6 de Outubro de 2020, Terça-feira: “Marta, Marta! Tu te preocupas e andas agitada por muitas coisas. Porém uma só coisa é necessária. Maria escolheu a melhor parte e esta não lhe será tirada” (vv. 41-42).

27ª Semana do Tempo Comum 

Leitura: Gl 1,13-24

Continuamos com trechos da carta de Paulo aos Gálatas, chamada “manifesto da liberdade cristã”. Seus temas, a justificação pela fé e a liberdade em Cristo, serão retomados pela carta aos Romanos de maneira mais calma e refletida. Em Gl, Paulo mostra seu caráter forte e apaixonado.

Paulo escreveu esta carta aos cristãos gálatas que estavam em perigo de perder sua liberdade cristã (cf. 1,4; 5,1.13). Pela pregação de Paulo, esta comunidade pagã aderiu a fé em Cristo. Mas outros pregadores, denominados “judaizantes”, vieram ensinando que era necessário observar a Lei de Moisés, como a circuncisão (cf. Gn 17,10-14; Lv 12,3), mesmo depois de aderir a Cristo. Ridicularizavam Paulo, negando a sua autoridade de apóstolo, porque não pertencia ao grupo dos Doze. Diziam também que a doutrina sobre a caducidade da Lei era invenção de Paulo, e não correspondia ao pensamento da igreja de Jerusalém (cf. At 15).

A Nova Bíblia Pastoral (p. 1419) comenta nossa leitura:

Para explicar o que é o seu evangelho, Paulo começa pela sua experiência pessoal, testemunhando o que causou essa invasão do Cristo ressuscitado em sua vida. Apela para seu passado: a vivência zelosa no judaísmo e a perseguição à igreja de Deus. Destaca sua vocação: separado desde o seio materno e chamado a evangelizar os gentios, na esteira dos profetas Isaías e Jeremias (v. 15; Jr 1,5). Em toda essa autodefesa inicial, o destaque é dado à revelação divina, frisando sempre que não foi por influência humana, nem a mando dos apóstolos, que começou a atuar. Sua vocação e missão dependem exclusivamente de Deus. Os dados que recordam sua vocação podem ser confrontados com as narrativas de Lucas, em At 9,1-18; 22,5-16; 26,9-18.

Certamente ouvistes falar como foi outrora a minha conduta no judaísmo, com que excessos perseguia e devastava a Igreja de Deus e como progredia no judaísmo mais do que muitos judeus de minha idade, mostrando-me extremamente zeloso das tradições paternas (vv. 13-14).

A Bíblia do Peregrino (p. 2792s) comenta: “Judaísmo” designa a concepção doutrinal, a espiritualidade e o modo oficial de agir dos judeus de então. É uma forma posterior, cristalizada, da religião e religiosidade de Israel. De algum modo se opõe à “comunidade de Deus” ou Igreja; Paulo sublinha a distinção e oposição (At 22,3-5). As “tradições paternas” abrangem O AT e de modo especial suas interpretações oficiais, dos doutores letrados, rabinos (cf. Mt 15,2-6; Fl 3,5-6). Seu chamado foi repetido e radical, muito mais que o de Amós (Am 7,14-15). O “zelo” corresponde ao Deus “zeloso” (Dt 4,24 par.) e podia inspirar-se em modelos como Finéias ou Elias (Nm 25; 1Rs 18), invocado por Matatias (1Mc 2,24-27).

Quando, porém, aquele que me separou desde o ventre materno e me chamou por sua graça se dignou revelar-me o seu Filho, para que eu o pregasse entre os pagãos, não consultei carne nem sangue nem subi, logo, a Jerusalém para estar com os que eram apóstolos antes de mim. Pelo contrário, parti para a Arábia e, depois, voltei ainda a Damasco (vv. 15-17).

“Desde o ventre materno… me chamou”, Paulo evoca a vocação de Jeremias (Jr 1,5) e a do Servo de Javé em Is 49,1 e se lembra de que a sua vocação era receber esta revelação para anunciá-la aos pagãos (2,8s; Rm 1,1.5; 11,13; Ef 3,1-9; 1Tm 2,7; cf. At 9,15; 22,21; 26,16); cf. Is 49,6 “Também te estabeleci como luz das nações” (citado em At 13,47; 26,23; Lc 2,32; cf. Jo 8,12).

“Revelar-me o seu Filho”, outra tradução: “revelar em mim o seu Filho”. Sem negar o caráter objetivo da visão (1Cor 9,1; 15,8; cf. At 9,17; 22,14; 26,16), Paulo sublinha aqui seu aspecto de revelação interior.

A Bíblia do Peregrino (p. 2793) comenta: Escolhido como Jeremias (Jr 1,5) antes de nascer, embora chamado tarde. Isso significa que toda a etapa anterior tem sentido e fica englobada num projeto divino, e que sua vocação deve ser uma ruptura significativa e exemplar: o começo da etapa decisiva e prevista. Essa mudança é realizada por uma revelação da pessoa de Cristo: uma cristofania. Jesus de Nazaré não é um proscrito, e sim o Filho de Deus. Essa revelação é ao mesmo tempo sua vocação como mensageiro para os pagãos.

Paulo quer sublinhar aqui sua independência de fontes humanas, sua dependência direta de Jesus. Deve-se confrontar esses parágrafos com a versão com a versão de Lucas em At 9 e 15. Nada sabemos de sua estada na Arábia: dedicado à meditação e à ascese? (como Elias junto à torrente de Carit, 1Rs 17). Diríamos que os três anos na Arábia equivalem ao tempo dos apóstolos na companhia de Jesus.

Após a vocação, Paulo não procura conselho humano, outra vez (cf. vv. 11s): “Não consultei carne nem sangue”, lit. sem recorrer à carne e ao sangue. Este hebraísmo designa o ser humano reduzido unicamente às suas próprias forças; cf. Mt 16,17; 1Cor 15,50).

No seu próprio relato, diferente do percurso narrado nos Atos dos Apóstolos, Paulo vai “para Arábia”, volta a Damasco e só depois vai a Jerusalém “três anos mais tarde” (v. 18). Não sabemos os motivos da sua partida para a Arábia. O relato dos Atos (9,15.19-20) sugere uma resposta: Paulo quis começar a cumprir a sua missão entre os pagãos. Mas podemos tamém identificar Arábia com o reino dos nabateus (1Mc 5,25; chamados árabes em 2Mc 5,8; 12,10), no sul de Damasco; Paulo deve ter fugido para lá a fim de escapar das mãos do rei Aretas (2Cor 11,32s; At 9,25).

Nos Atos dos Apóstolos, Paulo começou logo pregar em Damasco depois da sua vocação, mas, “decorridos muitos dias”, ele precisava fugir (At 9,19-25). Só depois foi a Jerusalém, onde Barnabé o levou aos apóstolos; de lá precisava fugir outra vez, sendo enviado a sua cidade natal Tarso (atual Turquia; cf. At 9,26-30).

Três anos mais tarde, fui a Jerusalém para conhecer Cefas e fiquei com ele quinze dias. E não estive com nenhum outro apóstolo, a não ser Tiago, o irmão do Senhor (vv. 18-19).

Paulo queria “conhecer Cefas”, isto é, Pedro (Jo 1,42; 1Cor 9,5; 15,5: Cefas é pronuncia portuguesa da palavra grega Kefas que traduz o nome aramaico Kepa, significa “rocha”, “pedra”). Foi apenas uma visita social por interesse e consideração? Durante os quinze dias passados com Pedro, Paulo provavelmente aprendeu as “tradições” da igreja de Jerusalém (1Cor 11,2.23-25; 15,3-7). Mas cf. sua polêmica com Pedro (1,13-24; 2,1-21; At 8-9; 15). John J. Pilch (Comentário Bíblico, vol. 3, p. 237) comenta: A palavra grega para “conhecer” também pode ser traduzida por “obter informações de” … a tradição judaica diz eu quinado dois mestres se encontravam a palavra da Torá estava no meio deles, isto é, trocavam informações sobre declarações doutrinais de seus mestres e predecessores.  Ou em outras palavras, eles “examinavam-se se mutuamente, … a principal tarefa de Paulo é persuadir Pedro de que a sua conversão é genuína, de que ele realmente mudou sua lealdade de perseguidor fariseu de cristãos para pregador judeu-cristão de Jesus como Cristo.”

Aqui Paulo não menciona Barnabé (cf. At 9,27). “Nenhum outro apóstolo, a não ser Tiago, o irmão do Senhor”. Supondo que Tiago faça parte dos Doze, identifica-se com o filho de Alfeu (Mc 3,18p), mas nada prova que ele tenha sido um dos doze; o título de apóstolo ainda não se restringiu apenas a estes (cf. 1Cor 15,7). Trata-se de uma das “colunas” da comunidade (cf. Gl 2,9; At 12,17; 15,13; 21,18). Não é o Tiago Maior dos Doze, o filho de Zebedeu e irmão de João (Mc 1,19p; At 12,2), mas o “irmão (parente) do Senhor” (cf. 1Cor 15,7; Tg 1,1; Jd 1,1), personagem importante e influente na comunidade de Jerusalém onde assumiu a liderança (bispo) após a partida de Pedro (At 12,17; 15,13; 21,18).

Escrevendo estas coisas, afirmo diante de Deus que não estou mentindo. Depois, fui para as regiões da Síria e da Cilícia. Ainda não era pessoalmente conhecido das igrejas da Judéia que estão em Cristo. Apenas tinham ouvido dizer que “aquele que, antes, nos perseguia, está agora pregando a fé que, antes, procurava destruir”. E glorificavam a Deus por minha causa (vv. 20-24).

A região “da Síria e da Cilícia” inclui provavelmente Tarso, a cidade natal de Paulo (At 9,11). Ficou um bom tempo lá, possivelmente evangelizando. Em consequência disso, não era pessoalmente conhecido como cristão por parte das “igrejas da Judéia”; apenas “tinham ouvido dizer que ‘aquele que, antes, nos perseguia, está agora pregando a fé que, antes, procurava destruir’”.

A “fé” será conceito central desta carta. Mas o que designa aqui o tema fé (grego pistis)? Não apenas uma doutrina em que acreditar, mas uma vida, cujo cerne é a fé (em 3,23 significa o regime da fé que põe fim ao da lei judaica). Em Paulo, é uma constante concluir reduzindo tudo à glória e louvor de Deus.

John J. Pilch (Comentário Bíblico, vol. 3, p. 237) comenta: A bem-sucedida mudança de participação e lealdade de Paulo de um grupo para outro está evidenciada no v. final do cap. 1 … A realidade desse convicção reflete-se na glorificação a Deus a respeito de Paulo.

 

Evangelho: Lc 10,38-42

Este evangelho é próprio de Lc que valoriza a participação das mulheres (cf. Lc 1-2; 7,11-16.36-50; 8,1-3; 13,10-17; 15,8-10; 18,1-8; 24,10-11; At 1,14; 9,36-42; 16,14s; 18,2 etc.). No episódio de Marta e Maria, tudo está concentrado na palavra que o conclui. Nas sinagogas e no templo, as mulheres não podiam participar plenamente. Jesus dá a mulher o direito de escutar a Palavra de Deus e não só o dever de servir aos homens.

Paulo valorizava as mulheres (cf. Gl 3,28) e deu a elas o direito de falar na assembleia (1Cor,11,2-16), o qual foi revogado pela terceira geração (que escreveu as cartas pastorais, cf. 1Tm 2,11-12, e criou o ministério das viúvas, cf. 1Tm 5,2-16). Paulo chama uma mulher de “diaconisa”, outra de “apóstola” (Rm 16,1.7). Lc menciona um casal colaborador na missão de Paulo, em que o nome da mulher Priscila/Prisca geralmente é citado antes do seu marido, porque era a parte mais ativa (cf. At 18,2.18.26; Rm 16,3; 1Cor 16,19; 2Tm 4,19). Todos os evangelistas reconhecem o papel das mulheres no pé da cruz e no primeiro anúncio da ressurreição. St.º Agostinho chamou Madalena “a apóstola dos apóstolos”.

Jesus entrou num povoado, e certa mulher, de nome Marta, recebeu-o em sua casa. Sua irmã, chamada Maria, sentou-se aos pés do Senhor, e escutava a sua palavra. Marta, porém, estava ocupada com muitos afazeres. Ela aproximou-se e disse: “Senhor, não te importas que minha irmã me deixe sozinha, com todo o serviço? Manda que ela me venha ajudar!” (vv. 38-40).

As duas irmãs são provavelmente as mesmas que em Jo 11,1-40 e 12,1-3, pois elas são descritas com os mesmo traços: Marta empenhada no serviço (Jo 11,20; 12,2), Maria prostrada aos pés de Jesus (11,32; 12,3). Marta faz uma bela profissão de fé em Jo 11,27 (comparável a de Simão Pedro em Mt 16,16!). A preferência em Lc é de Maria, sentada aos pés de Jesus escutando a Palavra (atitude de discípulo: os alunos sentavam-se no chão aos pés do mestre, cf. 8,35; 10,39; At 22,3)

O Senhor, porém, lhe respondeu: “Marta, Marta! Tu te preocupas e andas agitada por muitas coisas. Porém uma só coisa é necessária. Maria escolheu a melhor parte e esta não lhe será tirada” (vv. 41-42).

Lc prefere chamar Jesus de “Senhor” (cf. 7,13.19; 10,1.39.41; 12,42; 13,15; 17,5s; 18,6; 19,8; 22,61; 24,34). Chamar o nome da mulher duas vezes, indica que uma atitude precisa ser corrigida. A preocupação central deve ser a do reino de Deus (cf. 12,31p). Jesus passa da perspectiva da refeição (“pouca coisa é necessária”) a do único necessário (em 10,42 tem variação do texto: “no entanto, uma só coisa é necessária”, ou “no entanto, pouca coisa é necessária”). A palavra de Jesus passa adiante de toda preocupação temporal (cf. 12,31p), e na obra de Lc, o texto é comparável ao de At 6,2 (a instituição dos diáconos para os apóstolos poderem servir melhor a Palavra).

No contexto do “amor a Deus e ao próximo” (vv. 25-37), nosso episódio seja talvez uma correção para valorizar a contemplação (meditação da Palavra), e não só o ativismo (do serviço social, do bom samaritano). São duas atitudes humanas que devem estar em equilíbrio. Assim S. Bento deu sua regra “Ora et labora” (reze e trabalhe) e o fundador da comunidade de Taizé, Frei Roger Schütz, falava de “luta e contemplação”. A escuta precede e acompanha o serviço. Não se trata de contrapor Marta e Maria como ação e contemplação. O desejo de escutar a palavra de Deus não pode ser cancelado por outras atividades sociais. Devemos dar tempo e espaço para estarmos com Deus e receber dele todo o amor para depois dedicarmos aos outros.

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