nova vida só haverá, se tiver perdão e não continuar vingança (cf. a dificuldade de reconciliar famílias desunidas ou nações inteiras em guerra (ex. Israel e Palestina).

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