31 de março de 2017 – Sexta-feira, Quaresma 4ª semana

Leitura: Sb 2,1.12-22

O livro da sabedoria é o livro mais tardio de todo Antigo Testamento (AT). Foi escrito por volta de 50 a.C. por um judeu na cidade de Alexandria, importante centro político e cultural grego no delta do rio Nilo, que contava com cerca de 200.000 judeus entre seus habitantes. O autor une tradições religiosas do AT e ideias da filosofia grega contemporânea. Escreve em grego, por isso este livro não consta na Bíblia Hebraica nem na dos protestantes.

O título “Sabedoria de Salomão” é fictício. Mais uma vez um livro sapiencial é atribuído ao rei Salomão, o sábio por excelência em Israel, a quem Deus concedeu um “coração ouvinte” (cf. 1Rs 3,4-14). Da boca dele, “o mais sábio dos homens” (1Rs 5,11), ouvimos hoje sobre a perseguição do justo.

Dizem entre si, os ímpios, em seus falsos raciocínios (v. 1a).

Infelizmente, nossa liturgia não apresenta, por motivos de brevidade, os pensamentos materialistas e hedonistas dos “ímpios” da época, muito parecidos com os da nossa sociedade atual: “Curto é o tempo da nossa vida e cheio de tédio… nosso fim irreversível… Agora, porém, gozemos dos bens presentes…“ (vv. 1b.5-6).

Atribuem a origem do mundo ao acaso (v. 2) e vivem um ateísmo prático. O autor pode ter em mente filósofos gregos (epicureus) ou judeus apóstatas, querendo polemizar contra Ecl ou os saduceus? Os sumos sacerdotes em Jerusalém e seu partido, os saduceus, não acreditavam na ressurreição dos mortos (cf. Mc 12,18-27p; At 23,8) e devem ter tido alguns pensamentos semelhantes.

“Armemos ciladas ao justo, porque sua presença nos incomoda:ele se opõe ao nosso modo de agir,repreende em nós as transgressões da leie nos reprova as faltas contra a nossa disciplina (v. 12).

A degeneração dos ímpios volta-se para o mal quando desejam silenciar a voz da Sabedoria e da justiça (vv. 10-20).

Mas, o que os ímpios têm contra ele? Para eles a única dimensão de vida é aquela que existe antes da morte (cf. vv. 1.5.21-22). Como viver diante desta perspectiva? Gozar o mais que for possível, já que não existe nada além dos prazeres desta vida.

Por outro lado, para viver no ócio e no prazer é preciso ter alguém que pague por isso. Daí nascem a opressão e a injustiça social, onde os privilegiados exploram os pobres, forçando-os a sustentar o seu estilo de vida: “Vamos oprimir o pobre inocente e não vamos poupar as viúvas, nem respeitar os cabelos brancos do ancião. A nossa força será regra da justiça, porque o fraco é claramente coisa inútil” (vv. 10s), e consequentemente não tem direto de existir.

Os ímpios se opõem aos justos inclusive aos anciãos, sábios com experiência) e transgredem os preceitos divinos de cuidados pelos pobres e pelas viúvas (cf. Ex 22,21). Para eles, a norma do direito não é a lei de Deus, mas sua própria força amedrontadora, a lei do mais forte (cf. as ideias do racismo e do neoliberalismo).

O que o justo “reprova”, são esses pensamentos e atitudes; ele “repreende” as consequências de uma conduta irresponsável (“transgressões da lei”). Ele não participa desta filosofia enganosa, ergue seu grito e se torna um grande obstáculo para o modo de viver do injusto. “Sua presença nos incomoda, ele se opõe ao nosso modo de agir, repreende em nós as transgressões da lei e nos reprova as faltas contra nossa disciplina… (v. 12; cf. vv. 14-15).

No Comentário Bíblico II (p. 402), J.E. Rybolt comenta: O estilo de vida do justo que inclui se opor ao mal e até o próprio conhecimento de quem ele são, aflige suas consciências. Como corpúsculos brancos na corrente sanguínea apressando-se para atacar um corpo estranho, os ímpios caem sobre os justos, porque a vida destes é diferente da sua (v. 15).

Ele declara possuir o conhecimento de Deuse chama-se ‘filho de Deus’.Tornou-se uma censura aos nossos pensamentose só o vê-lo nos é insuportável;sua vida é muito diferente da dos outros,e seus caminhos são imutáveis.Somos comparados por ele à moeda falsae foge de nossos caminhos como de impurezas;proclama feliz a sorte final dos justose gloria-se de ter a Deus por pai (vv. 13-16).

O justo “declara possuir o conhecimento de Deus e chama-se ‘filho de Deus’” (vv. 13.18), “gloria-se de ter a Deus por pai” (v. 16c). O termo filho de Deus fala do estreito relacionamento do justo com o Senhor, tema do livro de Sb.No AT, o povo eleito é “filho e Deus” (Ex 4,22; Os 11,1; Jr 31,9), o seu rei é filho de Deus por adoção (cf. Sl 2,7; 2Sm 7,14) e alguns sábios e justos (Eclo 4,1-10; Sb 2,18; 5,5), além de outros que estão próximos a Deus (outros seres superiores, “deuses” que se pode entender como anjos, conselheiros ou juízes: Gn 6,1–4; Jó 1,6; Ps 29,1; 82,1; Sl82,1.6).

A crítica de um filho do único Deus (monoteísmo)incomoda as práticas pagãs dos contemporâneos greco-romanos:“Tornou se uma censura aos nossos pensamentos…, sua vida é muito diferente da dos outros”.

Vejamos, pois, se é verdade o que ele diz,e comprovemos o que vai acontecer com ele. Se, de fato, o justo é ‘filho de Deus’, Deus o defenderáe o livrará das mãos dos seus inimigos. Vamos pô-lo à prova com ofensas e torturas,para ver a sua serenidadee provar a sua paciência; vamos condená-lo à morte vergonhosa,porque, de acordo com suas palavras,virá alguém em seu socorro”(vv. 17-20).

Os ímpios planejam testar o justo para ver se, como Jó (Jó 1,6-12), o justo iria perseverar em suas convicções. A morte será a prova, com aparências de processo, nele as palavras do justo e seu Deus são submetidos à prova (cf. Is 53; Dn 3,16-18; Mt27,40.43; Jo 19,7). A figura de um servo sofredor de Deus é apresentada várias vezes na Bíblia, principalmente no Segundo Isaias (52,13-53,12), mas também no Sl 22; os evangelhos salientam a relação entre Jesus e este “justo” sofredor.

Tais são os pensamentos dos ímpios, mas enganam-se;pois a malícia os torna cegos, não conhecem os segredos de Deus,não esperam recompensa para a santidadee não dão valor ao prêmio reservado às vidas puras (vv. 21-22).

Não parece que os ímpios estejam abertos à conversão. Estão cegos, não conhecem os “segredos de Deus”, o plano misterioso de Deus acerca do justo e do perverso (cf. Sl 73,17), a “recompensa para santidade, ao prêmio reservado às vidas puras”. Na tese dos ímpios, o assunto terminou com a morte do justo, mas não para Deus: “A vida dos justos está nas mãos de Deus…” (3,1).

 

Evangelho: Jo 7,1-2.10.25-30

Entramos no cap. 7 de Jo que devia seguir ao cap. 5 como dizem aqueles exegetas que defendem a inversão dos cap. 5 e 6. O evangelho de hoje seria então a continuação direta dos evangelhos dos dias anteriores, mas omite vários versículos (vv. 3-9.11-24; alguns acham que vv. 19-24 são a conclusão de 5,1-18). O episódio lembra, em alguns detalhes (separação dos parentes, templo, ensinamentos, origem de Jesus), o menino Jesus no templo de Jerusalém (cf. Lc2,34.41-50), mas no texto de hoje, Jesus não desperta admiração, sim provoca hostilidade.

Jesus andava percorrendo a Galileia. Evitava andar pela Judéia, porque os judeus procuravam matá-lo. Entretanto, aproximava-se a festa judaica das Tendas. Quando seus irmãos já tinham subido, então também ele subiu para a festa, não publicamente, mas sim como que às escondidas (vv. 1-2.10).

Já em 5,18, “os judeus” (autoridades judaicas) procuravam matar Jesus, “porque, além de violar o sábado, chamava Deus o seu Pai, fazendo-se, assim, igual a Deus”.

A ”festa judaica das Tendas” (v. 2) é uma comemoração alegre de sete dias; no fim da colheita, os judeus agradecem em Jerusalém e se lembram do tempo quando moravam em tendas durante os 40 anos da caminhada pelo deserto (cf. Ex 23,16; Dt 16,13; Lv 23,34-43).

Os parentes (“irmãos”, v. 10; 2,12; cf. Mc 3,31-35; 6,3s) de Jesus subiram para festa, mas Jesus não foi junto com eles; “nem mesmo os irmãos de Jesus acreditaram nele” (v. 5; cf. Mc 3,21); ele subiu depois, mas “como que às escondidas” (v. 10), disse: “Meu tempo ainda não chegou”(v. 6; cf. vv. 30.44; 2,4). Os parentes de Jesus pensavam em sucesso“publicamente conhecido” (vv. 3-4; cf. 6,14s), mas a atividade de Jesus denuncia o agir perverso da sociedade, e por isso provoca ódio e rejeição (cf. v. 7; 3,16-21; 5,31ss; 8,30-59).

“Quando a festa já estava no meio, Jesus foi ao templo e começou a ensinar” (v. 14; cf. 6,59; 7,28.35; 8,20; 18,20). O conteúdo do seu ensinamento não interessa, a disputa é sobre sua pessoa: O povo expressa opiniões diferentes a respeito deles, uns diziam: “É uma boa pessoa”, outros, porém, diziam: “De jeito nenhum. É um homem que engana o povo” (v. 12; cf. Mt 27,63); assim a presença de Jesus é “sinal de contradição” (Lc 2,34) que vai revelando o coração das pessoas. Jesus defende sua cura no sábado (cf. 5,1-18) comparando-a com a cirurgia da circuncisão que os rabinos praticam também no sábado (cf. vv. 19.21-24; Gn 17,10-14).

Alguns habitantes de Jerusalém disseram então:”Não é este a quem procuram matar? Eis que fala em público e nada lhe dizem.Será que, na verdade, as autoridades reconheceram que ele é o Messias? Mas este, nós sabemos donde é.O Cristo, quando vier, ninguém saberá donde ele é”(vv. 25-27).

Alguns habitantes de Jerusalém admiravam a coragem dele de falar em público e seu “entender de letras sem ter estudado”(v. 15).Perguntaram: “Será que as autoridades reconhecem que ele é o Messias? Mas este nós sabemos de onde é. O Cristo, quando vier, ninguém sabe donde ele é” (vv. 26-27; Cristo é tradução grega do aramaico masiah, ou seja,messias, o “ungido” para ser rei). De Jesus sabe-se o lugar de origem e o nome dos pais: “Jesus de Nazaré, o filho de José” (1,45; 6,42). Por isso, não pode ser o Messias segundo as crenças judaicas (cf. v. 41). Sabia-se que o Messias devia nascer em Belém (cf. v. 42; Mq 5,1), mas acreditava-se que permaneceria “oculto” (v. 10) em um lugar desconhecido (cf. Mt 24,26; alguns diziam: no céu) até o dia da sua vinda. Por sua origem divina, Jesus ratifica esta crença sem que seus interlocutores percebam (cf. 8,14).

Para os cristãos na época do evangelista, professar a fé em Cristo (Jesus é o Messias=Cristo; cf. 1,17.34; 4,29.42; 6,14; 7,31.40-42; 9,22; 11,27; 17,3; 20,31; 1Jo 2,22; 4,15; 5,1) era essencial e provocava a exclusão deles pelos “judeus” da sinagoga em 90 d.C. (cf. v. 13; 9,22; 12,42; 15,18ss; 16,2). Em v. 26, o povo fala das “autoridades”, em v. 33 são especificadas: “os sumos sacerdotes e os fariseus”.

Em alta voz, Jesus ensinava no Templo, dizendo:”Vós me conheceis e sabeis de onde sou;eu não vim por mim mesmo,mas o que me enviou é fidedigno.A esse, não o conheceis, mas eu o conheço,porque venho da parte dele,e ele foi quem me enviou.”Então, queriam prendê-lo,mas ninguém pôs a mão nele,porque ainda não tinha chegado a sua hora (vv. 28-30).

Para João, o que interessa não é a origem geográfica ou biológica de Jesus, mas sua origem divina: o Pai que enviou Jesus. Em alta voz, Jesus proclama (cf. 1,15; 7,37; 12,44): “A esse, não o conheceis, mas eu o conheço porque venho da parte dele, e ele foi quem me enviou” (vv. 28-29; cf. 1,1s; 3,31s; 5,36-38; 6,32s; 8,42 etc.). Jesus é enviado do Pai, mas as autoridades “queriam prendê-lo” (v. 30), porque para eles é uma ameaça, “mas ninguém pôs a mão nele, porque ainda não tinha chegado a sua hora” (v. 30; cf. vv. 6.44). Quem determina a hora de Jesus, não são os inimigos; a hora de Jesus (cf. vv. 6.30.44; 2,4; 8,20; 12,23.27; 13,1; 17,1) chegará numa festa da Páscoa (cf. 13,1: “Antes da Páscoa, sabendo Jesus que chegara a sua hora de passar deste mundo para o Pai…”).

O site da CNBB comenta: A descrença pode ter consequências terríveis como nos revela o Evangelho de hoje. As pessoas que acreditaram em Jesus procuraram seguir seus ensinamentos e viver uma nova forma de relacionamento com Deus, de modo que a sua fé gerava a vida em abundância. Os que não aceitavam as palavras de Jesus não só se privavam desta vida como também procuravam tirar a vida de Jesus. Mas o nosso Deus é o Deus da vida. A descrença luta contra a vida e pode até mesmo tirar a vida das pessoas, mas tira apenas a vida biológica, e o sangue que é derramado fertiliza a terra para que nela brotem as sementes de vida eterna. O sangue de Jesus foi derramado, assim como o de muitos mártires, e isso faz com que as sementes do Reino cresçam e dêem fruto.

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