4 de Agosto de 2020, Terça-feira:  Jesus respondeu: “Toda planta que não foi plantada pelo meu Pai celeste será arrancada. Deixai-os! São cegos guiando cegos. Ora, se um cego guia outro cego, os dois cairão no buraco” (vv. 12-14).

18ª Semana do Tempo Comum

Leitura: Jr 30,1-2.12-15.18-22

Os caps. 30 e 31 são um “livrinho” dentro do grande livro de Jeremias, é um texto de consolação com diversas promessas de salvação num futuro indefinido.

A maior parte deste “Livro da Consolação” (30,1-31,22) foi escrita entre a reforma de 622 a.C. e a morte do rei Josias (609). A reforma deuteronômica (cf. 2Rs 22,3-23,24) fizera ressurgir simultaneamente a fé javista (rompendo com o sincretismo religioso promovido pelo rei Manassés) e a esperança nacional (o declínio do império da Assíria permitiria a Josias levar a cabo a reconquista do Israel do Norte, Samaria e Galiléia, cf. 2Rs 23,15.19, 2Cr 35,18). Nasceu a esperança da volta dos deportados deste reino do Norte (destruído em 721 a.C.; cf. 2Rs 17) ao reino do Sul, a Judá (capital Jerusalém), ao reino de Davi restaurado.

Os poemas que se seguem expressam esta esperança: Javé Deus ainda ama Israel do Norte (31,3.15-20; cf. Os 11,8-9); ele fará voltar os exilados às suas terras (30,3; 31,2-14; cf. Os 10,11), na unidade religiosa reencontrada em torno de Sião, da colina do templo em Jerusalém (31,6; cf. Is 11,10-16). Trata-se então de oráculos paralelos ao de 3,11-18 e remontando provavelmente à mesma época (início do ministério de Jeremias).

Mais tarde, o anúncio do retorno foi estendido a Judá, por sua vez conquistada e deportada pelos babilônios (587 a.C.). Os oráculos posteriores (30,8-9; 31,1.23-26.27-28; cf. as glosas em 30,3.4; 31,3) associam Judá a Israel, dando assim ao “Livro da Consolação” de Jeremias seu alcance definitivo e messiânico: Israel e Judá serão reunidos (cf. 3,18) para que sirvam na terra a “Javé, seu Deus, e a Davi, o seu rei” (30,9). Essa reunião de Israel disperso tornar-se-á um dos temas maiores dos profetas do exílio (Is 45,5s; 49,5-6.12.18-23, etc.; Ez 11,17; 20,34; 28,25; 34,12-13, etc.), e depois do exílio (Zc 10,6-12; cf. ainda Jo 11,52).

Estes caps. não somente frisam o caráter inevitável do sofrimento, que representa a educação necessária (30,11.14; 31,18) do povo indócil (30,14-15; 31,19.32.27), mas também a abundância do amor divino (31,3.20.32) e da graça destinada a inscrever a vontade de Deus no mais profundo do ser humano (31,31-34).

Palavra que foi dirigida a Jeremias, da parte do Senhor: “Isto diz o Senhor, Deus de Israel: Escreve para ti, num livro, todas as palavras que te falei” (vv. 1-2).

Introdução a toda a série de oráculos; como falam do futuro, devem ser escritos e conservados (Is 8,16). Além disso, por serem promessas de felicidade, o cumprimento lhes dará crédito (28,9).

De todas estas promessas de salvação, Deus é o autor, como se expressa na fórmula da palavra-evento: “Palavra que foi dirigida a … da parte do Senhor” (v. 1) e na formula para o mensageiro: “Isto diz o Senhor, Deus…” (vv. 2.5.12.18…).

Como em 36,2, Jeremias recebe a ordem de escrever as palavras de Deus: os vv. 1-3 são provavelmente uma introdução redacional ao “livro das consolações” (caps. 30-31), sendo que a introdução primitiva se encontra em 30,4 (nossa liturgia saltou os vv. 3-10).

Tratando-se de introdução a toda a série, é lógico que os destinatários sejam Israel e Judá (v. 3), reinos irmãos na desgraça (deportação), mas esta fraternidade é um dos conteúdos do futuro feliz. Ressoa a referência a um futuro indefinido e o anúncio “mudarei a sorte” (vv. 3.18; 31,23; 32,44; 33,7.11.26; cf. 29,14; Dt 30,3; Os 6,11; Jl 4,1; Am 9,14; Sf 3,20; Sl 126).

Isto diz o Senhor: Incurável é tua ferida, maligna tua chaga; não há quem conheça teu diagnóstico; uma úlcera tem remédio, mas em ti não se produz cicatrização. Todos os teus amigos te esqueceram, não te procuram mais; eu te causei uma ferida, como se fosses inimigo, como um castigo cruel: por causa do grande número de maldades que te fez endurecer no pecado. Por que gritas em teu sofrimento? É insanável a tua dor. Eu te tratei com rudeza por causa das tuas inúmeras maldades e por causa do teu endurecimento no pecado (vv. 12-15).

Antes de a salvação iniciar, reflete-se sobre a penúria, angústia e miséria (vv. 5-7), mas Javé Deus quebrará, no tempo devido, o jugo estrangeiro que pesou sobre o povo (cf. Jr 27-28). Aqui apresenta outra imagem: ferida e chaga (cf. 4,6.20; 6.1.14; 8,11.21; 10,19; 14,17); poder-se-ia traduzir esta palavra, que literalmente significa quebra, por “fratura”, aqui e no v. 15.

Nem a paciente (Jerusalém) pode fazer coisa alguma para sarar, nem seus “amigos” de antes lhe prestarão seus serviços: está doente e abandonada (Sl 41,5-10). Os amigos (lit. “amantes”) são aqui, como em 22,20 ou Lm 1,2.19, os aliados, as nações sobre as quais se apoiava Israel, e que traíram ou abandonaram Israel.

O Senhor intervém, primeiro diagnosticando a causa do mal e a justiça do castigo; isso por si é uma cura interna, pois provoca o arrependimento. Depois, a cura completa virá como consequência (os vv. 16-17 faltam na nossa liturgia).

Isto diz o Senhor: Eis que eu mudarei a sorte das tendas de Jacó e terei compaixão de suas moradias, a cidade ressurgirá das suas ruínas e a fortaleza terá lugar para suas fundações; de lá sairão cânticos de louvor e sons festivos (vv. 18-19a).

Se o original se referia ao reino do Norte e sua capital Samaria “abandonada” depois da invasão assíria (721 a.C., cf. 2Rs 17), é lógico que não mencione um templo (o legitimo existia só em Jerusalém; cf. Dt 12), apenas a “cidade” e a “fortaleza”. Ao atualizar o oráculo, alguém acrescentou a nova identificação: “é Sião” (v. 17b). A capital representa o povo todo.

Hei de multiplicá-los, eles não diminuirão, hei de glorificá-los, eles não serão humilhados. Teus filhos serão felizes como outrora, e sua comunidade, estável na minha presença; e agirei contra todos os que os molestarem (v. 19b-20).

A população, dizimada na guerra e na deportação, volta a crescer. E se chama “assembleia” (“comunidade”), título do povo escolhido em Nm, raro na literatura profética.

Para chefe será escolhido um dos seus, e o soberano sairá do seu meio; eu o incitarei, e ele se aproximará de mim. Quem dará a vida em penhor da sua aproximação de mim? – diz o Senhor (v. 21).

O “chefe” já não será um estrangeiro, mas um nativo; e sua nomeação será confirmada pelo Senhor (Dt 17,15). Mas evita o título de “rei”. Talvez polemize com as usurpações e mudanças de dinastia no reino do Norte. “O soberano sairá do seu meio”, por oposição ao período de dominação assíria, em que o governador representava o poder estrangeiro.

“Quem dará a vida em penhor da sua aproximação de mim?” Lit.: pois quem poria seu coração em risco para se aproximar de mim? – “Avançar, aproximar-se”: estes verbos pertencem ao vocabulário cultual (cf. Lv 9.5-9; Nm 8,19), mas são usados também para indicar uma audiência junto ao rei (2Sm 15,5; cf. Gn 43,19; 44,18; Is 48,16); não é possível aproximar-se de uma personalidade de alto nível sem seguir todo um cerimonial (cf. Est. 4,11). Quem ousa se aproximar de Deus “põe em risco a vida”, pois seja quem for, quem vê Deus arrisca-se a morrer (cf. Ex 33,20; Jz 6,22.23; 13,22; Is 6,5), a não ser que Deus lhe “permita avançar” para participar das deliberações da corte celeste, cf. Zc 4,7.

Sereis meu povo e eu serei vosso Deus (v. 22).

Este v., que é um acréscimo, contém a fórmula clássica da Aliança (cf. Dt 26,17-18; 27,9; 28,9 etc.) muitas vezes relembrada por Jeremias (cf. 7,23; 11,4; 13,11; 24,7; 31,1.33; 32,38.

 

Evangelho: Mt 15,1-2.10-14 (Ano A; anos B e C: 14,22-36)

O evangelho de hoje apresenta a controvérsia sobre o que puro e impuro, mas omite a resposta de Jesus sobre o tema da tradição dos antigos (vv. 3-9) e sua explicação para os discípulos (vv. 15-20). Mt copiou aqui Mc 7,1-23, mas com algumas mudanças, a mais importante é a inserção de vv. 12-14.

A longa discussão com os fariseus sobre as tradições e sobre o que é puro e impuro (vv. 1-20) contrasta com o sucesso de Jesus Cristo junto à multidão (cf. 14,34-36p, evangelho de ontem) e intercala-se, antes da partida de Jesus para terras pagãs (vv. 21-28). Enquanto Mt copiou esta discussão importante para seus leitores judeu-cristãos, Lc a omitiu (ou porque mudou seu itinerário das viagens de Jesus ou porque queria apresentar a cultura judaica com mais simpatia aos seus leitores gregos; cf. Lc 1-2; 11,38).

Naquele tempo, alguns fariseus e mestres da Lei, vindos de Jerusalém, aproximaram-se de Jesus, e perguntaram: “Por que os teus discípulos não observam a tradição dos antigos? Pois não lavam as mãos quando comem o pão!” (vv. 1-2).

Mt escreve para judeu-cristãos que conhecem os costumes e tradições judaicos, não precisa explicá-los como Mc 7,2-4. Mt acirra a disputa pela interpretação da lei, porque não escreve “fariseus e alguns mestres da lei” (Mc 7,1), mas “chegaram fariseus e mestres da lei”. Estes adversários típicos em Mt reaparecem depois de 12,38-45. “Vindo de Jerusalém” não indica coisa boa, mas sinaliza a proximidade da paixão de Cristo (cf. 2,3s).

Lavar as mãos antes de comer (cf. Jo 2,6) não é uma lei ritual escrita na Bíblia, portanto, a “tradição dos antigos” deve se referir a leis particulares da tradição dos antepassados que os fariseus ensinavam ao povo. Entre as muitas observâncias, algumas se referem a lavatórios e abluções cotidianas (cf. Jt 12,7-9), baseiam-se em leis do culto para sacerdotes, mas os fariseus levam ao extremo tentando impor ao povo todo (Ex 30,18-21; 40,12.31-32; Lv 15; Nm 19; Dt 21,6; Eclo 34,25; Hb 9,10). Não se trata de higiene, mas de pureza ritual, diferente de uma purificação do coração (conversão; cf. Is 1,16; 4,4; Ez 36,25; Mc 1,4; Hb 6,2; 1Pd 3,21).

Na sua resposta (omitida na liturgia de hoje), Jesus opõe a “vossa tradição” (v. 6) ao mandamento de Deus que os fariseus transgredem na prática (do corban, cf. vv. 3-6) e cita Is 29,13; Sl 78,36s.

Jesus chamou a multidão para perto de si e disse: “Escutai e compreendei. Não é o que entra pela boca que torna o homem impuro, mas o que sai da boca, isso é que torna o homem impuro” (vv. 10-11).

Jesus chama a multidão, porque seu ensinamento tem agora significado geral. Na escola de Mt, precisa “escutar” e também “compreender” (cf. 13,15.23.36; 16,8-12).

Jesus pode ter falado da preferência da pureza interior do coração (23,23-25), mas na passagem do evangelho para os países pagãos (fora de Israel), a diferença entre alimentos puros e impuros ficou cancelada (cf. At 10,9-16, por ex. Rm 14,14: “nada é impuro em si”; cf. Mc 7,7,15.19). Mt não interpreta neste sentido geral, mas subordina a lei ritual à lei maior do amor (cf. 5,17-19; 8,1-4; 22,34-40; 23,23-26). Já o judaísmo na diáspora (fora de Israel e da influência dos fariseus) valorizava mais as leis éticas do que as leis rituais (Filon: Impureza é, em primeiro lugar, a injustiça e o ateísmo).

Pelo v. 16, deve se completar: O que entra pela boca, não torna impuro o homem todo, apenas afeta sua barriga. Mas o que sai da sua boca, vem do seu coração e assim pode demonstrar sua impureza. Assim a doutrina que vem da boca dos fariseus, sua tradição que invalida o mandamento de Deus, torna impuros os próprios fariseus.

Então os discípulos se aproximaram e disseram a Jesus: “Sabes que os fariseus ficaram escandalizados ao ouvir as tuas palavras?” Jesus respondeu: “Toda planta que não foi plantada pelo meu Pai celeste será arrancada. Deixai-os! São cegos guiando cegos. Ora, se um cego guia outro cego, os dois cairão no buraco” (vv. 12-14).

Estes vv. 12-14, Mt inseriu por conta própria na sua fonte (o relato de Mc 7,1-23). Na época de Mt, os fariseus eram os principais protagonistas do judaísmo e queriam impor sua visão depois da guerra judaica (70 d.C.). Por isso, eles aparecem como principais oponentes nos evangelhos (e na polêmica de Mt pela interpretação correta da lei), porque outros oponentes e inimigos maiores, os sacerdotes saduceus, já deixaram de existir após a destruição do templo naquela guerra.

Os fariseus se sentem eleitos por Deus. Dizer que não foram plantados por Deus, é ofensa a eles. O leitor se lembra da parábola do trigo e do joio (o joio não foi plantado por Deus; 13,24-30.36-43). “Será arrancada” é anúncio do julgamento divino. Os judeu-cristãos da comunidade de Mt não devem seguir os fariseus, porque são “guias cegos” (cf. 23,16.24), enquanto Jesus cura os cegos (cf. 12,22ss com distorção dos fariseus; e as curas duplicatas de 9,27-31; 20,29-34). A cegueira dos fariseus em 23,16-26 consiste também na sua interpretação da lei, não sabem distinguir o importante do insignificante e assim erram totalmente, não acertando a vontade de Deus. Este caminho terminará numa catástrofe, “cairão na cova”.

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