5 de Setembro de 2020, Sábado: “O Filho do Homem é senhor também do sábado” (v. 5).

22ª Semana do Tempo Comum 

Leitura: 1Cor 4,6-15

Com certa ironia, a leitura de hoje critica aos que se julgavam ricos, reis, fortes, estimados, com alerta a “não se incharem de orgulho”. Paulo já mencionou a realidade de Coríntio que consiste de pessoas de classes marginalizadas (1,26). Conforme uma mentalidade da época, ser discípulo de personagem famoso tornava importante a pessoa. Talvez, na comunidade, alguns se julgassem superiores por serem discípulos de Paulo, outros de Apolo, outros de Pedro, e assim por diante (cf. 1,12). Para desfazer essa mentalidade, a carta mostra a realidade desses personagens como fracos e desprezados.

Irmãos, apliquei essa doutrina a mim e a Apolo, por causa de vós, para que o nosso exemplo vos ensine a não vos inchar de orgulho, tomando o partido de um contra outro, e a “não ir além daquilo que está escrito”. Com efeito, quem é que te faz melhor que os outros? O que tens que não tenhas recebido? Mas, se recebeste tudo que tens, por que, então, te glorias, como se não o tivesses recebido? (vv. 6-7).

“Apliquei essa doutrina” (lit. apresentei isso de outra forma); o princípio geral da doutrina é: nós somos todos servos pertencentes a Cristo (3,21); tudo o que temos, nós o recebemos (4,2). A outra forma é a aplicação deste princípio ao ministério apostólico (3,5-16).

Apolo era um judeu-cristão eloquente de Alexandria, instruído por Prisca e Áquila, e ajudava em Corinto (cf. At 18,24-19,1; 1Cor 1,12; 3,22; 4,6; 16,12; Tt 3,13). O que Paulo acaba de dizer sobre si mesmo e Apolo deve valer como “exemplo”, aplicável a outros nomes e situações.

“Não ir além (ou: não passar do limite) daquilo que está escrito”. Texto difícil, lit. “o não acima do que está escrito”. Talvez citação de um provérbio propagado entre os judeus ou em Coríntio, cuja aplicação à conjuntura presente, clara para Paulo e seus leitores, hoje nos escapa. Alguns pensam que é inserção de um copista; outros pensam que é exceder-se na interpretação da Escritura (cf. 2Pd 1,20s; Ap 22,18s; Dt 4,2): abolindo a lei como Paulo, ou interpretando alegoricamente como Apolo, ou pôr o próprio orgulho nos méritos do chefe adotado em vez de seguir a Cristo.

Na história da Igreja, surgiu o lema protestante de Lutero: “Sola escritura”, ou seja, vale “somente a escritura” e não a Tradição da Igreja que Lutero criticou com certa razão na sua época do séc. XVI. É certo voltar às origens e beber na fonte da Escritura para reformar a Igreja. Mas a ciência bíblica nos séc. XIX e XX, bem desenvolvida pelos próprios luteranos, descobriu que a Escritura faz parte da Tradição, por ex.: o evangelho já começou com a tradição oral dos apóstolos antes de ser escrito numa outra geração pelos evangelistas. Precisamos valorizar ambas, a Escritura e a Tradição da Igreja. A revelação é um processo inspirado pelo Espírito Santo. Ambas, a Escritura e a tradição (interpretação do magistério, liturgia etc.) inspiraram-se mutuamente e não devem contrariar-se. Penso que hoje há um consenso mais amplo sobre esta questão através do ecumenismo.

Vós já estais saciados! Já vos enriquecestes! Sem nós, já começastes a reinar! Oxalá estivésseis mesmo reinando, para nós também reinarmos convosco! (v. 8).

Paulo retoma dois temas das bem-aventuranças: a “riqueza” dos pobres que possuem o reino e a “saciedade” de quem tem fome de justiça (Mt 5,3.6); podem-se escutar ressonâncias escatológicas (Ap 3,17; 5,10). “Já vos enriquecestes”, Paulo já disse que a maioria dos fiéis de Coríntio não vinham da classe alta e endinheirada (1,26). Mas parece, que eles achavam que o reino de Deus já tenha acontecido, não precisava anunciar a cruz nem viver de maneira simples e austera.

 “Sem nós, já começastes a reinar (lit. sois reis)”; isto é: vós pretendeis instalar-vos por vossa própria conta, sem nós, no Reino dos céus, para aí reinar e usufruir até à saciedade, de todas as formas as suas riquezas.

A Bíblia do Peregrino (p. 2743) comenta: Retomando em ferino tom satírico a ideia precedente, o paradoxo da cruz (1,17-25), propõe o contraste entre as fraquezas e sofrimentos dos apóstolos e a glória que os coríntios já pensam possuir. Recorde-se o pedido da mãe dos Zebedeus (Mt 20,21-23): Jesus glorificado já reina; e os coríntios, como se já tivesse chegado a consumação, se crêem já participantes do reinado definitivo de Cristo. Mas o cristão, e em grau especial o apóstolo, vive ainda na etapa da cruz, participando dos sofrimentos do Messias. Paulo rebate as pretensões dos coríntios quase com sarcasmo: oxalá fôsseis reis para que coubesse a mesma sorte a mim! Desenvolve a ideia de um apaixonado e retórico jogo de contrastes.

Na verdade, parece-me que Deus nos apresentou, a nós apóstolos, em último lugar, como pessoas condenadas à morte. Tornamo-nos um espetáculo para o mundo, para os anjos e os homens (v. 9).

O termo “espetáculo” evoca as arenas do circo onde, diante da multidão, os “condenados à morte” eram exibidos e entregues às feras diante de multidões de espectadores. A cidade de Corínto possuía um teatro de catorze mil espectadores.

Diríamos que Deus é o imperador que oferece seus servos em espetáculos; tal é a vida do apóstolo, “em último lugar”, em categoria social ou como o final refinado do espetáculo (cf. a sorte de Sansão em Jz 16,25 e a dos apóstolos em At 12,1-4).

Nós somos os tolos por causa de Cristo, vós, porém, os sábios nas coisas de Cristo. Nós somos os fracos; vós, os fortes. Vós sois tratados com toda a estima e atenção, e nós, com todo o desprezo (v. 10).

Esta passagem é irônica e evoca os temas de 1Cor 1-2: as grandezas humanas que são nada diante de Deus (os coríntios). E a grandeza segundo Deus que é desprezada pelos homens (Paulo). A referência a Cristo afeta as três antíteses. Até se poderia parafrasear; nós, por Cristo escolhemos sua loucura, sua fraqueza, seu desprestígio; vós, em Cristo procurais o saber, a força e a honra; ou seja, quereis Cristo glorificado, não crucificado.

A Bíblia de Jerusalém (p. 2152) comenta: Concluindo a passagem (vv. 6-10), Paulo volta em tom irônico aos temas de 1-2: vós sois ou pretendeis ser prudentes, fortes, honrados, não segundo os critérios de Deus, mas segundo os critérios do mundo, desse mundo que nos considera loucos, fracos e desprezíveis e que, consequentemente, nos persegue (vv. 11-13). A realidade, aos olhos de Deus, é exatamente o contrário.

Até à presente hora, padecemos fome, sede e nudez; somos esbofeteados e vivemos errantes; fadigamo-nos, trabalhando com as nossos mãos; somos injuriados, e abençoamos; somos perseguidos, e suportamos; somos caluniados, e exortamos. Tornamo-nos como que o lixo do mundo, a escória do universo, até ao presente (vv. 11-13).

Enquanto isso, os apóstolos e missionários vivem as dores das bem-aventuranças e do seguimento (cf. Lc 9,58). V. 12a alude ao trabalho manual de Paulo em Corinto para sustentar-se (At 18,3; 20,34; 1Ts 2,9).

As palavras traduzidas por “lixo” e “escória” designam também os miseráveis que eram nutridos à custa da cidade para servirem de vítimas expiatórias nas calamidades públicas. O “lixo do mundo” mostra justamente o paradoxo da cruz, que inverte o conceito de fortes e fracos (1,17-31).

A Bíblia de Jerusalém (p. 2152) comenta: Frequentemente Paulo menciona os sofrimentos e as perseguições que ele padece em sua missão; mostra também como Deus lhe dá a graça de os superar (2Cor 4,7-12; 6,4-10; 11,23-33; 1Ts 3,4; 2Tm 3,10-11). Segundo Paulo, a fraqueza do apostolo manifesta o poder daquele que o envia (2Cor 12,9-10; Fl 4,13), pois a grandeza da obra realizada não pode ser atribuída unicamente à eficiência do apóstolo (2Cor 4,7).

Escrevo-vos tudo isto, não com a intenção de vos envergonhar, mas para vos admoestar como meus filhos queridos. De fato, mesmo que tivésseis dez mil educadores na vida em Cristo, não tendes muitos pais. Pois fui eu que, pelo anúncio do Evangelho, vos gerei em Jesus Cristo (vv. 14-15).

Na atividade sapiencial, o mestre costumava chamar seus discípulos de “filhos” (Pr 4,1-6; Eclo 39,13 etc.). Da metáfora Paulo toma dois momentos. Primeiro, a “geração”: o apóstolo evangelizador gera filhos, não para si, mas para Cristo (Gl 4,19). Segundo, a “educação” pode ser branda ou exigente (cf. Dt 8,5), inclusive áspera (Eclo 30,1-13), com a vara (Pr 13,24; 23,13s). Essa paternidade espiritual corresponde ao que Paulo escreveu em 3,6: “Eu plantei”, isto é, “semeei em vós a vida nova do espírito que vos configura a Cristo” (cf. v. 17; Gl 4,19; Fm 10). Em outras passagens, é a sua ternura para com os cristãos que Paulo compara à de um pai ou de uma mãe (1Ts 2,7.11, cf. 2Cor 12,15).

“10.000 educadores” (Lit. pedagogos); o pedagogo é aquele que “conduz a criança”, na antiguidade, o escravo encarregado de vigiar a criança e de conduzi-la aos seus professores, e mais tarde o jovem, que ele devia vigiar e corrigir. O matiz em 4,15 é pejorativo (cf. Gl 3,24).

 

Evangelho: Lc 6,1-5

Seguindo o Evangelho mais antigo de Mc, Lc apresenta o quarto confronto de Jesus com os fariseus na Galileia. Lc resume mais o texto de Mc; a acusação dos fariseus (Mc 1,24) torna-se somente uma pergunta como nos episódios anteriores.

Num sábado, Jesus estava passando através de plantações de trigo. Seus discípulos arrancavam e comiam as espigas, debulhando-as com as mãos (v. 1).

O primeiro versículo da cena apresenta um grupo de discípulos itinerante, necessitado, sem algum sustento cotidiano garantido. Os detalhes descritivos têm uma função na controvérsia. Lc menciona que os discípulos “comiam” para igualá-los a Davi e seus companheiros (vv. 3-4).

Então alguns fariseus disseram: “Por que fazeis o que não é permitido em dia de sábado?” (v. 2).

Segundo a interpretação rabínica do descanso sabático, os discípulos fazem uma ação proibida, não como roubo, mas como trabalho (cf. Dt 23,25s). Segundo Ex 34,21, o descanso sabático obriga também “na semeadura e na ceifa” (sobre o maná e o sábado, cf. Ex 16,19-30).

Jesus respondeu-lhes: “Acaso vós não lestes o que Davi e seus companheiros fizeram, quando estavam sentindo fome? Davi entrou na casa de Deus, pegou dos pães oferecidos a Deus e os comeu, e ainda por cima os deu a seus companheiros. No entanto, só os sacerdotes podem comer desses pães” (vv. 3-4).

Jesus argumenta com um caso da história de Davi (1Sm 21,1-6), no qual uma lei cultual (Lv 24,5-9) fica suspensa por necessidade maior. Davi o fez “na casa de Deus” com aprovação do sacerdote. Aquilo que é o templo no espaço, é o sábado no tempo (cf. Ex 31,12-18). A linguagem parece enfática: “tomou, comeu, repartiu”.

Igual a Mt, Lc omite o nome do sumo sacerdote Abiatar (corrigindo Mc 2,26; cf. 1Sm 21,7) e a frase “o sábado foi feito para o homem, e não o homem para o sábado” (Mc 1,27). Observa-se que Mt e Lc escreveram independemente um do outro (p. ex. cada um contou a infância ou as aparições de Jesus de maneiras bem diferentes), mas ambos usaram a mesma narrativa de Mc. Como, então, explicam-se mudanças iguais de ambos independentemente um do outro? Este procedimento igual em Mt e Lc a respeito de Mc aqui e em outros trechos da narrativa faz pensar alguns numa fonte comum, ou seja, Mt e Lc poderiam ter usado um texto de Mc reeditado e corrigido por outra redação de Mc chamada “Deuteromarcos”.

E Jesus acrescentou: “O Filho do Homem é senhor também do sábado” (v. 5).

Passando por cima da Escritura, Jesus apela ao poder recebido, que se sobrepõe também à venerada instituição do sábado (Ex 20,8; Is 58,13; Jr 17; Ne 13,15-20). Mas não apela para sua dignidade messiânica como descendente de Davi, e sim à sua condição humana excepcional. “Filho do homem” tem significado duplo: simplesmente “filho de Adão” (ser humano, cf. Sl 8,5; Ez 2,1.3 etc.), ou a figura messiânica de Dn 7,13s, que vem nas nuvens do céu. Não só a interpretação dos doutores, mas também a própria lei fica em segundo plano; e na Igreja, o dia sagrado não é mais o sábado, mas passa a ser o domingo, dia da ressurreição (28,1p) e “dia do Senhor” (kyriaké, domínica em Ap 1,10; cf. At 20,7).

O evangelho de hoje, finalmente, fala da realização inaudita e inesperada do sábado. O “sábado/domingo” não é simplesmente pausa, repouso, churrasquinho com os amigos, cervejinha para relaxar. O sábado/domingo inatingível por nossos esforços é Deus mesmo. Jesus, o senhor do sábado, dando a si mesmo (no pão consagrado na casa de Deus, hoje a Eucaristia), nos dá gratuitamente aquilo pelo qual suspiramos sem mesmo o conhecer. Lembramo-nos de Stº. Agostinho: “Fizeste-nos para ti, ó Deus, e nosso coração estará inquieto enquanto não repousar em ti”. Deus é nosso pão (cf. Jo 6).

Sendo o “senhor do sábado”, Jesus está acima das leis, mesmo religiosas, que os homens elaboram. Ele relativiza as leis, mostrando que elas não tem sentido quando impedem ao homem ter acesso aos bens necessários para a própria sobrevivência. Em nosso país, existem leis (trabalhistas, penais, canônicas) ou normas que impedem em certas casos a sobrevivência material e espiritual?

O site da CNBB comenta: É muito fácil a gente ver o que as pessoas estão fazendo e, a partir da aparência dos seus atos e de princípios previamente estabelecidos, emitir os nossos juízos e opiniões. O Evangelho de hoje mostra para nós os erros que podemos incorrer com este tipo de comportamento. Podemos fazer com que Deus se torne o grande opressor da humanidade, porque é um grande ditador e está à espera para punir a todos os que lhe desobedecem e não um Pai amoroso e podemos também deixar de olhar a realidade das pessoas e as suas motivações, que podem modificar profundamente a nossa opinião a respeito delas.

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