5 de Maio de 2021, Quarta-feira: Se permanecerdes em mim e minhas palavras permanecerem em vós, pedí o que quiserdes e vos será dado. Nisto meu Pai é glorificado: que deis muito fruto e vos torneis meus discípulos (vv. 7-8).

Tempo Pascal 5ª semana 4ª feira

Leitura: At 15,1-6

Ouvimos hoje e nos próximos dias sobre o primeiro concílio, convocado pelos próprios apóstolos e narrado por Lucas em At 15. A Bíblia do Peregrino (p. 2666) resume a caminhada nos Atos até este Concílio:

Na metade do livro se ergue, como momento decisivo, o que costumamos chamar de concílio de Jerusalém. Lucas narrador foi nos conduzindo por etapas até dividir o olhar entre duas igrejas, Jerusalém e Antioquia. Convidou-nos a reconhecer a primazia de Jerusalém e o dinamismo de Antioquia; induziu-nos a simpatizar com movimentos de abertura, a nós que somos descendentes daquele primeiro impulso.

                Simplificando um pouco podemos dizer que as duas igrejas seguem caminhos divergentes. A igreja de Jerusalém é formada ou dominada por judeu-cristãos, conservadores em certos aspectos. Consideram-se uma espécie de resto, no qual está cristalizando-se e crescendo o novo Israel, definitivo e total. São a continuidade escatológica. Garantem essa continuidade a descendência física e, espiritualmente, a circuncisão e a consequente observância da lei. De seu reduto, essa comunidade tem sido capaz de lançar expedições de difusão ou de capturar, em particular os helenistas e Pedro.

                A comunidade de Antioquia é heterogênea em sua composição, dinâmica em sua constante irradiação. Seu interior é convivência no pluralismo; para fora é abrir-se e assimilar. Judeu-cristãos convivem com helenistas e com pagãos convertidos. Os dois caminhos divergentes chegaram a ser opostos, inconciliáveis? Assim o julgam alguns grupos mais rigoristas (que hoje chamaríamos extrema direita). Segundo eles, sem a circuncisão e a lei se rompe a continuidade e não se pode formar o povo de Deus; a linha empreendida e seguida por Antioquia rompe a continuidade, não forma Igreja.

                Tal é o sentido da ação desses opositores anônimos que, por própria iniciativa (não enviados pela autoridade de Jerusalém), vêm denunciar a linha missionária de Antioquia. Em Jerusalém, é Tiago quem dirige a comunidade e o partido extremamente conservador. Em Antioquia, Barnabé e Paulo representam o impulso e a experiência da missão. A ação desses opositores tem mérito de provocar um esclarecimento oficial. Pois as tendências divergentes se prolongaram vários anos (se aceitamos o ano 48 como data mais provável do concilio).

                Lucas é consciente da importância do momento e constrói com traços essenciais um episódio perfeitamente equilibrado. No centro se contrapõem o discurso de Pedro e o de Tiago (vv. 7-11 e 13-21). A seus lados, um comunicado e discussão ante a comunidade e a decisão comunitária (vv. 4-5 e 22), deixando à parte o texto da carta (vv. 23-29); nos extremos, a polêmica em Antioquia e a solução aí mesmo (vv. 1-2 e 30-32).

                A versão divergente que um dos protagonistas dá desse episódio central (o próprio Paulo em Gl 2,1-10) complica a explicação. Se algumas divergências são explicáveis, outras o são dificilmente. Por um lado, o escrito de Paulo é polêmico frente aos gálatas, quer sublinhar sua dependência imediata do Espírito. Por outro, Lucas escreve num tempo em que diversos dados foram esquecidos ou reinterpretados. A leitura paralela de ambos os textos continua sendo instrutiva.

Chegaram alguns da Judeia e ensinavam aos irmãos de Antioquia, dizendo: “Vós não podereis salvar-vos, se não fordes circuncidados, como ordena a Lei de Moisés” (v. 1).

 A “porta da fé” foi aberta aos pagãos (14,27), mas sua entrada na Igreja sem a exigência (“alfândega”, diria o Papa Francisco) da circuncisão provoca o ataque de alguns judeu-cristãos autônomos, procedentes da “Judeia” (região de Jerusalém), mas “eles não foram enviados” (v. 24) pelos apóstolos. Na sua carta polêmica aos Galatas, Paulo os chama “falsos irmãos, os intrusos que se infiltraram para espionar a liberdade que temos em Jesus Cristo, a fim de nos tornar escravos” (Gl 2,4; em Gl 2,12 os designa como “certas pessoas do círculo de Tiago”). Eles declaram a impossibilidade da salvação sem a observância da Lei (lit. “costume”) de Moisés, ou seja, sem a “circuncisão” baseada na história e na lei (Gn 17; Lv 12,3).

Isto provocou muita confusão, e houve uma grande discussão de Paulo e Barnabé com eles. Finalmente, decidiram que Paulo, Barnabé e alguns outros fossem a Jerusalém, para tratar dessa questão com os apóstolos e os anciãos (vv. 2).

A discussão é tão forte que se decide apelar a uma instância superior: Jerusalém. Essa igreja é regida há tempo por apóstolos e por um senado (“anciãos”, grego: presbíteros) no estilo judaico. É lógico escolher outra vez (cf. 13,1-3) como delegados os dois grandes e experientes protagonistas da missão, Paulo, Barnabé “e alguns outros” (Gl 2,1-3 nomeia Tito, originário da gentilidade).

Os apóstolos, dos quais não se fala nem em 11,30 nem em 21,18, são aqui mencionados juntamente com o colégio dos “anciãos”; isto concorda com Gl 2,2-9, onde Pedro e João são citados como autoridades da igreja de Jerusalém ao lado de Tiago, “irmão do Senhor” (outro Tiago, irmão de João, já havia morrido, cf. 12,2).

Depois de terem sido acompanhados pela comunidade, Paulo e Barnabé atravessaram a Fenícia e a Samaria. Contaram sobre a conversão dos pagãos, causando grande alegria entre todos os irmãos (v. 3).

Descendo do norte, atravessam, primeiro a Fenícia (atual Líbano), depois a Samaria, onde residem comunidades fundadas pelos helenistas do círculo de Estêvaõ (8,1-25; 11,19). Essas comunidades apóiam a missão de Paulo e Barnabé, porque se alegram com o sucesso da missão entre os pagãos.

Chegando a Jerusalém, foram recebidos pelos apóstolos e os anciãos, e narraram as maravilhas que Deus tinha realizado por meio deles (v. 4).

Numa assembléia geral com as autoridades, os delegados informam, não sobre o que eles fizeram, mas sobre o que “Deus tinha realizado por meio deles” (cf. v. 12; 14,27); uma versão ao mesmo tempo objetiva e apologética.

Alguns, dos que tinham pertencido ao partido dos fariseus e que haviam abraçado a fé, levantaram-se e disseram que era preciso circuncidar os pagãos e obrigá-los a observar a Lei de Moisés. Então, os apóstolos e os anciãos reuniram-se para tratar desse assunto (vv. 5-6).

Isso não convence os “cristãos fariseus”, a ala mais conservadora de convertidos do partido farisaico (eram colegas de Saulo-Paulo na sua formação, radicalmente opostos em seus critérios atuais). Segundo Gl 2,1-5, suas exigências teriam visado mais diretamente a Tito que acompanhava Paulo e Barnabé a Jerusalém. A discussão de Antioquia se repete em outro nível em Jerusalém.

Os acontecimentos deste capítulo suscitam diversas dificuldades: 1° os vv. 5-7a retomam os vv. 1-2a como se o autor referisse duas origens diferentes da controvérsia, sem relacioná-las entre si; 2° no v. 6, tem-se a impressão de uma reunião separada dos dirigentes da comunidade, mas nos vv. 12.22 os debates se realizam diante de toda a assembléia cristã. Por isso, o texto ocidental acrescentou no v. 6: “e a assembléia” (cf. v. 12).

Essas dificuldades explicar-se-iam se admitíssemos que Lucas englobou numa só duas controvérsias distintas e as soluções diferentes que lhes foram dadas (Paulo distingue melhor em Gl 2): uma controvérsia, na qual tomaram parte Pedro e Paulo, sobre a obrigação da Lei judaica para os gentios convertidos (cf. Gl 2,1-10); e outra, posterior, suscitada pelo incidente de Antioquia (Gl 2,11-14), e na qual Tiago, na ausência de Pedro e de Paulo, desempenhou papel preponderante, acerca das relações sociais entre os cristãos vindo do judaísmo e os povos provenientes da gentilidade: todo contato com um gentil acarretava para o judeu uma impureza legal (cf. 11,3; 15,20).

Evangelho: Jo 15,1-8

Apesar da ordem de levantar e sair no v. anterior (14,30, que se cumprirá só em 18,1), Jesus continua ainda falando na última ceia por mais três capítulos (15-17). É um indício claro de uma redação posterior que respeitava o texto anterior acrescentando os caps. 15-17 (também cap. 21) sem camuflar a inserção. O interesse desta redação é eclesial, ou seja, o tempo depois da partida de Jesus.

A Bíblia do Peregrino (p. 2599) comenta o evangelho de hoje sobre a videira no seu conjunto (vv. 1-17)

O enunciado metafórico marca o começo, a menção do “fruto” (v. 16) marca o final dessa seção. Entre ambos temos o tema dominante ao qual se somam temas colaterais. O núcleo é constituído pela comparação (ou parábola) da videira e seu comentário. O estilo é o que estamos escutando: aforismos, frases rítmicas, paralelismos. São palavras chaves “dar fruto” e “permanecer”.

                No AT é mais frequente falar da vinha que da videira como imagem de Israel. Na linguagem poética, a distinção tem pouca importância; o uso pode ser ditado pela conveniência do tema ou pelo gosto do autor. Entre todos os textos que se costumam citar, acho mais pertinentes: Is 5,1-7; 27,2-5.10-11 (vinha); Jr 8,13; Ez 15 e 17; Sl 80 (videira). Ao tomá-los como pano de fundo, não pretendo reduzir Jo 15,1-17 a modelos tradicionais, mas mostrar a mudança radical operada. Em vários momentos a vertente real se impõe à imaginativa.

                O esquema de Is 5 é: um vinhateiro planta uma vinha seleta e dela cuida, espera que dê fruto, dá uvas azedas, ele se irrita e a destrói. O vinhateiro é Yhwh e a vinha é Israel, o fruto esperado é justiça e direito. João substitui: o vinhateiro é o Pai, a videira é Jesus; portanto, não uma planta humana, ainda que de qualidade (que depois falha), mas uma transplantada do céu, que não falhará; o fruto esperado é o amor a ele e o amor mútuo (que abrange e radicaliza a justiça).

                O desenvolvimento também é próprio de João, que obtém concentrando-se na videira e nos sarmentos (compara-se com Sl 80,12). Toda a vitalidade destes provém da sua união com a videira, e se traduz em dar fruto; separados, os sarmentos não dão fruto (Jr 8,13), secam, são queimados (Is 27,11).

Eu sou a videira verdadeira e meu Pai é o agricultor (v. 1).

Mais uma autorrevelação, “Eu sou…” (cf. 6,35; 8,12; 10,11.14; 11,25; 14,6), mas o interesse aqui é mais eclesial, não cristológico. Sobre a imagem da videira, cf. Jr 2,21; Is 5,1. Nos evangelhos sinóticos, Jesus a emprega como parábola do reino dos céus (Mc 12,1-12p; Mt 20,1-8; 21,28-32) e faz do “fruto da videira” a eucaristia da nova aliança (Mc 14,24-25p). Aqui em Jo, ele se proclama a verdadeira videira cujo fruto, o Israel verdadeiro (a Igreja), não decepcionará a expectativa divina.

A videira é verdadeira ou “genuína”, aludindo a Jr 2,21: “Eu te plantei, videira seleta, de cepas legítimas”.  Se Jesus é a videira verdadeira, supõe-se que haja falsas também. No âmbito pagão, o deus grego, Dionísio (equivalente ao deus romano, Baco) era o deus dos ciclos vitais, das festas, do vinho, da insânia, mas, sobretudo, da intoxicação que funde o bebedor com a deidade. Para Jo, seria uma videira falsa com suas orgias e banquetes, enquanto é Jesus que dá o vinho de melhor qualidade (cf. 2,1-12).

Todo ramo que em mim não dá fruto ele o corta; e todo ramo que dá fruto, ele o limpa, para que dê mais fruto ainda. Vós já estais limpos por causa da palavra que eu vos falei (vv. 2-3).

Cortar o ramo que não dá fruto é imagem realista, limpar o que dá fruto, não. Mas o texto não visa naturalismo, mas dar frutos como uma vida fiel aos mandamentos, especialmente ao do amor (vv. 12-17; cf. Is 5,7; Jr 2,21).

O grego usa o verbo “limpar” em vez de um próprio que signifique “podar”. Da imagem agrária salta para a realidade espiritual numa linguagem cultual, como em Ex 36,25.33 ou em Sl 51,4. Is 27,4 fala de “sarças e cardos” na vinha. A mensagem de Jesus recebida com fé purifica os fiéis (a mesma expressão ocorre no lava-pés, 13,10). Agora eles precisam ficar unidos (permanecer) nele para a redenção trazer efeito (fruto) neles.

Permanecei em mim e eu permanecerei em vós. Como o ramo não pode dar fruto por si mesmo, se não permanecer na videira, assim também vós não podereis dar fruto, se não permanecerdes em mim (v. 4).

A relação entre videira e sarmentos sugere uma união vital. Um ramo não existe sozinho. Os ramos não são extrínsecos, a videira existe com os ramos. Podem ser arrancados ou podados, mas são parte integrante da videira. Assim é Jesus com os fiéis: brotam dele, não são acrescentados; permanecem unidos a ele e dele recebem a seiva (vida). A mesma ideia referida a Deus em 2Cor 3,5.

“Permanecer” é uma palavra chave neste capítulo (vv. 4.5.6.9.10) e neste evangelho (1,32s.38; 4,40; 14,16), principalmente desta redação que lida com o problema da separação e divisão, pessoal indo embora da comunidade (cf. 6,66s; 1Jo 2,18-28).

Eu sou a videira e vós os ramos. Aquele que permaneceu em mim, e eu nele, esse produz muito fruto; porque sem mim nada podeis fazer. Quem não permanecer em mim, será lançado fora como um ramo e secará. Tais ramos são recolhidos, lançados no fogo e queimados (vv. 5-6).

O redator está convicto de quem abandona a comunidade cristã vai perecer, e além disso é ameaçado pela morte definitiva no fogo do juízo final (cf. Ez 15,5-7; Is 27,11).

Se permanecerdes em mim e minhas palavras permanecerem em vós, pedí o que quiserdes e vos será dado. Nisto meu Pai é glorificado: que deis muito fruto e vos torneis meus discípulos (vv. 7-8).

O pedido da oração (pelo contexto próximo, pedidos para dar fruto) será atendido nesta condição. Quem “permanecer em mim”, quer dizer, sintonizado com a vontade de Jesus (que é do Pai), sua pessoa, e equivale a promessa a quem “pedir em meu nome” (Jo 14,13; 15,16; 16,23; no contexto mais amplo, ver Mc 11,24; Mt 7,7-11; Lc 11,1-13). O fruto abundante da videira será a glória do vinhateiro. Se os fiéis imitarem Jesus, seguindo como discípulos e dando frutos, tornarão visível a glória de Deus. Variação de texto: “e sereis então meus discípulos”.  O Pai é, então, “glorificado em seu Filho” (14,13; cf. 21,19).

Um comentarista italiano, Ermes Ronchi, comentando o evangelho da videira, disse: Em Jesus, o dono da vinha se tornou videira, o semeador semente, o criador criatura. Deus está em nós não como vinhateiro, mas como seiva vital. Não é voz que impõe, mas como o segredo da vida. Deus está em mim como raiz das minhas raízes.

O site da CNBB comenta: O verdadeiro evangelizador tem plena consciência de que ele não atua por suas próprias forças. Também sabe que a missão à qual participa não é uma missão sua ou mesmo humana. Jesus é o grande missionário do Pai e todos nós participamos da tríplice missão de Jesus pela graça do Batismo. Por isso, só podemos produzir frutos para o Reino de Deus, frutos que permanecem para a vida eterna, se estamos unidos a Jesus para participar da sua obra. Se nos separamos de Jesus, deixamos de realizar a obra do Reino para realizar a nossa própria obra, e o resultado disso é o fracasso de todos os nossos esforços.

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