4 de Agosto 2019, Domingo: E disse-lhes: “Atenção! Tomai cuidado contra todo tipo de ganância, porque, mesmo que alguém tenha muitas coisas, a vida de um homem não consiste na abundância de bens”.

18º Domingo do Tempo Comum 

 1ª Leitura: Eclo 1,2; 2,21-23

A 1ª leitura foi escolhida em vista do evangelho que fala da loucura de se apegar aos bens materiais, quando a morte pode chegar a qualquer hora. O livro de Ecl se parece com a filosofia pós-moderna questionando os grandes ideais e colocando o sentido da vida numa felicidade que é viver o presente.

O nome “Eclesiastes” é tradução grega do hebraico “Coélet”, o homem da assembleia (em hebraico qahal, em grego ekklésia). Coélet pode ser nome próprio ou ainda indicar a função de que reúne uma comunidade e lhe fala. A Bíblia de Jerusalém (p. 1167) comenta: De um lado, significa Mestre ou Orador; de outro, o representante da assembleia, o público personificado e que, cansado do ensinamento clássico, aproveita o ensejo para fazer o uso da palavra. A Bíblia do Peregrino (p. 1489): O vocábulo Coélet funciona como nome e como função, sem ou com artigo: compare-se com Esd 2,55 (soféret) ou Is 40,9 (mebasséret). A tradução etimológica seria “assembleísta”, e poderia designar aquele que dirige a palavra.

Obs.: Nossa palavra portuguesa “Igreja” (cf. o espanhol iglesia) vem do grego ekklésia (assembleia convocada) que traduz o hebraico qahal (assembleia de Javé). Às vezes, este livro Ecl é confundido com Eclo (Eclesiástico, que é chamado também pelo nome do seu autor “Ben Sirac”) que tem seu nome por causa da “aprovação eclesiástica”, ou seja, Eclo é um dos sete livros do AT que a Igreja Católica aprovou como parte das Sagradas Escrituras, enquanto os judeus e protestantes não o aprovaram como tal.

O título do livro (omitido pela nossa liturgia) foi acrescentado posteriormente: “Palavra de Coélet, filho de Davi, rei em Jerusalém” (v. 1). Apresenta o autor Coélet (“Eclesiastes”) como se fosse o rei Salomão, “filho de Davi”, segunda a tradição que via nesse rei o incentivador e modelo da sabedoria (1Rs 5,9-14).

”Vaidade das vaidades”, diz o Eclesiastes, “Vaidade das vaidades! Tudo é vaidade” (v. 2).

Esta expressão abre e fecha o livro original (12,8). Por influência do latim consagrou-se como “vaidade das vaidades”, ou “vazio”, muitas vezes lida em sentido moral, traindo o original hebraico: o ser humano não consegue compreender a totalidade das coisas e situações, porque tudo é vazio, escapa e desaparece como fumaça.

O termo hebraico hébel, traduzido aqui por “vaidade”, seguindo as versões tradicionais, significa, antes de tudo, “sopro”, “hálito”, “fumaça”, “vapor”, pertencendo ao repertório das imagens (água, sombra, fumaça, etc.) que na poesia hebraica descrevem a fragilidade humana; é a mesma palavra do nome Hébel (= Abel, Gn 4,2). Entretanto, no uso de Ecl, o termo perdeu o seu sentido concreto, evocando apenas o ser ilusório das coisas e, por conseguinte, a decepção que elas proporcionam ao homem. Por translação, significa o que não tem substância, o vazio, oco, nada.

“Vaidade das vaidades” é uma espécie de superlativo – como “cântico dos cânticos” significa “o melhor cântico”. Poder-se-ia traduzir: sopro ligeiro, suspiro leve, ou então, vazio completo, total falta de sentido, nada de nada, ilusão das ilusões.

Por exemplo: um homem que trabalhou com inteligência, competência e sucesso, vê-se obrigado a deixar tudo em herança a outro que em nada colaborou. Também isso é vaidade e grande desgraça. De fato, que resta ao homem de todos os trabalhos e preocupações que o desgastam debaixo do sol? Toda a sua vida é sofrimento, sua ocupação, um tormento. Nem mesmo de noite repousa o seu coração. Também isso é vaidade (vv. 21-23).

A Nova Bíblia Pastoral (p. 819s) comenta: Uma das poucas certezas do autor é que o trabalho só tem sentido enquanto o trabalhador puder aproveitar os frutos do próprio trabalho, vivendo o momento presente, comendo, bebendo e se alegrando. E se isso acontece, só pode ser um dom de Deus, ainda que não seja possível compreender por que o sábio pareça levar a pior com seus sofrimentos, enquanto o insensato recebe tudo de mão beijada. Portanto, é ilusória, sem sentido e injusta a vida do trabalhador explorado tanto quanto a do patrão explorador ou do herdeiro que nada sofreu e tudo recebeu sem esforço.

O autor observa a realidade que contraria as expectativas. Pode se pensar no próprio Salomão, sábio e inteligente, que tinha de deixar o reino para seu sucessor (cf. vv. 18s). De fato, seu filho Reboão não tinha a mesma compreensão e sabedoria (cf. 1Rs 3) e perdeu a unidade do reino que se dividiu em dois (o reino do Norte, Israel e o reino do Sul, Judá; cf. 2Rs 12).

Uma das maldições clássicas na Lei e nos Profetas é trabalhar e não desfrutar (cf. Lv 26,16; Dt 28,30-33). Há pessoas que se condenam tal maldição porque ocupadas no esforço de acumular, não tem tempo para desfrutar (cf. 1,3.18; Eclo 40,5). A Bíblia do Peregrino (p. 1492) comenta: Precisamente o desengano será o recurso para encontrar remédio ao irremediável. Quando o homem se desengana da ambição, aprende a desfrutar dos bens simples e sabe recebe-los das mãos de Deus… O que dá sentido à vida é a volta aos bens simples, ao ritmo equilibrado do trabalho e do desfrute (Lv 26,10; Dt 28,8.11; Is 62,8-9). Para alcançá-lo, é preciso vencer dupla ambição: a posse sem limites e a descoberta do último sentido de tudo.

Não é a busca desenfreado de prazer (cf. Is 22,13; Sb 2,1-9; 1Cor 15,32), o “carpe diem” (desfrute o dia) da filosofia epicurista, mas contentar-se com as pequenas coisas e vê-las como dom de Deus que traz felicidade. Para entender melhor o teor deste livro que ainda não conhece a recompensa na vida eterna nem a ressurreição, acrescentamos a introdução do livro na Bíblia Pastoral que traz o contexto:

O aparente pessimismo do Eclesiastes ou Coélet pode desconcertar o leitor. Na verdade, porém, trata-se de um livro profundamente crítico, lúcido e realista sobre a condição do povo na Palestina, por volta do século III a.C. A Palestina era então colônia do império grego dos Ptolomeus, ao qual devia pagar pesados tributos, que eram arrecadados pela família dos Tobíadas, que controlava o comércio, a economia e a política interna. O autor escreveu durante esse tempo de exploração interna e externa (250 a.C.), que não deixava esperanças de futuro melhor para o povo. Num mundo sem horizontes, ele fez um balanço sobre a condição humana, buscando apaixonadamente uma perspectiva de realização.

Quais os caminhos para realizar a vida e a felicidade? O autor desmonta as ilusões que um determinado sistema de sociedade apresenta como ideal (riqueza, poder, ciência, prazeres, status social, trabalho para enriquecer etc.) e coloca uma pergunta fundamental: “Que proveito tira o homem de todo o trabalho com que se afadiga debaixo do sol?” (1,3).

Em vez de cair no desespero, o autor descobre duas grandes perspectivas: Primeiro, descobre Deus como Senhor absoluto do mundo e da história, devolvendo a Deus a realidade de ser Deus. Depois, descobre o Deus sempre presente, fazendo o dom concreto da vida para o homem, a cada instante e continuamente. Isso leva o homem a descobrir que a própria realização é viver intensamente o momento presente, percebendo-o como lugar de relação com o Deus que dá a vida. Intensamente vivido, o momento presente se torna experiência da eternidade, saciando a sede que o homem tem da vida. Todavia, para que se possa de fato viver o presente é preciso usufruir o fruto do próprio trabalho (2,10; 2,24; 3,13.22; 5,18-20; 9,9). E aqui temos uma pergunta crucial: Que presente de vida resta para o povo, quando ele é impedido de usufruir do resultado do trabalho com que se afadiga debaixo do sol?

O Eclesiastes ou Coélet denuncia portanto as consequências de uma estrutura social injusta. O povo não tem presente, quando é impedido de usufruir do fruto do próprio trabalho. Consequentemente, fica sem vida, que lhe foi roubada não por esta ou aquela pessoa, mas por todo um sistema social dependente que, para privilegiar uma minoria, acaba espoliando a nação inteira. E aqui, o autor mostra que isso se trata, em primeiro lugar, de um pecado teológico: Deus dá a vida para todos; se ela é roubada, o roubo é um desvio na própria fonte da vida.

O Eclesiastes é convite para destruir e construir. Destruir uma falsa concepção a respeito de Deus e da vida, muitas vezes justificada por concepções teológicas profundamente arraigadas. Depois, construir uma nova concepção de vida, que é dom gratuito de Deus, para que todos a partilhem com justiça e fraternidade. Só então todos poderão ter acesso à felicidade, que consiste em usufruir a vida presente que, intensamente vivida, é a própria eternidade.

2ª Leitura: Cl 3,1-5.9-11

Na 2ª leitura de hoje, Paulo (ou um discípulo dele, que escreveu em nome de Paulo) não despreza as realidades terrestres, mas introduz a perspectiva da ressurreição que glorifica o corpo e toda matéria.

Se ressuscitastes com Cristo, esforçai-vos por alcançar as coisas do alto, onde está Cristo, sentado à direita de Deus; aspirai às coisas celestes e não às coisas terrestres. Pois vós morrestes, e a vossa vida está escondida, com Cristo, em Deus. Quando Cristo, vossa vida, aparecer em seu triunfo, então vós aparecereis também com ele, revestidos de glória (vv. 1-4).

O autor da carta frisa mais uma vez que a salvação já aconteceu pela obra de Cristo (cf. 2,12s; Ef 2,6) e não vem pelos elementos deste mundo (cf. 2,16-23), porque já fomos ressuscitados com Cristo, já estamos mortos para o pecado, mas esta verdade expressa pelo sacramento do batismo (cf. Rm 6,2-11) ainda está “escondida” e precisa ser vivida no dia a dia.

“Esforçai-vos por alcançar as coisas do alto, onde está Cristo, sentado à direita de Deus”, significa procurar a vida nova, revelada em Jesus Cristo, em oposição ao mundo antigo. Isto se apoia na citação de Sl 110,1: “Senta-te à minha direita” (cf. Mc 12,35-37p; 14,62p; At 2,33s; Rm 8,34; 1Cor 15,25; Ef 1,20; Hb 3,1.13; 8,1; 10,12; 12,2; 1Pd 3,22).

O mistério da união com Cristo glorificado se projeta nas coordenadas imaginativas de espaço e tempo: terrestre e celeste, presente e futuro. Cristo glorificado vive em nós (“vossa vida”, v. 4), e nós por ele. Como Cristo está agora escondido, invisível, embora possa ser experimentado (2Cor 13,5), também nossa vida com ele “está escondida” (v. 3). Quando ele se “manifestar na glória” da parusia (sua volta nas nuvens; cf. 1Ts 1,10; 4,16s), também se manifestará nossa vida glorificada. Nesta carta é a única referência à esperança da vinda futura de Cristo, no entanto mostra que esta expectativa continua fazendo parte da fé cristã, embora não tenha mais a ênfase que recebeu nas cartas genuínas de Paulo.

Portanto, fazei morrer o que em vós pertence à terra: imoralidade, impureza, paixão, maus desejos e a cobiça, que é idolatria. Não mintais uns aos outros. Já vos despojastes do homem velho e da sua maneira de agir e vos revestistes do homem novo, que se renova segundo a imagem do seu Criador, em ordem ao conhecimento (vv. 5.9-10).

A vida antes e depois do batismo é caracterizada: “antigamente” e “agora” (vv. 7-8 omitidos pela nossa liturgia; cf. 1,21s), “homem velho” e “homem novo” (vv. 9-10). Como já expressa a renúncia no rito batismal, as paixões desordenadas, palavras falsas e indecentes, ira e a “cobiça que é idolatria” devem ser abandonadas, mortificadas (“fazei morrer”), purificadas. É a mesma lista de vícios de 1Ts 4,3-8, mas com adição de idolatria.

Agora saindo da água do batismo, somos vestidos de Cristo, do homem novo e devemos levar uma vida nova. A obra de morte e ressurreição, operada pelo batismo de maneira instantânea e absoluta no plano místico da união com Cristo celestial (cf. 2,12s.20; 3,1-4; Rm 6,4), deve realizar-se de modo lento e progressivo no plano terrestre do velho mundo em que o cristão permanece mergulhado. Já morto em princípio, deve ele morrer de fato, “mortificando” dia a dia o “homem velho” do pecado que nele vive.

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2297) comenta: A expressão “homem novo” (cf. Ef 2,15; 4,24) traduz a transformação radical da existência, significada pelo batismo. O AT anuncia a renovação do homem sob a influência do Espírito, que lhe dá um “coração novo”, capaz de conhecer a Deus (Ez 36,26-27; cf. Sl 51,12). Por meio de uma nova criação realizada em Cristo, “o segundo Adão” (1Cor 15,45) e “imagem de Deus” (Gn 1,27; Cl 1,15), o homem é conduzido à sua humanidade verdadeira: ele é “criado segundo Deus na justiça na santidade” (Ef 4,24) e se encaminha, pela obediência, ao verdadeiro conhecimento (Cl 3,10; cf. Gn 2,17).

Ai não se faz distinção entre grego e judeu, circunciso e incircunciso, inculto, selvagem, escravo e livre, mas Cristo é tudo em todos (v. 11).

O homem novo tem um caráter ao mesmo tempo coletivo (a Igreja) e pessoal (o batizado). Ele constitui a humanidade nova (Adão em hebraico significa simplesmente “ser humano”) para além das velhas pertenças e distinções de raça, religião, cultura, classe social (Gl 3,27s; 1Cor 12,13; Rm 10,12; cf. Jo 17,21), porque “Cristo é tudo para todos” (1Cor 15,28 atribui isso a Deus).

Evangelho: Lc 12,13-21

Junto aos outros evangelistas, Lc apresenta o ideal de uma vida simples (p. ex. 6,20p; 8,14p; 9,3p; 10,3; 11,3; 12,22-34; 18,18-30p); além disso, ele descreve a pobreza da família na infância  de Jesus (2,7.24), a ajuda financeira de discípulas (8,3), a parábola do rico ganancioso (12,13-21, evangelho de hoje), a parábola do rico esbanjador e do pobre Lázaro (16,19-31), a conversão do chefe dos publicanos, Zaqueu (19,1-10) e, no seu segundo volume, a comunidade primitiva praticando a partilha (At 2,42-45; 4,32-37; 5,1-11). Lc está preocupado com as injustiças sociais e a indiferença dos ricos (cf. os ais em 6,24-26).

No evangelho de hoje e nos vv. seguintes (12,13-34) apresenta diversos ensinamentos de Jesus sobre a atitude a tomar em face dos bens deste mundo: advertência geral a respeito de um pedido particular (vv. 13-15); parábola do rico insensato (vv. 16-21), conselho aos discípulos contra a preocupação com a alimentação e o vestuário (vv. 22-32), exortação à dar esmolas (vv. 33s).

Alguém, do meio da multidão, disse a Jesus: “Mestre, dize ao meu irmão que reparta a herança comigo”. Jesus respondeu: “Homem, quem me encarregou de julgar ou de dividir vossos bens?” (vv. 13-14)

A intervenção de “alguém, do meio da multidão” (cf. 10,25; 11,45) amplia o âmbito dos ouvintes (que era primeiramente dos discípulos; cf. v. 1). Ele chama Jesus de “mestre”, título comum dos rabinos que costumavam arbitrar tais coisas (doutores da lei).

Em Lc, a interpelação “homem” (na boca de Jesus ou de Pedro: 5,20; 12,14; 22,58.60) designa mais distância do que “filho” (2,48; 15,31; 16,25) ou “amigo” (11,5; 14,10). O homem pede a Jesus que assuma uma tarefa temporal. Jesus se recusa a fazê-lo; ele se distingue assim de Moisés, que pelo contrário, “arvorava-se em chefe e juiz” (Ex 2,14; cf. At 7,27-35). Nas primeiras comunidades cristãs, também se julgavam casos temporais (cf. 1Cor 6,4).

A Bíblia do Peregrino (ág. 2499) comenta: Tinha razão talvez aquele homem, ao reclamar o que lhe era devido (cf. Gn 21,10; Jz 11,2); é razoável supô-lo. Naquela cultura, herdar era assunto importante, não somente para o herdeiro, mas também para a continuidade da família. O Eclesiástico instrui sobre testamentos (Eclo 32,20-24). Pois bem, Jesus não veio dirimir pleitos de interesses financeiros, ele ensina a dar mais do que a reclamar.

E disse-lhes: “Atenção! Tomai cuidado contra todo tipo de ganância, porque, mesmo que alguém tenha muitas coisas, a vida de um homem não consiste na abundância de bens”. E contou-lhes uma parábola: (vv. 15-16a)

Jesus ensina a dar mais do que a receber ou reclamar (cf. At 20,35). A raiz que vicia as relações humanas e escraviza a vida às posses é a cobiça, a “ganância” (Mc 7,22; Rm 1,29; 2Cor 9,5; Ef 4,19; 5,3; Cl 3,5; 2Pd 2,3.14; cf. Tg 4,13-5,6). A riqueza não é seguro de vida (Sl 49). “A vida de um homem não consiste na abundância de bens” (lit. “sua vida não procede de seus bens”).

Esta afirmação geral conclui a introdução da parábola seguinte, explicando por que Jesus se recusa a ocupar-se de questões de dinheiro: este não é a fonte de vida. Jesus responde com uma parábola como em 7,40-43; 10,30-37; 14,16-24; 15,3-32. Esta parábola não é uma comparação (“O reino de Deus é como…”; cf. 8,4-15p; 13,18-21p), mas um exemplo que apresenta uma atitude a imitar ou a evitar (cf. 10,29-37; 16,1-8; 18,9-14).

A terra de um homem rico deu uma grande colheita. Ele pensava consigo mesmo: “O que vou fazer? Não tenho onde guardar minha colheita” (vv. 16b-17).

Este “homem rico” é um exemplo de confiança nas riquezas (Sl 49,7.19; 52,9; Pr 11,28). Pode ser inspirado em Eclo 11,18-28: “Quando diz: agora posso descansar, agora comerei de minhas posses, não sabe o que acontecerá até que o deixe a outro e morra” (cf. o evangelho apócrifo de Tomé, nº 63).

Num monólogo interior, o rico se denuncia. Não se consulta com Deus nem com outras pessoas. Nas parábolas de Lc, as pessoas exprimem muitas vezes o seu pensamento num monólogo (15,17-19; 16,3; 18,4; 20,13; cf. 12,45; também em Mt 21,38; 24,48).

Então resolveu: “Já sei o que fazer! Vou derrubar meus celeiros e construir maiores; neles vou guardar todo o meu trigo, junto com os meus bens. Então poderei dizer a mim mesmo: Meu caro, tu tens uma boa reserva para muitos anos. Descansa, come, bebe, aproveita!” (vv. 18-19)

O ideal deste rico, sua filosofia de vida, é trabalhar e acumular, comer e beber, aproveitar e desfrutar (cf. Jr 22,15; Ecl 2,24; 3,13; 8,15; Tb 7,10); espera “muitos anos” de vida; trabalhou e agora pode “descansar”; acumulou e poder viver de rendas. Seu horizonte é imanente: esta vida (cf. Sb 2,1-9), como era de muitos dos leitores greco-romanos de Lc.

“Poderei dizer a mim mesmo: Meu caro, tu tens…”, lit.: “Eu direi a minha alma: Alma, tu tens…”. A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2004) comenta: A palavra “alma” designa aqui, como muitas vezes no AT, o ser vivo todo inteiro, a pessoa. Deve-se traduzi-la por vida (6,9; 9,24; 12,20.22s; 14,26; 17,33; 21,19), ou como aqui, por um pronome pessoal.

Aliás, o materialista não pensa numa alma que transcende esta vida terrena (cf. a piada da oração ateísta/agnóstica: “Ó Deus, se o Senhor existir, salve a minha alma, se eu tiver uma”).

Mas Deus lhe disse: “Louco! Ainda nesta noite, pedirão de volta a tua vida. E para quem ficará o que tu acumulaste?” (v. 20).

Ao monólogo do rico responde o próprio Deus chamando-o de “louco”; essa filosofia de vida é “insensata” (Sb 2,1.21-22; Sl 39,6s). O rico tem a vida apenas como empréstimo e está vencendo o prazo de restituí-la. O futuro sonhado “para muitos anos” se mostra como ilusão: “ainda nesta noite”; nas línguas semíticas, o plural impessoal, “pedirão de volta a tua vida”, pode designar Deus (cf. 6,38; 16,9) como Senhor da vida e da morte, seja aqui o anjo da morte (idêntico com Satanás) ou o próprio Senhor que clama o rico deste mundo pela morte.

Assim acontece com quem ajunta tesouros para si mesmo, mas não é rico diante de Deus (v. 21).

A falta do v. 21 em alguns manuscritos pode indicar que a parábola na versão original de Jesus já terminou sua lição, reafirmando o v. 15: o sentido da vida não consiste na abundância de bens, mas na espera pela vinda do reino de Deus.

Lc não condena proprietários em si, somente quando se fecham no egoísmo (cf. 15,6s.9s.32; 16,1-5; 19,1-27). Ele pode ter acrescentado o v. 21 em que sobressai qual é a verdadeira riqueza. “Rico diante de Deus” traduz-se também “visando a Deus” ou “ao olhar de Deus”. É o mesmo convite a ajuntar para si um tesouro no céu e ser defensor dos pobres (12,33; 18,22; cf. 16,9; Mt 6,19; At 2,45; 4,34). Rico para Deus é quem ajuda o próximo com o que é seu: “Quem se compadece do próximo empresta a Deus” (Pr 19,17; Eclo 29,8-13; cf. Tb 4,8-11).

O site da CNBB comenta: “Mas Deus lhe disse: ‘Louco’.”  Louco é aquele que é incapaz de perceber a verdadeira hierarquia dos valores e submete o eterno ao temporal, o celeste ao terreno, fazendo com que o acúmulo de bens materiais se tornem a causa maior da sua própria felicidade, o que faz com que ele feche a sua vida para os valores que são eternos e que trazem a felicidade que não tem fim. A verdadeira loucura consiste em não conhecer a Deus e, por isso, não valorizar a sua presença em nossas vidas, não viver no seu amor e não amar, de modo que não haja partilha de todos os bens, não possibilitando um crescimento mútuo e um projeto comum de felicidade, que dura para sempre.

 

 

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