6 de Outubro de 2019, Domingo: Os apóstolos disseram ao Senhor: “Aumenta a nossa fé!” O Senhor respondeu: “Se vós tivésseis fé, mesmo pequena como um grão de mostarda, poderíeis dizer a esta amoreira: ‘Arranca-te daqui e planta-te no mar’, e ela vos obedeceria” (vv. 5-6).

27º Domingo do Tempo Comum 

 1ª Leitura: Hab 1,2-3; 2,2-4

A 1ª leitura foi escolhida por sua frase “o justo viverá por sua fé” (v. 4b) que a liga com o início do evangelho de hoje (Lc 17,5s). A mesma frase é citada por Paulo em Rm 1,17 (cf. leitura e comentário da 28ª semana do Tempo Comum, terça-feira no ano ímpar).

O nome de Habacuc (cf. Dn 14,33-39) deriva provavelmente do verbo “abraçar”. Ele é um dos nabi (1,1). Este termo designa geralmente um profeta da instituição do templo, onde Habacuc tem seu “posto de guarda” como “atalaia” (2,1). Não se menciona seu sobrenome nem seu lugar de origem, mas pelo conteúdo ele vive e escreve na mesma época do profeta Naum que anunciava a queda do império assírio e sua capital Nínive em 612 a.C. Também é contemporâneo de Jeremias.

Numa primeira fase critica duramente a injustiça social referindo-se talvez a exploração do rei Joaquim (cf. Jr 22,10-12; 2Rs 23,33-35). Nesta época surge o império caldeu (neobabilônico) que venceu Assíria em 612 a.C. e o Egito em 605. Numa primeira fase, profecia de Habacuc denuncia a violência da elite de Jerusalém, que provoca a invasão babilônica. Mas depois da destruição de Jerusalém (587/586) se faz uma releitura durante o exílio, estendendo a queixa da violência ao exército caldeu (segunda fase).

A Bíblia do Peregrino (p. 2258) comenta: O seu horizonte histórico é definido por dois grandes poderes: a Assíria decadente e Babilônia renascente. A Assíria é pecadora de povos e o seu deus é a sua rede; sucumbirá diante de novo Império babilônico, águia guerreira cujo deus é a sua força. Entre os dois, Israel vive sua história, e Habacuc representa o seu povo. São tempos de opressão e violências, e Habacuc reza: “Até quando?” Os caldeus farão justiça, e o profeta espera impaciente. Até que sua impaciência se converte em expectativa.

Nossa leitura traz apenas o início e o fim de um diálogo: a) 1,2-4: clamor do profeta; e 1,5-11: resposta do Senhor (Javé); b) 1,12-17: lamento do profeta; e 2,1-6a: o Senhor responde.

Senhor, até quando clamarei, sem me atenderes? Até quando devo gritar a ti: “Violência!”, sem me socorreres? Por que me fazes ver iniquidades, quando tu mesmo vês a maldade? Destruições e prepotência estão à minha frente; reina a discussão, surge a discórdia (1,2-3).

A Nova Bíblia Pastoral (p. 1150) comenta os vv. 2-4: O profeta denuncia a situação do povo durante o reinado do rei Joaquim: injustiça, crime, opressão, violência e direito distorcido (cf. Jr 22,13-19; Am 3,9-10; 8,4-8; Mq 3,1-3; 7,2-3; Jó 19,7). A palavra-chave é “violência”, empregada seis vezes no livro.

A Bíblia do Peregrino (p. 2259) comenta: Começa no estilo dos salmos de súplica, gritando sua impaciência, questionando a atitude de Deus (Sl 13; 77,8-17; 79; Jr 15,10) … confronta-o com a situação, para que toma consciência e reaja. O profeta reage reconhecendo, no que vê, o triunfo da violência unido à inercia de Deus. São injustiças que acontecem dentro de Judá, por ex. durante o reinado de Joaquim? (Cf. Sl 55). Ou são causadas por uma potência estrangeira? (Cf. Sl 44). Os autores discutem e discordam; pelo contexto nos inclinamos a pensar que já está em contexto internacional.

A Bíblia de Jerusalém (p. 1787) comenta: Em nome de seu povo (cf. Jr 10,23-25; 14,2-9.19-22; Is 59,9-14), o profeta queixa-se a Iahweh das calamidades públicas. Este texto, paralelo as lamentações do saltério e de Jeremias, considerado isoladamente, poderia ser relacionado com desordens internas de uma sociedade; mas no contexto dos vv. 12-17, visa, sem dúvida alguma, à opressão caldeia. Por que a justiça e a bondade de Iahweh (e sua santidade, v. 13) toleram o triunfo do ímpio? Pois é um pagão que domina, e Judá, mesmo pecador, permanece um “justo”, que conhece o verdadeiro Deus. Iahweh deve responder a isso (cf. 2,1).

Respondeu-me o Senhor, dizendo: “Escreve esta visão, estende seus dizeres sobre tábuas, para que possa ser lida com facilidade. A visão refere-se a um prazo definido, mas tende para um desfecho, e não falhará; se demorar, espera, pois ela virá com certeza, e não tardará (2,2-3). 

O profeta fica como guarda vigilante à espera do Senhor (2,1; cf. Jó 23) que responde em forma de visão, colocando o justo e o orgulhoso em lados opostos (os vv. 5-6a foram omitidos pela nossa liturgia).

A Bíblia do Peregrino (p. 2261) comenta: A resposta de Deus abre uma nova etapa de expectativa. Quais são os prazos na cronologia de Deus? Recordemos o tempo vegetal de Is 18,4s e a pressa de Is 5,19; Ez 12,21-28. Escrever o oráculo acrescentará seu valor jurídico (Is 8,16). A escritura há de ser clara e duradoura, para que não seja preciso decifrá-la.

O v. 4 será o centro do livro, por isso deve ser escrito em “tábuas”, o material para a escrita em uso para textos que devem ser conservados (cf. Ex 24,12; 27,8 etc.; Dt 4,13; 5,19; Is 30,8 e simbolicamente Jr 17,1; Pr 3,3; 7,3), “para que possa ser lida com facilidade”, lit.: a fim de que corra aquele que a lê.

A revelação se realizará no tempo determinado, num “prazo definido” (cf. Dn 8,19.26; 10,14; 11,27.35), e o documento escrito compromete para esse tempo a palavra do Senhor (cf. 2Pd 3,2), cuja veracidade ele provocará mais tarde (cf. Is 8,1.3; 30,8). Na realidade, se cumpriu, mas só em 539 a.C. quando os babilônios foram vencidos em 539 a.C. por Ciro II, o rei dos persas que libertou os judeus deportados no exílio.

A “visão” é dotada de energia própria, pois expressa uma palavra de Deus, que “tende para um desfecho”, à sua realização (cf. Is 55,10s); ou: a visão se exprime sobre o fim, diz respeito ao fim. A liturgia do Advento utiliza este v. 3b, em sua tradução grega divergente, para exprimir à espera do messias (cf. Hb 10,37) que “virá com certeza, e não tardará”.

Quem não é correto, vai morrer, mas o justo viverá por sua fé” (2,4).

Há diversos textos e traduções diferentes. Lit.: “Eis o inflado (orgulhoso, arrogante), sua alma (força da vida) não fica reta (salva)”. Em hebraico, “alma” (nefesh) pode indicar a pessoa inteira ou a garganta, a goela, como no v. seguinte (cf. Ct 1,7). Refere-se ao opressor, cujo comportamento os vv. seguintes vão descrever.

A Bíblia de Jerusalém (p. 1789) lê: “Sucumbe aquele, cuja alma não é reta, mas o justo viverá por sua fidelidade” e comenta: Esta sentença, formulada em termos universais (cf. Is 3,10-11), exprime o conteúdo da visão. A “fidelidade” (cf. Os 2,22; Jr 5,1.3; 7,28; 9,2 etc.) a Deus, isto é, à sua palavra e à sua vontade, caracterizada o “justo” e lhe garante segurança e vida (cf. Is 33,6; Sl 37,3; Pr 10,25 etc.). O império, a quem falta esta “retidão”, perder-se-á. Neste contexto (1,2-4.12-17; 2,5-18) trata-se respectivamente do caldeu e de Judá: a justa Judá viverá, o opressor perecerá. No texto da LXX, onde “fidelidade” se torna “fé”, são Paulo lerá a doutrina da justificação pela fé.

Nossa liturgia traduz o texto grego da LXX (“o justo viverá por sua fé”) que o apóstolo Paulo cita duas vezes para provar que não se obtém a salvação pelas obras da observância da lei, mas “pela fé”: Rm 1,17 e Gl 3,11; por sua vez, Hb 10,37s cita-o segundo a versão grega, exortando à paciência.

Na Bíblia hebraica, ‘muna pode significar “fé”, às vezes, mas aqui está em paralelo a “espera” pelo cumprimento do oráculo de v. 3. Não quer expressar um princípio teológico (como nas cartas de Paulo), mas a “confiança” numa situação histórica concreta (como Is 7,9). Mas já antes de Paulo, a comunidade de Qumran generalizou esta frase, exigindo “fidelidade” ao seu líder, o mestre da justiça.

A Bíblia do Peregrino (p. 2261) comenta: O problema é que, ao chegar a nós, o texto não pode ser lido correntemente; temos quase de decifrá-lo, o enunciado parece um enigma proposital. É claro que o princípio é uma antítese, com correspondência de membros; o segundo membro é unívoco, ao passo que o primeiro tem vários termos ambíguos. A antinomia orienta para defini-los; mas penso que o autor joga com polissemia. Suposto isso, e poupando a análise técnica, proponho uma leitura parafrástica ampla.

Há um homem movido pela cobiça e pela ambição (nfsh) que “se infla” (‘flh) com a arrogância e com o que traz, com seus êxitos; mas não triunfará (l’yshrh), porque “não é reto”, justo (idem). Há um homem “justo e inocente” (sdyq), que não recorre à força, porque confia (b’mwntw) em Deus, e por isso salvará a vida (yhyh).

O profeta fica vigilante à espera de Javé, que reponde em forma de visão, colocando o “orgulhoso” (lit. inchado, inflado; arrogante) e o “justo” em lados opostos. O orgulho tem uma fome de poder que não se sacia, assim como a morte, ao passo que “o justo viverá por sua fidelidade”.

 

2ª Leitura: 2Tm 1,6-8.13-14

Neste domingo e nos próximos ouvimos ainda trechos da segunda carta a Timóteo. Como as outras “cartas pastorais” (chamadas assim por se dirigirem a pastores, e não a comunidades), primeira carta ao mesmo discípulo e a carta a Tito, há uma linguagem e uma situação diferente daquelas retratadas nas cartas autênticas de Paulo. Por isso, muitos exegetas consideram 1-2Tm e Tt como “Tritopaulinas”, ou seja, escritas na terceira geração por autores que usam o nome de Paulo para homenagear o apóstolo e continuar sua tradição.

A Nova Bíblia Pastoral (p. 1459), porém, comenta: Esta carta a Timóteo é mais pessoal e afetuosa que a primeira. Paulo se dirige ao seu discípulo, para exorta-lo a preservar firme no difícil ministério.

A carta assume o gênero de testamento espiritual. Diante de sua provável condenação ao martírio (4,6), o Apóstolo recomenda a Timóteo dedicar-se ao serviço do evangelho, ao cuidado da reta doutrina e à luta contra os falsos doutores. Além disso, informa sobre sua situação como prisioneiro e pede uma visita urgente do amigo (4,9).

Afirma-se claramente que Paulo está encarcerado (1,8.16; 2,9) em Roma (1,16-17), tanto que no final são citados personagens romanos (4,21). Sobre o assunto, só temos informações nesta carta. Aliás, o motivo também não é claro; supõem-se algum abandono ou traição (1,15; 4,14). E as condições devem ter sido bem mais duras que na prisão domiciliar, quando o Apostolo podia pregar livremente (At 28,16). Agora, sente-se abandonado e sem ninguém para defender no tribunal; seus dias estão contados e ele já espera o martírio.

O fato lhe reforça a fé e provoca ações de graças. Contudo, deseja rever seu “amado filho Timóteo” e confirma-lo na missão. Estamos provavelmente por volta do ano 67.

A carta se concentra em condições sobre os “últimos dias”, associando os de Paulo com os da Igreja. No desejo de rever Timóteo, lhe traça diversas recomendações. Há problemas reais, como ameaça de novas doutrinas (2,18), deserção de alguns líderes (4,10), defesa de doutrina que outros líderes recusam (2,23; 3,6), arrefecimento do amor (4,16), dispersão de lideranças (4,9-12). Por isso a recomendação de empenho ao serviço do evangelho sem poupar energias (1,6-2,13; 4,1-8), ao cuidado da reta doutrina (3,10-17) e à luta contra os falsos doutores (2,14-18).

(Caríssimo) Exorto-te a reavivar a chama do dom de Deus que recebeste pela imposição das minhas mãos (v. 6).

“Caríssimo” é acréscimo da nossa liturgia e se refere ao “querido filho Timóteo” (v. 2) a quem a carta se dirige. O autor alude ao momento em que Paulo, junto com o colégio dos anciãos (1Tm 4,14), consagrou Timóteo para o ministério. O “dom” (grego: charisma) de Deus é o Espírito. Junto com a “chama” lembra a narração de Pentecostes em At 2,3s.

A Bíblia do Peregrino (p. 2859) comenta: Impor as mãos é impor um rito de nomeação ou consagração (1Tm 4,14; At 6,6), conferindo o carisma do encargo. “Reavivar”: o verbo grego significa avivar um fogo. O Espírito Santo veio como em línguas de fogo (At 2,3); pode-se recordar o fogo do santuário (Ex 30,7-8). É interessante que caiba ao homem avivar o fogo aceso nele pelo Espírito (cf. Lc 12,49).

Pois Deus não nos deu um espírito de timidez mas de fortaleza, de amor e sobriedade. Não te envergonhes do testemunho de Nosso Senhor nem de mim, seu prisioneiro, mas sofre comigo pelo Evangelho, fortificado pelo poder de Deus (vv. 7-8).

A Bíblia do Peregrino (p. 2859) comenta: O carisma comunica uma força superior para dar testemunho e suportar por ele padecimentos: “eu, porém, estou cheio de coragem, de Espírito do Senhor… para denunciar…” (Mq 3,8); ou para enfrentar qualquer autoridade (Jr 1,18; cf. Ez 3,8; Is 50,5-9). “Não te envergonhes” ou acovardes (Rm 1,16). O “prisioneiro”: na composição da carta como testamento (gênero literário comum), refere-se a prisão em Roma, pouco antes do martírio, que é seu “testamento” final (cf. para a equivalência Ap 2,13).

Conforme v. 17, Paulo está em Roma, e aprisionado pela causa de Cristo (cf. Ef 3,1; Fm 1,9) durante a perseguição aos cristãos por César Nero (64-67 d.C.).

Timóteo não deve “se envergonhar de dar testemunho (grego: martýrion) de Cristo”, nem de Paulo, ao contrário, sofrer com o apóstolo pela Boa Nova (grego “evangelho”). Esta Boa Nova é resumida num hino cristológico em seguida (vv. 9-10 omitido na liturgia de hoje, cf. 2º Domingo da Quaresma, Ano A).

Usa um compêndio das palavras sadias que de mim ouviste em matéria de fé e de amor em Cristo Jesus. Guarda o precioso depósito, com a ajuda do Espírito Santo que habita em nós (vv. 13-14).

As “palavras sadias” são a “doutrina sã” (1Tm 1,10; 6,3; 2Tm 1,12; 4,3; Tt 1,9.13; 2,1.8) que vem da pregação dos apóstolos, com todas as qualidades da saúde e em relação a conduta moral (cf. Rm 2,1s; Fl 4,8s). Esta tradição apostólica precisa ser defendida na época do autor contra as heresias (falsas doutrinas) que fazem mal.

A Bíblia do Peregrino (p. 2859) comenta: “Compêndio”: a palavra grega é tirada da retórica e significa algo que se põem diante dos ouvintes, uma descrição viva e plástica. Esta mensagem é o “deposito precioso”.

Pela presença e “ajuda” do Espirito, este deposito não é um repertorio de recordações que se transmitem, mas tem o caráter da vida, que transmitindo-se permanece (cf. Rm 5,5). Pode se interpretar em relação ao encargo recebido. Segundo outra interpretação, pode tratar-se também do deposito confiado por Paulo a Cristo. O contexto (já v. 12) faz pensar mais na doutrina cristã conservada intacta (1Tm 6,20) do que nas boas obras de Paulo (4,7s; 1Tm 6,19s).

Evangelho: Lc 17,5-10

Depois da parábola do pobre Lázaro e do rico esbanjador (16,19-31, cf. domingo passado), que foi dirigida aos fariseus, amigos do dinheiro (16,14s), Jesus volta a instruir seus discípulos (cf. 12,1.22; 16,1) com diversas sentenças sobre escândalos e perdão (vv. 1-4, omitidos pela nossa liturgia), fé e serviço (vv. 5-10).

Os apóstolos disseram ao Senhor: “Aumenta a nossa fé!” O Senhor respondeu: “Se vós tivésseis fé, mesmo pequena como um grão de mostarda, poderíeis dizer a esta amoreira: ‘Arranca-te daqui e planta-te no mar’, e ela vos obedeceria” (vv. 5-6).

Depois de alertar sobre os escândalos e da necessidade da correção fraterna exigindo conversão e perdão, Lc dá esperança: com a fé em Deus podemos remover o pecado de nossas vidas. Esta frase sobre a fé encontra-se também nos outros evangelhos sinóticos, mas em outros contextos: em Mc 11,23, depois da maldição da figueira (omitida por Lc); em Mt 17,20, no final da cura de um epiléptico; ambos falam do transporte de uma montanha em vez de uma árvore.

Lc escreveu a introdução, usando os títulos preferidos “apóstolos” e “Senhor”. Eles pedem para aumentar a fé (cf. Mc 9,24). Pedir que Jesus a faça crescer já é expressão de fé, estima do seu valor, consciência da própria impotência. Eles reconhecem que sua fé atual não é suficiente nem eles podem melhorar isso por conta própria.  A fé é um dom pelo qual só podemos pedir (cf. 1Cor 12,9; Mt 16,17).

Como o efeito de uma alavanca, a força da fé não depende da grandeza (do mais ou menos), mas do seu ponto de apoio que é a promessa de Jesus. Não é a quantidade, mas a qualidade da fé que transforma. A pitoresca imagem hiperbólica (cf. outra imagem em Mc 10,25p) é empregada para encarecer o poder sobre-humano da fé. Se a fé é autêntica, sempre opera milagres. A pequenez do “grão de mostarda” já serviu de imagem para o crescimento do reino, ou seja, da Igreja (cf. 13,18-19p).

O site da CNBB comenta: A misericórdia é um dos valores evangélicos mais importantes e ser misericordioso significa, antes de tudo, ser capaz de colaborar com a salvação das pessoas, ser capaz de perdoá-las… E somente aquela pessoa que tem fé é capaz de perdoar verdadeiramente, porque somente quem acredita no Deus misericordioso é capaz de agir verdadeiramente com misericórdia.

Depois da sentença sobre a fé (vv. 5s), talvez o evangelista tenha pensado sobre o conceito judaico, especialmente dos fariseus (cf. 18,9-14) que esperam recompensa e retribuição por suas obras. Mas Jesus se dirige ainda aos discípulos (v. 1). Será que na comunidade de Lc já se instalou um pensamento classista entres os líderes?

Se algum de vós tem um empregado que trabalha a terra ou cuida dos animais, por acaso vai dizer-lhe, quando ele volta do campo: “Vem depressa para a mesa?” Pelo contrário, não vai dizer ao empregado: “Prepara-me o jantar, cinge-te e serve-me, enquanto eu como e bebo; depois disso tu poderás comer e beber?” (vv. 7-8).

A pergunta é retórica (cf. 11,5.11p; 12,25p; 14,28; 15,4). A resposta reconhece a dureza da sociedade antiga. Comparamos com essa regra humana o paradoxo evangélico: Se o Senhor Jesus é aquele que serve aos empregados (12,37; 22,27; Jo 13,1-16), como é que seu discípulo vai exigir alguma coisa? O serviço no reino é gratuidade.

Será que vai agradecer ao empregado, porque fez o que lhe havia mandado? Assim também vós: quando tiverdes feito tudo o que vos mandaram, dizei: “Somos servos inúteis; fizemos o que devíamos fazer” (vv. 9-10).

“Servos inúteis” (lit. “bons para nada”; cf. Mt 25,30), esse qualificativo parece inadequado ao contexto, no qual o servo, apesar de tudo, é útil, mas aplica-se perfeitamente aos discípulos: ninguém é indispensável para o serviço do Senhor.

A Bíblia do Peregrino (p. 2513) comenta: A parábola, com toda dureza da cena descrita, vem sublinhar a relação de serviço do discípulo. Não se pode alegar direitos nem exigir remuneração. O que lhe compete é simplesmente estar sempre a serviço de Jesus, com a humildade de que reconhece a desproporção entre sua prestação e a tarefa encomendada.

A parábola não desmente nossa relação filial com Deus que é nosso Pai (11,2p; Mt 5,48) nem o salário da graça (cf. Mt 20,1-16), mas recomenda aos discípulos uma atitude da humildade.

O site da CNBB comenta: Somos todos servos inúteis. Deus não precisa de nós, uma vez que ele pode, por si só, realizar todas as coisas. Mas Deus quis contar conosco, com a nossa colaboração, e isso não em vista da pessoa dele, mas sim em vista do nosso próprio bem, uma vez que, quando colaboramos com a obra da salvação da humanidade, estamos de fato participando de uma obra que não é humana, mas divina, o que se torna para nós causa de santificação e caminho de perfeição. O amor de Deus por nós é tão grande que faz da nossa inutilidade fonte de santificação e de vida nova, não só para nós mesmos, mas também para toda a Igreja, para todas as pessoas.

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