7 de Agosto 2019, Quarta-feira: Jesus lhe disse: “Mulher, grande é a tua fé! Seja feito como tu queres!” E desde aquele momento sua filha ficou curada (v. 28).

18ª Semana do Tempo Comum 

Leitura: Nm 13,1-2.25-14,1.26-30.34-35

Na nossa leitura de muitos dias acompanhamos a saída da escravidão e a caminhada do povo de Deus pelo deserto. Agora chega o momento de se alcançar a «terra onde corre leite e mel» (13,27; prometido desde Ex 3,8), isto é, o ideal de todo um projeto de libertação. Mas a análise da realidade (exploração do país) vai demonstrar que as coisas não são tão simples como se pode imaginar. Será preciso enfrentar os cananeus que dominam essa terra. Eles são fortes e parecem invencíveis (13,28: gigantes, cidades grandes e fortificadas). Então, o próprio objetivo a ser alcançado é minimizado ou falsificado: desprezar e denegrir o ideal é a maneira mais fácil de fugir da luta ou evitar que ela seja desencadeada. Sob a capa desse desprezo e fuga se esconde a covardia. Tudo isso faz com que o projeto se torne muito mais difícil e seja retardado por gerações inteiras.

A Bíblia do Peregrino (p. 250) comenta: O episódio dos exploradores em Nm 13-14 é decisivo na caminhada rumo a terra prometida. Do Egito ao Sinai, do Sinai à fronteira sul da terra: só falta entrá-la e ocupá-la?  É o desenlace lógico. Mas as velhas tradições o contam de outro modo, mais complicado e dramático: o povo recusa a entrar e, como castigo, começa grande e prolongada volta. A história continua, mas o homem que resiste a salvação adia o termo.

O texto resulta das combinações de tradições mais antigas dos calebitas ou cenezeus que ocuparam Hebron (cf. Js 14,6.14) com elementos da redação sacerdotal (as doze tribos, todo o país). Outra versão está em Dt 1. Moisés, Caleb e Josué servem para ligar a obra sacerdotal à obra deuteronomista (Dt 1,19-40).

O Senhor falou a Moisés, no deserto de Farã, dizendo: “Envia alguns homens para explorar a terra de Canaã, que vou dar aos filhos de Israel. Enviarás um homem de cada tribo, e que todos sejam chefes” (13,1-2).

O Senhor começa dando uma ordem. Na versão democratizante de Dt 1 é o povo quem propõe. “Explorar” ou espiar o território inimigo é prática militar antiga (Js 6,22; 14,7; Jz 1,23; 18,2; cf. Gn 42,9). “Enviarás um homem de cada tribo”; os doze exploradores representam as doze tribos, ou seja, Israel inteiro (cf. os doze filhos de Jacó em Gn 35,22b-26; Ex 1,1-2; os doze prefeitos de Salomão em 1Rs 4,7 e os doze apóstolos de Jesus em Mc 3,14p).

O deserto de “Farã” fica perto de Cades (v. 25). Ismael morou lá e se casou com uma mulher egípcia (Gn 21,21). Quando o povo saiu do Sinai, a nuvem se deteve lá e o povo acampou lá (Nm 10,12; 12,16). O monte Farã está ligado ao culto antigo de Yhwh (Javé, cf. Dt 33,2; Hab 3,3) e fica no sul da Transjordânia (Edom, Seir), a leste e ao sul do mar Morto descendo ao golfo de Aqabá.

Ao fim de quarenta dias, eles voltaram do reconhecimento do país, e apresentaram-se a Moisés, a Aarão e a toda a comunidade dos filhos de Israel, em Cades, no deserto de Fará. E, falando a eles e a toda a comunidade, mostraram os frutos da terra, e fizeram a sua narração, dizendo: (13,25-27a)

Nossa liturgia abrevia o texto omitindo bastante versículos. O tempo que dura a expedição em números redondos “quarenta dias”, também terá função narrativa, como veremos (14,34). “Cades” significa em hebraico “santo (lugar)”; não é uma cidade ou lugar preciso, mas outro polo na caminhada pelo deserto além do Sinai. Lá Israel se constituiu como comunidade antes de entrar na terra prometida. Hoje se identifica mais com o oásis do norte do Sinai, uma região no deserto de Sin (20,1; 33,36), 75 km a sudeste da Bersabéia. Este oásis sempre foi uma etapa das caravanas.

“Entramos no país, ao qual nos enviastes, que de fato é uma terra onde corre leite e mel, como se pode reconhecer por estes frutos. Porém, os habitantes são fortíssimos, e as cidades grandes e fortificadas. Vimos lá descendentes de Enac; os amalecitas vivem no deserto do Negueb; os hititas, jebuseus e amorreus, nas montanhas; mas os cananeus, na costa marítima e ao longo do Jordão” (13,27b-28).

O relatório dos exploradores corresponde às instruções recebidas. Por hora é neutra e realista: apresenta as duas faces da situação: “onde mana leite e mel” fórmula de ascendência mítica que se usa na liturgia; mais que noticia é uma profissão de fé, como se dissesse que se trata realmente da terra prometida em contraste com o deserto. Os exploradores trouxeram um cacho de uvas gigantes pendente de uma vara e levado por dois homens (v. 23), é o emblema turístico de Israel hoje.

Os anaquitas, ou seja, os “descendentes (filhos) de Enac” (vv. 28.33), habitavam nas montanhas da Judeia antes da chegada de Israel. Na lenda viraram gigantes (cf. v. 33; Dt 2,10; 9,2; Js 11,21) e moravam em Hebron (13,22; cf. Gn 13,18; 23,2; Js 15,13s. Jz 1,20; 2Sm 2,1), cidade fundada em 1743 a.C. (conforme o dado de 13,22).

Entretanto Caleb, para acalmar o povo revoltado, que se levantava contra Moisés, disse: “Subamos e conquistemos a terra, pois somos capazes de fazê-lo”. Mas os homens que tinham ido com ele disseram: ”Não podemos enfrentar esse povo, porque é mais forte do que nós” (13,30-31).

Somente dois dos exploradores, Caleb da tribo de Judá (13,6; Js 14,6-15; Jz 1,20) e Josué da tribo de Efraim (cf. 13,8.16; cf. Ex 17,9s.13; 24,13; 32,17; 33,11; Nm 11,28; Js 1,1) demonstram fé e coragem. A intervenção de Caleb supõe que o povo começou a protestar. Enfrentam-se dramaticamente duas atitudes. A fé que infunde valentia e é comunicativa: “somos capazes” (cf. o sucesso da campanha eleitoral de Obama: “Sim, podemos”). A falta de fé que gera covardia, “não podemos”.

E, diante dos filhos de Israel, começaram a difamar a terra que haviam explorado, dizendo: “A terra que fomos explorar é uma terra que devora os seus habitantes: o povo que aí vimos é de estatura extraordinária. Lá vimos gigantes, filhos de Enac, da raça dos gigantes; comparados com eles parecíamos gafanhotos” (13,32-33).

”Uma terra que devora” cf. Lv 26,38; Ez 36,13-15. Então para justificar-se passa a desacreditar a terra (cf. a fábula da raposa e das uvas “azedas”). E termina em complexo de inferioridade: “parecíamos gafanhotos”.

A Nova Bíblia Pastoral (p. 169s) comenta: Os exploradores que não confiam e não aceitam as ordens de Javé serão mortos (cf. 14,36-37). Forjando essa imagem de Javé…, a teocracia busca total obediência aos rituais e à entrega de tributos no pós-exílio.

Então, toda a comunidade começou a gritar, e passou aquela noite chorando (14,1). 

Neste trecho de 14,1-9, a desconfiança dos exploradores é estendida a todos, preparando a narrativa da condenação de todo o povo que saiu do Egito (cf. 14,20-38). Como em Ex 14,17, o povo fraqueja na fé e na confiança, ao confrontar-se com o perigo próximo. O autor acumula dados: “gritos, prantos, murmurações”; os exploradores covardes contagiaram o povo inteiro.

Em vv. 2-4 (omitidos na liturgia de hoje) não invocam formalmente a morte, mas a desejam de forma natural, no Egito ou no deserto, sem enfrentar a morte violenta e prematura na batalha. Distorcem e deformam o sentido da libertação do Egito e da chegada a esta terra: Foi para morte, não para salvação. Atribuem a dificuldade ao Senhor e blasfemam contra ele. Propõem desfazer o que foi feito, desandar o caminho, regressar a escravidão. A falta de fé torna-se pecado gravíssimo.

O Senhor falou a Moisés e Aarão, e disse: “Até quando vai murmurar contra mim esta comunidade perversa? Eu ouvi as queixas dos filhos de Israel. Dize-lhes, pois: “Por minha vida, diz o Senhor, juro que vos farei assim como vos ouvi dizer! Neste deserto ficarão estendidos os vossos cadáveres. Todos vós que fostes recenseados, da idade de vinte anos para cima, e que murmurastes contra mim, não entrastes na terra na qual jurei, com mão levantada, fazer-vos habitar, exceto Caleb, filho de Jefone, e Josué, filho de Nun (14,26-30).

O povo em 14,2 lamentava de não ter morrido no deserto, o Senhor vai pegá-lo pela palavra. Josué e Caleb tentaram convencer o povo, mas este queria até apedrejá-los (14,6-9). Só saem salvos pela glória (nuvem) do Senhor que aparece na Tenda do encontro (14,10). Moisés intercede em 14,13-19 (como em Ex 32,12 depois do bezerro de ouro; cf. Dt 9,25) e consegue o perdão que Deus concede: não vai destruir totalmente o povo, mas adiar a história. Os vv. 26-38 são paralelos aos vv. 11-25, porém redigidos no espírito da narrativa sacerdotal, para a qual o povo eleito é uma comunidade enumerada.

Carregareis vossa culpa durante quarenta anos, que correspondem aos quarenta dias em que explorastes a terra, isto é, um ano para cada dia; e experimentareis a minha vingança”. Eu, o Senhor, assim como disse, assim o farei com toda essa comunidade perversa, que se insurgiu contra mim: nesta solidão será consumida e morrerá” (14,34-35).

O tempo no deserto, segundo a tradição, é de “quarenta anos” (números redondos, Am 2,10; 5,25; cf. Ex 16,35; Nm 33,38; Dt 1,3; 2,7; 8,2; Js 5,6). O número mede o adiantamento: um ano por dia empregado em explorar a terra (13,25). O enlace é artificial, já que o pecado não consiste em enviar exploradores, mas sim na recusa de entrar. Será um tempo de dilação para “provar” e educar o povo na paciência e na esperança.

A segunda medida do adiantamento é a passagem das gerações. Cada geração tem uma função na história. Há de consumir-se uma geração adulta, antes que a seguinte cumpra sua missão de entrar: o tempo biológico se converte em tempo de salvação adiada. O nascimento de filhos assegura biologicamente a continuidade do povo. O deserto fica, assim sob o signo do pecado e do castigo, mas amparado pela graça.

A Nova Bíblia Pastoral (p. 170s) comenta: A intercessão de Moisés livra o povo da morte imediata, mas não do castigo de vagar no deserto por quarenta anos, até todos morrerem. Essa imagem de Javé reforça a função pós-exílica do Templo e do sumo sacerdote… Apesar de ser base de muitas teologias atuais, não é essa a teologia de Jesus (cf. Mt 9,13; Mc 2,27; Lc 15,32; Jo 10,10).

 

Evangelho: Mt 15,21-28

No evangelho de hoje, Jesus se afasta outra vez (cf. 12,15; 14,13), desta vez vai à região pagã do Líbano e da Síria, às cidades Tiro e Sidônia, onde realiza outra cura à distância (a primeira foi a do servo/filho do centurião pagão em Cafarnaum (8,5-13).

Jesus foi para a região de Tiro e Sidônia (v. 21).

Estas duas cidades litorâneas da Fenícia (atual Líbano) foram acusadas no AT por causa da sua riqueza e soberba (cf. Is 1,9s; Lm 4,6-16; Ez 16,46-56). Em 8,28-34, Jesus já estava numa região pagã (apesar de 10,5s).

Eis que uma mulher cananeia, vindo daquela região, pôs-se a gritar: “Senhor, filho de Davi, tem piedade de mim: minha filha está cruelmente atormentada por um demônio!” (v. 22).

Depois da controvérsia com os fariseus e mestres da lei que vieram de Jerusalém (vv. 1-20), Jesus encontra uma mulher pagã, uma cananeia. “Cananeia” não é só expressão bíblica por pagã, mas corresponde à autodenominação dos moradores de lá, dos fenícios. Em Mc 7,26, ela é caracterizada como “grega, siro-fenícia de nascimento”; os gregos chamaram os cananeus de “fenícios”. Em Is 23,11s, a região da Fenícia faz parte da terra de Canaã.

Como o centurião romano em 8,5s (cf. o comentário do sábado da 12ª semana), ela pede ajuda por sua filha, pedindo piedade na linguagem dos salmos (cf. Sl 6,3; 9,14; 27,7; 31,10; 41,5; 86,3; 123,3 etc.), e chama Jesus de “Senhor” (em Mt, só os discípulos e pessoas necessitadas o chamam assim). Em Mc falta esta aclamação, a mulher só veio e atirou-se aos pés de Jesus (Mc 7,24). Aqui em Mt, como os dois cegos (9,27), ela chama Jesus de “Filho de Davi” (cf. 1,1; 12,23; 20,30p; 21,9.15), sabe já antes da profissão de fé de Pedro (16,16p; cf. 14,33) que Jesus é o messias de Israel, que curava muitas pessoas na terra dele. A mulher pagã reconhece que Jesus não é só uma personalidade moral e religiosa, mas alguém que realiza um projeto concreto: guiar o povo de Deus na história. Esse reconhecimento do Filho de Davi faz que ela participe, com sua filha, desse projeto. Não são os atos de purificação ou as crenças particulares que engajam alguém no povo de Deus, mas o fato de acreditar que Jesus é o líder desse povo.

Mas, Jesus não lhe respondeu palavra alguma (v. 23a).

Um rabino judeu não costumava conversar com mulheres estranhas, muito menos com uma pagã (cf. Jo 4,7-9).

Então seus discípulos aproximaram-se e lhe pediram: “Manda embora essa mulher, pois ela vem gritando atrás de nós” (v. 23b).

Mt acrescentou ao relato que pegou de Mc 7,24-30 a reação dos discípulos. Insensíveis a miséria alheia, os discípulos não intercedem, mas querem se livrar da gritaria dela.

Jesus respondeu: “Eu fui enviado somente às ovelhas perdidas da casa de Israel (v. 24).

A resposta de Jesus justifica a má educação dos discípulos diante da mulher com sua própria missão que se dirige ao povo de Israel. As “ovelhas perdidas” de Israel não são os pecadores (cf. 18,12-14), mas o povo eleito por inteiro, ao qual faltam pastores (9,36; 10,5s). Através da missão de Jesus, Deus é fiel às suas promessas para seu povo. Só pela rejeição do povo judeu, a missão se abrirá aos pagãos, mas só no final do evangelho, depois da ressurreição (28,19s).

Mas, a mulher, aproximando-se, prostrou-se diante de Jesus, e começou a implorar: “Senhor, socorre-me!” (v. 25).

De novo, a mulher pede socorro (cf. Sl 44,27; 70,6; 79,9; 109,28) chamando Jesus outra vez de “Senhor” (v. 22) e agora se prostrando diante dele (Mc 7,25; cf. Mt 2,11; 8,2; 9,18; 14,33). O pedido repetido da mulher e a tentativa dos outros de afastá-lo lembram a cura do cego Bartimeu (Mc 10,46-52; cf. Mt 20,29-34).

Jesus lhe disse: “Não fica bem tirar o pão dos filhos para jogá-lo aos cachorrinhos” (v. 26).

A resposta de Jesus só se pode entender dentro do (pré-)conceito dos judeus: Os “filhos” são os israelitas (Ex 4,22; Os 11,1). A eles se serve “primeiro” (Mc 7,27) e a comida melhor. Mt salienta a preferência pelos judeus na história da salvação (10,5s; cf. Jo 4,22; Rm 9,4s). O que resta é para os cães criados em casa. Nesta comparação, “cães” designa os pagãos, mas não era metáfora tal comum (cf. 7,6).

A mulher insistiu: “É verdade, Senhor; mas os cachorrinhos também comem as migalhas que caem da mesa de seus donos!” (v. 27).

A mulher aceita a comparação, quer por humildade, quer porque assim resta alguma coisa para ela. Ela pode insistir no seu pedido, porque até os cães recebem comida.

Diante disso, Jesus lhe disse: “Mulher, grande é a tua fé! Seja feito como tu queres!” E desde aquele momento sua filha ficou curada (v. 28).

Agora Jesus atende a vontade dela. Em Mt, não são as pessoas que falam da sua própria fé, mas Jesus declara a insistência e confiança do pedido delas como “fé”. Por causa desta fé, a filha pode sarar. A fé inclui curas concretas, até à distância. O final assemelha-se da cura do filho/servo do centurião romano (8,13), e como esta, é outro sinal para entender a história da salvação após a ressurreição.

Jesus não confina a ação de Deus nos limites de Israel, mas deixa-se tocar pela fé de uma mulher pagã. Os pagãos serão salvos à distância, não pelo encontro direto com Jesus (privilégio histórico dos judeus, da terra santa), mas por sua palavra. A comunidade de Mt consistia de judeu-cristãos, vivendo em ambiente pagã e hostilizados por outros judeus. A abertura de Jesus os incentiva a procurar novos relacionamentos e áreas de atuação. A nós, este evangelho de hoje pode incentivar a insistência da oração, mas também o ecumenismo e o diálogo inter-religioso, ou seja, reconhecer certa fé em outras religiões também (cf. os documentos do Concílio Vaticano II, UR e NA).

O site da CNBB comenta: O Evangelho de hoje nos revela a diferença fundamental entre o judaísmo e o cristianismo, entre as ideias do povo de Israel e as ideias que devem marcar a vida da Igreja. Para o povo de Israel, ele era o único povo de Deus e não poderia haver outro e as demais nações da terra não poderiam receber os benefícios de Deus. Para a Igreja, todos os homens e mulheres do mundo, de todas as classes, línguas e nações, são objetos da ação salvífica de Deus, de modo que a graça divina é para todos e a salvação é universal. No primeiro momento do Evangelho de hoje, Jesus nos mostra que é verdadeiramente um judeu, mas no segundo, nos mostra como verdadeiramente devemos ser e agir.

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