7 de Fevereiro de 2020, Sexta-feira: Alguns diziam: “João Batista ressuscitou dos mortos. Por isso os poderes agem nesse homem.” Outros diziam: “É Elias.” Outros ainda diziam: “É um profeta como um dos profetas” (vv. 14b-15).

4ª Semana do Tempo Comum 

Leitura: Eclo 47,2-13 (gr. 2-11)

Interrompendo a sequência dos livros de Samuel e Reis, ouvimos hoje o resumo da vida de Davi em forma poética como foi escrito por Ben Sirac no livro chamado Eclesiástico.

O nome “Eclesiástico” provém do uso oficial que a Igreja (latim: ecclesia) faz desse livro, em contraposição à Sinagoga judaica que não aceita Eclo como Palavra de Deus, por isso também não foi aceito pelos cristãos protestantes (evangélicos). Mas atenção: não confundir com Ecl, ou seja, o livro Eclesiastes que é aceito por todos porque seu texto faz parte da Bíblia hebraica.

Eclo é uma obra escrita em hebraico entre 190-124 a.C. por Jesus Ben Sirac (50,27; 51,30), mas chegou até nós apenas através da tradução grega (chamada “Sirácida”) feita pelo seu neto em 132 a.C., como escreveu num prólogo. Partes do texto hebraico só foram encontradas em 1894 no Egito e em 1964 em Israel. A tradução latina (Vulgata por S. Jerônimo) e uma das versões gregas têm mais versículos do que o livro original, por isso há diferenças na numeração dos versículos nas edições das Bíblias atuais.

O livro Eclo pertence aos livros sapiências do AT. O autor Ben Sirac pertence ao “grupo dos assideus, que eram israelitas fortes, corajosos e fiéis à Lei” (1Mc 2,42) e viveu nas vésperas da revolta dos macabeus contra o helenismo (cultura grega). É um escriba sábio e como educador valoriza o exemplo dos antepassados e grandes figuras bíblicas cuja fé representa a maior sabedoria (em contraposição ao elogio dos heróis gregos na cultura helenista). Seu livro é uma coleção de provérbios e conselhos a respeito de mais diversos temas, mas destaca a glória de Deus na natureza (42,15-43,33) e na história (44,1-50,29). Em cap. 44 começa o elogio dos antepassados que, depois de Samuel (46,13-20) e Natã (47,1), chega a Davi.

Como a gordura, que se separa do sacrifício pacífico, assim também sobressai Davi, entre os israelitas (v. 2).

Davi é comparado com a melhor parte do sacrifício separada para Deus. Quando não se oferecia ao Senhor a totalidade de um animal (a palavra grega holocausto significa um sacrifício para ser queimado totalmente), oferecia-se ao Senhor as partes melhores para serem queimadas no altar. Naquela época a parte considerada melhor era a “gordura” (Lv 3,16: “Toda gordura cabe ao Senhor”; cf. Gn 45,18; Sl 36,9; 63,9). Assim se procedeu no “sacrifício da paz” (cf. Lv 3-4; grego: “da salvação”; cf. Lv 4,8-10) chamado às vezes “sacrifício de comunhão” ou “de aliança”. Uma parte era reservada aos sacerdotes e o resto da carne era consumido pelo oferente, sua família e seus amigos (cf. 1Sm 9,13-25; 16,3.5 etc.).

Brincou com leões como se fossem cabritos e com ursos, como se fossem cordeiros (v. 3).

Davi afirmou ter lutado com um leão e um urso em 1Sm 17,34-37, mas a figura do adolescente Davi é idealizada por influência da profecia messiânica de Is 11 (em Is 11,6-9 expressa-se a paz paradisíaca: os animais não farão mal um ao outro e a criança pode brincar com eles).

Não foi ele que, ainda jovem, matou o gigante e retirou do seu povo a desonra? Ao levantar a mão com a pedra na funda, ele abateu o orgulho de Golias. Pois invocou o Senhor, o Altíssimo, e este deu força ao seu braço direito e ele acabou com um poderoso guerreiro e reergueu o poder do seu povo (vv. 4-6).

O autor resume a luta de Davi com o gigante guerreiro dos filisteus, Golias, em poucos dados sugestivos (cf. 1Sm 17,32-54). Davi reergueu “o poder” do seu povo; lit. “o chifre”, metáfora bíblica corrente, sobretudo nos Salmos para exprimir a força física ou moral.

Assim foi que o glorificaram por dez mil e o louvaram pelas bênçãos do Senhor, oferecendo-lhe uma coroa de glória. Pois esmagou os inimigos por toda a parte, e aniquilou os filisteus, seus adversários, abatendo até hoje o seu poder (vv. 7-8).

Quando Davi voltou de uma expedição militar, as mulheres aclamaram: “Saul matou mil homens, mas Davi dez mil” (1Sm 18,7). O texto hebraico de Eclo traz aqui: “Por isso as jovens lhe responderam e o apelidaram com o nome de Dez Mil. Depois de cingir o diadema, combateu e por toda a redondeza subjugou o inimigo. Estabeleceu cidades entre os filisteus e quebrou-lhes o poderio até ao dia de hoje”.

As tribos ofereceram lhe a “coroa” em 2Sm 5,1-3; fugindo da perseguição por Saul, Davi morava entre os filisteus em 1Sm 27-29 e depois como rei conseguiu libertar seu povo do poder dos filisteus e de outros inimigos que atormentavam Israel desde o tempo dos juízes (cf. 2Sm 5,17-25; 8,1-14; 21,15-22).

Em todas as suas obras dava graças ao Santo Altíssimo, com palavras de louvor: de todo o coração louvava o Senhor, mostrando que amava a Deus, seu Criador. Diante do altar colocou cantores, que deviam acompanhar suavemente as melodias. Deu grande esplendor às festas e ordenou com perfeição as solenidades até o fim do ano: fez com que louvassem o santo Nome do Senhor, enchendo o santuário de harmonia desde a aurora (vv. 9-12).

O autor destaca sobretudo a contribuição de Davi para o culto (quase a metade do elogio de Davi), como tradicional autor de salmos (cf. 2Sm 23,1: “o cantor dos salmos de Israel”), e também como organizador litúrgico (cantores em 1Cr 16,4-7, solenidades em 1Cr 23,30). Davi trouxe a arca da aliança em procissão a Jerusalém (2Sm 6) e preparou o terreno para construção do futuro templo (2Sm 7,1-5.13; 24,18-25).

O Senhor lhe perdoou os seus pecados, e exaltou para sempre o seu poder; concedeu-lhe a aliança real e um trono glorioso em Israel (v. 13).

Os pecados de Davi (cf. o adultério com Betsabeia e o mandato de homicídio em 2Sm 11) são recordado com toda discrição; dá-se mais ênfase ao perdão de Deus (cf. Sl 51/50). Jerusalém está unida à escolha de Davi. Com a promessa de dinastia perene no “trono glorioso de Israel”, Deus firmou com Davi uma “aliança real” (“eterna” em 2Sm 23,5; cf. 2Sm 7,11-16; Sl 89,29-38; Is 55,3), “exaltou para sempre seu poder”.

Evangelho: Mc 6,14-29

O evangelista encontrou um bom lugar no seu livro para encaixar a notícia da morte de João Batista, o “precursor” (cf. 1,2), cuja prisão já foi mencionada bem antes (1,14). Depois do envio dos apóstolos (vv. 7-13; evangelho de ontem), há de esperar o resultado desta missão. Então, antes de narrar a volta dos discípulos em v. 30, Mc encaixa a notícia da morte do Batista durante um banquete de Herodes (banquete da morte). Depois, a volta dos apóstolos emboca noutro banquete, a multiplicação dos pães, banquete da vida (vv. 30-44).

O rei Herodes ouviu falar de Jesus, cujo nome se tinha tornado muito conhecido (v. 14a).

O alcance da mensagem de Jesus se ampliou, até “o rei Herodes ouviu falar de Jesus”. Não é mais Herodes Magno (o Grande) que perseguiu o menino Jesus (Mt 2), mas um dos seus filhos que dividiram o governo sobre o território do pai. Herodes Antipas era governador (“rei”; Mt 14,1 corrige: “tetrarca”) da Galileia e da Pereia (Transjordânia) na época de Jesus.

Alguns diziam: “João Batista ressuscitou dos mortos. Por isso os poderes agem nesse homem.” Outros diziam: “É Elias.” Outros ainda diziam: “É um profeta como um dos profetas” (vv. 14b-15).

Poucos entendem quem é Jesus, o confundem com João Batista ou Elias ou outro profeta (cf. 8,27-29). João Batista e Jesus tinham quase a mesma idade e eram parentes (cf. Lc 1,36). João Batista deixou um impacto de modo que Jesus parecesse uma cópia dele (“ressuscitou”, seguidor?) e não João como precursor de Jesus (cf. Mt 3,14s).

Na opinião do povo, o profeta Elias, arrebatado ao céu (2Rs 2,11), voltaria para preparar o povo para a vinda do messias (Ml 3,1.23-24; Mc 9,11-13; Mt 17,10-13). O povo não levou em conta as diferenças entre Jesus e João esclarecidas no quarto evangelho (Jesus não batizou; João não realizou milagres nem transmitiu o Espírito, cf. Jo 1,19-36; 3,22-30; 4,1-2).

Ouvindo isto, Herodes disse: “Ele é João Batista. Eu mandei cortar a cabeça dele, mas ele ressuscitou!” (v. 16).

Herodes achou que João ressuscitou em Jesus (cf. v. 14b); talvez sua consciência ficasse pesada pelas circunstâncias da morte do Batista que Mc relata em seguida em técnica retrospectiva.

Herodes tinha mandado prender João, e colocá-lo acorrentado na prisão. Fez isso por causa de Herodíades, mulher do seu irmão Filipe, com quem se tinha casado. João dizia a Herodes: “Não te é permitido ficar com a mulher do teu irmão.” Por isso Herodíades o odiava e queria matá-lo, mas não podia. Com efeito, Herodes tinha medo de João, pois sabia que ele era justo e santo, e por isso o protegia. Gostava de ouvi-lo, embora ficasse embaraçado quando o escutava. (vv. 17-20).

Com grande maestria literária, Marcos nos conta o martírio do Batista começando por descrever a situação na corte de Herodes. O motivo da prisão nos evangelhos é a crítica de João a respeito do casamento ilegítimo do governador. Para um historiador contemporâneo, José Flávio (37-100 d.C.), o motivo era outro: Herodes prendeu João por sua crítica social e política.

Em Mc, mesmo na prisão, o profeta não se cala e continua falando. Herodes Antipas parece ter herdado um pouco do caráter psicótico do seu pai. Seu comportamento é ambíguo: gosta de escutar João, embora fique embaraçado; pela influência da sua mulher, colocou João na prisão, mas tem medo dele, porque João era o homem de Deus (“justo e santo”).

A relação ilegítima de Herodes (Lv 18,16; 20,21), a admoestação franca de João (como a do profeta Natã ao rei Davi, cf. 2Sm 12), o rancor passional de Herodíades; tudo isso nos lembra o drama do fraco rei Acab, cuja esposa Jezabel o incitava ao crime (1Rs 21), e o profeta justo e santo, Elias, acabou ser perseguido e ameaçado de morte (cf. 1Rs 18-19; 21; Elias é o modelo para o Batista, cf. 2Rs 1,8; Mt 3,4; 11,14; 17,11-13).

Finalmente, chegou o dia oportuno. Era o aniversário de Herodes, e ele fez um grande banquete para os grandes da corte, os oficiais e os cidadãos importantes da Galileia. A filha de Herodíades entrou e dançou, agradando a Herodes e seus convidados. Então o rei disse à moça: “Pede-me o que quiseres e eu to darei.” E lhe jurou dizendo: “Eu te darei qualquer coisa que me pedires, ainda que seja a metade do meu reino.” (vv. 21-23).

Marcos segue a técnica narrativa bíblica: reprime suas emoções, como se narrasse a frio, e deixa que os fatos comovam o leitor. Muitos escritores e músicos exploraram o potencial dramático desse relato. Celebra-se o aniversário do rei em clima de festa. É a ocasião de fazer benefícios e conceder perdão. A princesa faz o papel de bailarina (cf. Ct 7,1-7) num solo de exibição, oferecido a um público masculino. O aplauso é geral, e o rei, numa demonstração de magnificência, promete dar-lhe quanto pedir, e o jura com uma fórmula hiperbólica (cf. Est 5,3.6; 7,2). Jurando (v. 26), Herodes abusa do nome divino, seu juramento leva ao crime. O nome da moça, Salomé, consta em documentos fora da Bíblia.

A morte de João acontece dentro de um banquete de poderosos. O profeta que pregava a conversão, o início de transformação radical pela vinda do messias (cf. 1,4-8) é morto por aqueles que se sentem incomodados com essa transformação. Herodes celebra o banquete da morte (de João) com os grandes, Jesus celebrará o banquete da vida com o povo necessitado (a narrativa seguinte é a multiplicação dos pães em 6,30-44).

Ela saiu e perguntou à mãe: “O que vou pedir?” A mãe respondeu: “A cabeça de João Batista.” E, voltando depressa para junto do rei, pediu: “Quero que me dês agora, num prato, a cabeça de João Batista.” O rei ficou muito triste, mas não pôde recusar. Ele tinha feito o juramento diante dos convidados. (vv. 24-26).

Herodíades aproveita a ocasião propícia. O inesperado pedido da princesa coloca o rei numa posição comprometida: dividido entre sua estima ou temor (v. 20) pelo Batista e o juramento pronunciado diante dos convidados. O pedido invalida sem mais o juramento. Um juramento não pode justificar um crime de assassinato. Mas o rei cede à sensualidade da moça e aos compromissos de corte.

Imediatamente, o rei mandou que um soldado fosse buscar a cabeça de João. O soldado saiu, degolou-o na prisão, trouxe a cabeça num prato e a deu à moça. Ela a entregou à sua mãe. Ao saberem disso, os discípulos de João foram lá, levaram o cadáver e o sepultaram (vv. 27-29).

A festa tem um final macabro. O quadro denuncia sem afetação a imoralidade e corrupção dos dirigentes. Uma cena semelhante, embora de signo contrário, é Judite levando e mostrando a cabeça de Holofernes (Jt 13). Uma tradição judaica sobre Ester fala da cabeça da rainha Vasti (cf. Est 1,9-2,1) levada numa bandeja à sala. A princesa Salomé levando o prato com a cabeça de João Batista cortada tem acendido a fantasia de escritores e artistas e convertido João e Salomé em figuras arquetípicas. Mas o fim trágico de João está prefigurando antes de tudo a morte de Jesus e também sua sepultura: João é o “precursor” na vida e na morte. O leitor, porém, ouvirá o primeiro anúncio explícito da paixão de Jesus só em 8,31, mas já pode vislumbrar que Jesus poderá tomar o mesmo destino de profeta (cf. 2,20; 3,6).

O site da CNBB comenta: Todas as pessoas que participam da missão de Jesus, participam também do seu tríplice múnus: sacerdotal, profético e real. Participam do sacerdócio de Cristo através da busca da santificação pessoal e comunitária, da oração, da intercessão, etc. Participa do múnus profético através da palavra que denuncia o pecado e anuncia o Reino e participa do múnus régio pelo serviço aos irmãos e irmãs. A participação no múnus profético exige compromisso com a verdade e os valores morais, que atrai a ira de todos os que são contrários à proposta de Jesus, e, como no caso de João Batista, acarreta em ódio, vingança, perseguição e pode até levar à morte.

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