4 de Maio de 2021, Terça-feira: Se me amásseis, ficaríeis alegres porque vou para o Pai, pois o Pai é maior do que eu (vv. 27b-28).

Páscoa 5ª semana 3ª feira

Leitura: At 14,19-28

Ouvimos hoje sobre o final da primeira viagem missionária de Paulo e Barnabé. Os habitantes da cidade de Listra (na atual Turquia) queriam adorar Paulo e Barnabé, achando que seriam deuses porque tinham curado um aleijado (vv. 8-18, leitura de ontem), mas depois se voltam contra eles. Esta mudança de opinião, instigada por judeus invejosos, lembra a mudança do povo em Jerusalém: da aclamação ao messias (“Hosana”) no Domingo de Ramos ao grito de condenação (“Crucifique-o”) na Sexta-feira Santa.

De Antioquia e Icônio chegaram judeus que convenceram as multidões. Então apedrejaram Paulo e arrastaram-no para fora da cidade, pensando que ele estivesse morto. Mas, enquanto os discípulos o rodeavam, Paulo levantou-se e entrou na cidade. No dia seguinte, partiu para Derbe com Barnabé (vv. 19-20).

A ligação desse desfecho inesperado é muito artificial, e a notícia da libertação de Paulo é esquemática e estranha nesse contexto, embora na atividade de Paulo não tenha faltado casos semelhantes (2Tm 3,11; 2Cor 11,25). O narrador quer fazer-nos sentir que o inimigos de Paulo o perseguem onde quer que ele esteja, mas ele não desiste: “se levantou” (mesma palavra que “ressuscitou”) no meio dos discípulos de novo. Diante de testmunhas, Saulo-Paulo havia colaborado no apedrejamento do diácono Estêvão (7,58; 8,1), agora ele aceita ser apedrejado por ser testemunha de Jesus (cf. v. 22).

Depois de terem pregado o Evangelho naquela cidade e feito muitos discípulos, voltaram para Listra, Icônio e Antioquia. Encorajando os discípulos, eles os exortavam a permanecerem firmes na fé, dizendo-lhes: “É preciso que passemos por muitos sofrimentos para entrar no Reino de Deus“. Os apóstolos designaram presbíteros para cada comunidade. Com orações e jejuns, eles os confiavam ao Senhor, em quem haviam acreditado (vv. 21-23).

Não ouvimos de perseguições em Derbe, mas de sucesso, apesar disso os apóstolos resolveram voltar. Pegam o mesmo caminho de volta pelas três cidades Listra, Icônio e Antioquia da Pisídia (não confundir com Antioquia da Síria), onde já tinham passado por sofrimento e perseguição (2Tm 3,11). Estão conscientes que seguir e anunciar Jesus significa “passar por muitos sofrimentos para entrar no reino de Deus” (9,16; Mc 13,9.13; Mt 10,22; 24,9.13; Rm 5,3-5; 2Tm 2,12; 3,12; Hb 10,36 ), é preciso aceitar a cruz para entrar na luz (Mc 8,34-9,1p).

Novamente, arriscando a vida, fazem duas coisas importantes na segunda visita (pós-missão): encorajar os discípulos exortando-os a permanecerem firmes na fé (cf. 11,23; 13,43; Rm 1,11; 1Ts 3,2s.13; Lc 22,32) e organizar as comunidades, designando para cada uma “presbíteros”, ou seja, um responsável ou uma equipe de responsáveis.

Seguindo o costume do antigo Israel (Ex 18,13s; Nm 11,16; Js 8,10; 1Sm 16,4; Is 9,14; Ez 8,1.11 etc.) e do judaísmo (Esd 5,5; 10,14; Jt 6,16; Lc 7,3; 22,66; At 4,5 etc.), as primeiras comunidades cristãs instituíram presbíteros como liderança, começando por Jerusalém (além dos apóstolos, cf. At 11,30; 15,2.4.6.22s; 16,4; 21,18) e também afora, na diáspora (14,23; 20,17; Tt 1,5). A palavra grega significa literalmente “anciãos”; em hebraico “barbudos”, expressando maturidade. Os presbíteros eram homens reconhecidos e estavam encarregados não apenas com a administração, mas também com o ensino e o governo das comunidades.

Nos escritos do Novo Testamento (NT), ainda não temos os três graus de ordem (diácono; presbítero=sacerdote=padre; bispo) tal distintos como hoje. No início, os presbíteros se confundem com os epíscopos (daí nossa palavra “bispos”, cf. Tt 1,5.7; At 20,17.28). Estes anciãos/presbíteros, aqui não são escolhidos pela comunidade, mas pelos apóstolos (igualmente em Tt 1,5) que impuseram as mãos e os confiavam ao Senhor (cf. 6,6; 13,3; 14,26).

“Os apóstolos designaram”; no texto original apenas: “eles designaram”. Só em 14,4.14, o autor dos Atos (Lc) usa ao termo “apóstolos” para pessoas fora dos Doze. Ele quer reservar este título para aqueles testemunhas oculares (cf. Lc 1,2) que acompanhavam Jesus na terra, desde o batismo até a ressurreição (At 1,22). Nem Paulo, que nas cartas insistiu tanto neste título para si mesmo (1Rm 1,1; 1Cor 1,1; 2Cor 1,1; etc.), é chamado apóstolo nos Atos, apenas “instrumento escolhido” (At 9,15) para levar o evangelho diante das nações pagas. Mas nesta viagem, Paulo e Barnabé são apóstolos no sentido literal: a palavra grega apóstoloi significa “enviados” (14,4.14), aqui pela comunidade de Antioquia da Síria que enviou Barnabé e Paulo em 13,1-3 e à qual agora retornam e relatam em seguida. Em nossa liturgia, só três homens, fora dos Doze, são festejados como apóstolos: Matias (eleito no lugar de Judas, cf. 1,15-26, seu dia é 14/05), Barnabé (11/06), e Paulo (25/01 e 29/06). Outros companheiros de Paulo, como Timóteo e Tito, são festejados como bispos (26/01). O papa Francisco igualou a festa de Maria Madalena às dos apóstolos (22/07; cf. Jo 20,17s).

Em seguida, atravessando a Pisídia, chegaram à Panfília. Anunciaram a palavra em Perge, e depois desceram para Atália. Dali embarcaram para Antioquia, de onde tinham saído, entregues à graça de Deus, para o trabalho que haviam realizado. Chegando ali, reuniram a comunidade. Contaram-lhe tudo o que Deus fizera por meio deles e como havia aberto a porta da fé para os pagãos. E passaram então algum tempo com os discípulos (vv. 24-28).

Paulo e Barnabé voltam da Pisídia descendo ao litoral de Panfília (em Perge, João Marcos havia se separado de Paulo e Barnabé, cf. 13,13). Sem passar mais pela ilha de Chipre (cf. 13,4-13), pátria de Barnabé (4,36), embarcaram logo para Antioquia da Síria (no rio Orontes, hoje Antyaka na atual Turquia, divisa com a Síria e perto do Líbano), lugar de origem para esta missão, onde foram escolhidos e enviados “entregues a graça de Deus” (v. 26; cf. 13,1-4). Reuniram esta comunidade, onde já se se havia iniciada a primeira evangelização sistemática aos pagãos (11,20) e contavam, o que “Deus fizera por meio deles e como havia aberto a porta da fé para os pagãos.” Esta metáfora da “porta aberto da fé” inspirou Bento XVI para seu documento “A porta da Fé”, abrindo o Ano da Fé (2013).

A Bíblia do Peregrino (p. 2665) comenta: Mencionar Deus como autor principal de toda a tarefa missionária não é só reconhecimento humilde, mas também afirmar que a pregação aos pagãos da forma empreendida, é ação de Deus. A experiência humana é uma faceta menor do grande projeto divino. A porta aberta, aos pagãos pelo próprio Deus, é metáfora expressiva (11,18; 13,47-48; 1Cor 16,9; 2Cor 2,12; Cl 4,3).

 

Evangelho: Jo 14,27-31a

Ouvimos hoje o término da primeira parte do discurso de despedida na última ceia de Jeseus no quarto evangelho.

(Naquele tempo, disse Jesus a seus discípulos:) “Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou; mas não a dou como o mundo” (v. 27a).

A Bíblia do Peregrino (p. 2598) comenta: A paz era a saudação judaica corrente de chegada ou despedida (Ex 4,18; Jz 18,6), com frequência simples palavras convencional. São clássicos a saudação a Jerusalém (Sl 122) e o anúncio messiânico (Is 9). O mundo defende pazes injustas ou defende a paz com paliativos ou pronuncia desejos hipócritas. Não assim a saudação ou despedida de Jesus que é sentida e eficaz (cf. Sl 85,9).

“Shalom” (paz em hebraico) é ainda hoje a saudação e despedida usuais dos judeus (cf. Lc 10,5p); compreende não apenas a ausência de inimigos, mas também a saúde corporal, a felicidade perfeita e a salvação trazida pelo messias. Tudo isso é dado por Deus. O ressuscitado saudará seus discípulos três vezes assim (20,19.21.26).

A paz é de Jesus (“minha”), porque não a dá “como o mundo”. Referindo-se à paz injusta do mundo, Jesus diz em Mt 10,34 e Lc 12,51: “Não vim trazer a paz, mas a espada/separação”. “Dar a paz” fazia parte da ideologia do imperialismo romano (pax romana). O poder do imperador restaura a ordem, e se necessário, com uso da força (exército, violência, pena de morte). Mas a paz que Jesus dá, não é de submissão forçada, mas de verdade e liberdade (cf. 8,32; 18,36-38) que dá serenidade ao indivíduo resistir mesmo contra a maioria e a violência.

Como Jesus dá a paz? Através do Espírito, o defensor e consolador (paráclito) que ensina aos discípulos (v. 26) o significado da partida de Jesus de modo que possam se alegrar sobre sua volta ao Pai (v. 28). É o “Espírito da Verdade, que o mundo não pode acolher, porque não o vê, nem o conhece” (v. 17), porque o mundo só consegue ver e apreciar a aparência e o superficial (cf. 1Sm 16,7). Aos olhos do mundo, a morte na cruz é só fracasso e fim da vida de Jesus, motivo de desânimo e medo para os discípulos (cf. Lc 24,13-36).

Não se perturbe nem se intimide o vosso coração. Ouvistes que eu vos disse: ‘Vou, mas voltarei a vós’. Se me amásseis, ficaríeis alegres porque vou para o Pai, pois o Pai é maior do que eu (vv. 27b-28).

Novamente Jesus tranquiliza e consola como no v. 1; ele irá partir, mas logo voltará (cf. v. 3), não só no final dos tempos (parusia), mas já como ressuscitado e dará seu Espírito Santo (20,22) que permanecerá para sempre naqueles que guardam seus mandamentos (vv. 15s.26).

Na verdade, a partida de Jesus é motivo de alegria, porque é cumprimento da sua missão que é obra de Deus (cf. 5,17; 19,30) e a volta à sua origem de onde saiu (13,3): o amor (seio, útero) do Pai (cf. 1,18). O Pai como origem “é maior”. Mesmo sendo igual ao Pai (10,30; cf. 8,24), o Filho tem a sua glória velada presentemente (1,14); seu retorno ao Pai a manifestará novamente (17,5; cf. Fl 2,6-9; Hb 1,3).

“O Pai é maior do que eu” é um dos textos debatidos ou defendidos na polêmica ariana. No séc. III, o presbítero Ariano insistiu que Jesus era apenas homem, apenas criatura do Pai que é o único Deus. Nos Concílios de Niceia (325) e Constantinopla (381), os bispos reunidos definiram o dogma da Trindade pelo qual o Filho é “gerado, não criado”, é da “mesma natureza” (ómooúsuos, consubstancialis) divina do Pai e como tal, existe desde sempre junto ao Pai. Depois, no Concílio de Calcedônia (451), definiu-se que Cristo tem duas naturezas: a humana (menor do que o Pai) e a divina (o verbo igual ao Pai, cf. Jo 1,1s).

Ao longo do evangelho e neste discurso há dados para explicar porque o Pai é maior: O Pai é a origem, ele enviou seu Filho, traçou o desígnio que ele deve executar, comunica-lhe o que vai dizer. Jesus representa e revela o Pai no mundo (vv. 9s), mas não é o Pai. Seu lugar está no Pai. A resposta se dá no plano da função; no plano ontológico (do ser, da natureza divina), os teólogos distinguirão “como homem, como Deus”. O mesmo evangelho afirma também a divindade de Jesus sem desistir do monoteísmo: A pré-existência do Verbo que se fez carne (1,1-18) e afirmações como “Eu e o Pai somos um” (10,30) e “Meu Senhor e meu Deus” (20,28) apoiam o dogma da Trindade (um só Deus em três pessoas distintas).

Disse-vos isto, agora, antes que aconteça, para que, quando acontecer, vós acrediteis (v. 29).

Impressiona como o quarto evangelho trabalha a morte de Jesus como abalo possível da fé. Para fortalecer a fé (dos ouvintes) repete várias vezes a predição da partida (só no discurso de despedida: 13,19; 14,29; 16,4). Anunciar de antemão é próprio de quem controla o futuro. Ao pronunciá-lo, tranquiliza e conforta; ao cumprir-se pode acreditar e ilumina. O esquema encontra-se em Deutero-Isaías: “Predisse o passado de antemão, de repente o realizei e aconteceu” (48,3-5).

Em Jo, Jesus controla seu destino perfeitamente, sua paixão é entrega voluntária (cf. 10,17s; 18,4-11) para cumprir a vontade do Pai na sua “hora” prevista (cf. 2,4; 7,30; 8,20; 12,23.27; 13,1; 17,1). Não foi um acidente, nem por acaso, nem fracasso humano, mas a vitória sobre o mundo (16,33). Assim também os discípulos (e leitores) terão fé e coragem quando enfrentarem tribulações.

Já não falarei muito convosco, pois o chefe deste mundo vem. Ele não tem poder sobre mim, mas, para que o mundo reconheça que eu amo o Pai, eu procedo conforme o Pai me ordenou” (vv. 30-31a).

Jesus conclui a primeira parte do discurso voltando-se à situação da última ceia, “estando para ser entregue e abraçando livremente a paixão” (Oração Eucarística II).

Em 13,30, Judas Iscariotes saiu da sala e com ele, Satanás (v. 27). Agora não resta muito tempo, porque “o chefe deste mundo vem” para prender e assassinar Jesus. O chefe (príncipe) deste mundo é o diabo, Satanás. Não porque ele seja poderoso, mas porque o mundo o segue voluntariamente. Ele é o “assassino dos homens desde o início” (8,44), mas não tem direito sobre Jesus porque este não tem pecado (8,46) e tem a vida em si como o Pai (5,26). Por isso, o diabo “não tem poder” sobre Jesus que dá sua vida voluntariamente (10,11.15.17; 12,27; 13,1). Nenhum inimigo, nem satanás, pode „roubá-la“ de Jesus (10,18). Ele dá “sua vida pelas ovelhas” (10,11.15), para todos, “para a vida do mundo” (6,51). Sua morte é expressão do „amor maior“ aos amigos (15,13), seu “fruto” é a vida dos seus (12,24).

A morte de Jesus não será uma vitória de Satanás, mas cumprimento do designo do Pai que o enviou (3,16s; 10,18), prova de amor e obediência frente a esse mundo hostil. Jesus ama o Pai e cumpre a vontade (mandamento) do Pai fielmente (4,34; 6,38; 8,28s). Por isso, é amado pelo Pai (10,17) e é “exemplo” (13,15) para seus discípulos (cf. 14,15.21.23).

Jesus “já não” pode falar “muito”, mas o que se segue são mais três capítulos (15-17) prolongando o mesmo discurso. Também o convite final (omitido pelo evangelho de hoje) parece indicar que num tempo ou numa tradição aqui já vinha o episódio do Getsêmani:  O v. 31b “Levantai-vos! Vamo-nos daqui” terá sua continuação só em 18,1: “Depois dessas palavras, Jesus saiu com seus discípulos”. Atualmente o discurso continua (ninguém se levanta e sai em 15,1) e se alonga por mais três capítulos (15-17) que foram inseridos, provavelmente pela redação eclesial que anexou também o cap. 21.

O site da CNBB comenta: No Evangelho de hoje, Jesus nos mostra um dos aspectos mais importantes do amor que é o desejo do bem maior para o outro. O mundo nos apresenta uma falsa ideia de amor que é o amor possessivo: quando amamos uma pessoa, queremos que ela esteja constantemente ao nosso lado porque assim somos felizes. Na verdade estamos pensando na nossa felicidade e não na da pessoa amada. Jesus diz: “Se me amasseis, ficaríeis alegres porque vou para o Pai, pois o Pai é maior do que eu”. Assim, de fato, somos nós, uma vez que nos entristecemos quando a felicidade maior do outro não é como gostaríamos que fosse. Na verdade, confundimos paixão e sentimentalismo com amor verdadeiro.

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