7 de Novembro de 2020, Sábado: Quem é fiel nas pequenas coisas também é fiel nas grandes, e quem é injusto nas pequenas também é injusto nas grandes. 

31ª Semana do Tempo Comum 

Leitura: Fl 4,10-19

Ouvimos hoje o término da carta (exceto as saudações finais em vv. 20-23). No mesmo clima de alegria, o apóstolo quer agradecer ainda aos filipenses pelo auxílio recebido em Tessalônica, e agora trazido por Epafrodito (2,25-30). Pelo que consta, essa ajuda foi caso único. No mais, ele sempre fez questão de pregar na gratuidade e trabalhar para a própria manutenção (cf. At 18,3).

Ao mesmo temo, quer fazer profissão de independência e liberdade para sua missão apostólica. Tal subvenção recebida não lhe tira a liberdade, pois sua riqueza está em Deus. Embora seja fraco, do Senhor recebe força para suportar qualquer coisa (cf. 2Cor 12,9s); antes falava de vida ou morte (1,20-25; 2,17; 3,10). A liberdade que Paulo busca não é simplesmente a autarquia dos filósofos estoicos, embora tenha pontos de contato com ela.

Grande foi minha alegria no Senhor, porque afinal vi florescer vosso afeto por mim. Na verdade estava sempre vivo, mas faltava-lhe oportunidade de manifestar-se (v. 10).

Esta oportunidade se concretizou nos socorros trazidos por Epafrodito quando Paulo estava deles urgentemente necessitado na prisão onde escreve esta carta (v. 18; 2,25-30). Com extrema justeza de tom (que se depara também quando escreve da prisão a Filêmon, cf. Fm), Paulo exprime ao mesmo tempo a sua independência e sua gratidão, à luz da sua missão e com “grande alegria” (característica desta carta, cf. 1,4.18.25; 2,2.17s.28s; 3,1; 4,1.10).

Não é por necessidade minha que vos digo, pois aprendi muito bem a contentar-me em qualquer situação (v. 11).

“Contentar-me em qualquer situação”; entre os filósofos estoicos, esse termo (autárkhês) significava a liberdade do sábio a respeito das circunstâncias e flutuações da vida. Mas o autodomínio de Paulo tem uma origem e uma tonalidade diferentes, não é uma autossuficiência, pois ele o deve unicamente “Àquele” que o torna forte (v. 13).

Sei viver na miséria e sei viver na abundância. Eu aprendi o segredo de viver em toda e qualquer situação, estando farto ou passando fome, tendo de sobra ou sofrendo necessidade (v. 12).

“Eu aprendi o segredo” lit. eu fui “iniciado”; termo próprio dos cultos de “mistérios”, cujo sentido aqui é simplesmente: eu aprendi uma coisa que nem todos sabem.

Tudo posso naquele que me dá força (v. 13).

Sem pronunciar lhe o nome, Paulo pensa em Cristo ressuscitado e na ação do “poder (força)” de Deus nele (cf. 3,10.21). Esta força pode ser o Espírito na pregação do apóstolo ou a força de resistir a doenças e provações e lutar pelo evangelho (cf. 1Cor 2,4; At 1,8; 2Cor 12,9).

No entanto, fizestes bem em compartilhar as minhas dificuldades. Filipenses, bem sabeis que, no início da pregação do evangelho, quando parti da Macedônia, nenhuma igreja, a não ser a vossa, se juntou a mim numa relação de crédito. Já em Tessalônica, mais de uma vez, me enviastes o que eu precisava (vv. 14-16). 

“No início da pregação do evangelho”, isto é, na chegada da missão de Paulo na Macedônia (At 16-21), quer em Filipos, quer nas cidades por onde passou em seguida (Anfípolis, Apolônia, Tessalônica, Bereia; cf. At 17,1.10). A expressão visa ao momento da conversão deles (cf. 1,5).

“Numa relação de crédito” (lit. de dar e receber, ou: uma conta de “haver” e “dever”). Paulo emprega uma expressão das transações comerciais, a fim de insistir sobre o intercâmbio de bens espirituais e materiais que se estabeleceu entre ele e os cristãos de Filipos (1,5: “comunhão”; cf. 1Cor 9,11). Essas doações são as únicas que ele consentiu aceitar para si. Depois da sua partida de Tessalônica, Paulo recebeu, sem dúvida, a ajuda deles em Coríntio (2Cor 11,8s).

Geralmente Paulo se recusava a aceitar tais compensações, embora as considera legítimas (1Cor 9,6-14; Gl 6,6; 2Ts 3,9, cf. Lc 10,7). Preferiu trabalhar com as próprias mãos para provar seu desinteresse (At 18,3; 20,33s; 1Cor 4,12; 9,15-18; 2Cor 11,7-12) e evitar a suspeita de fazer da pregação um negócio e se enriquecer com donativos. Só fez exceção para os seus queridos filipenses.

A Bíblia do Peregrino (p. 2823) comenta: Como princípio geral, Paulo preferiu não receber para si, para não ser um peso e para conservar a independência. Mas seria outra dependência atar-se rigidamente a esse princípio. Ao contrário, sabe recusar e sabe receber, segundo as circunstâncias.

Cf. no AT: Abraão recebe do Faraó, mas recusa do rei de Sodoma (Gn 12,16 e 14,22-24); Eliseu aceita da sunamita e recusa de Naamã (2Rs 4,9-10 e 5,16).

Não que eu procure presentes, porém, o que eu busco é o fruto que cresça no vosso crédito. Agora, tenho tudo em abundância. Tenho até de sobra, desde que recebi de Epafrodito o vosso donativo, qual perfume suave, sacrifício aceito e agradável a Deus. O meu Deus proverá esplendidamente com sua riqueza a todas as vossas necessidades, em Cristo Jesus (vv. 17-19).

Continua na linguagem comercial para retorcer seu sentido: sai ganhando quem dá (At 20,35, citado por Paulo como frase de Jesus). Quem dá, receberá de Deus a paga com juros acrescidos (cf. Dt 15,1-11; Eclo 29,11-13), “o fruto que cresça no vosso crédito”, essas doações dos cristãos revertem no seu enriquecimento espiritual, porque Deus é quem opera nesses intercâmbios (4,19).

Epafrodito nos é conhecido apenas por esta carta (a não ser que Epafras de Cl 1,7; ,12; Fm 23 seja uma forma abreviada do mesmo nome). De Filipos, trouxe os donativos para o prisioneiro Paulo, mas caiu doente, foi recuperado e enviado de volta (2,25-30).

Outra vez, Paulo introduz a linguagem cultual (cf. 2,17 a respeito do “serviço da fé”): um ato de caridade cristã é sacrifício oferecido a Deus: “quem dá esmola oferece sacrifício de louvor” (Eclo 35,2).

Paulo reproduz, a respeito desses “donativos” fraternos a linguagem cultual do AT que exprime a satisfação que Deus encontra na oferenda que lhe é dada: “qual perfume suave, sacrifício aceito e agradável a Deus” (cf. Gn 8,21; Ex 29,18.25; Lv 1,9.13; Nm 28,2 etc.; cf. Sl 40,7; Ez 20,41); espiritualizada pelo NT (cf. 2,17-18.25.30; Ef 5,2).

“O meu Deus proverá” (na tradução latina da Vulgata: “assim meu Deus proveja”; cf. Gn 22,14 grego) “esplendidamente”, lit. “em glória”; alguns o entendem da glória celeste; outros traduzem: “segundo a riqueza da sua glória”.

Evangelho: Lc 16,9-15

Ouvimos a continuação da parábola do “administrador desonesto” (vv. 1-8, evangelho de ontem).

Sentenças soltas foram reunidos nos vv. 9-13 com a finalidade de interpretar a parábola como uma lição sobre diversos aspectos do dinheiro. Elas estão ligadas entre si por um jogo de palavras semíticas referindo-se ao “Dinheiro” (“Mamon”: vv. 9.11.13) e ao que é “digno de confiança” (vv. 10.11.12) e “verdadeiro” (v. 11); todos termos a partir da mesma raiz hebraica aman (daí a palavra “Amém”, e outras palavras hebraicas que significam fé, verdade, fidelidade, algo em que se pode confiar, acreditar). Esses vv. estão unidos pela antítese entre o embuste/engano) e a fidelidade/verdade (vv. 10-12).

Nossa liturgia substitui a introdução “E eu vos digo” (v. 9) pelo costumeiro “Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos” (cf. v. 1). Mas a introdução original é típica de Lc e indica que ele mesmo poderia ter inserido as sentenças seguintes.

“Usai o dinheiro injusto para fazer amigos, pois, quando acabar, eles vos receberão nas moradas eternas (v. 9).

“Usai o dinheiro”, o vosso, evidentemente. O “dinheiro” em grego se diz Mamon, deus da fortuna. O termo Mammon (como nos vv. 11 e 13) é uma palavra aramaica que não aparece ainda no Bíblia Hebraica (só na tradução de Eclo 31,8), sim na literatura rabínica entre AT e NT. Com vem da raiz hebraica amen, o substantivo pode ter provindo primitivamente da ideia de um depósito “confiado”: ele designa aqui o Dinheiro, personificado como uma potência que escraviza o mundo.

A expressão “o dinheiro injusto” (lit. o Mamon da iniquidade, cf. Eclo 5,8 “riquezas injustas, enganadoras”) qualifica todo patrimônio como injusto, também o adquirido honestamente? O dinheiro é chamado “da iniquidade” não só porque aquele que o possui o adquiriu mal, mas ainda, de maneira mais geral, porque na origem de muitas fortunas há alguma desonestidade ou exploração violenta. Bill Gates, o fundador da Microsoft e homem mais rico na atualidade, afirma que a metade dos bilionários ganhou sua fortuna com trabalho (sempre honesto?), não como herança.

Ou Lc quer alertar apenas da ilusão do apego ilusório, “quando acabar” (alguns manuscritos trazem: uma vez que tiverdes desaparecido). Ao final, Lc dá ainda um significado positivo do dinheiro motivando para esmolas e partilha (12,33; At 4,32-37).

“A esmola livra da morte e expia o pecado; os que dão esmolas se saciarão de vida” (Tb 12,9). Bill Gates admite que o capitalismo produz desigualdade, mas discerne três grupos de ricos, uns que investem sua fortuna (criando empregos), outros que apoiam projetos humanitários (ele mesmo na luta contra aids) e outros que só gastam com aviões de jato, iates e demais consumo de luxo etc. Só estes últimos deveriam ser tributados mais severamente, segundo ele.

“Vos receberão”; o sujeito impreciso alude aos “amigos” (v. 9) ou cúmplices no v. 4, mas pode-se também entender este plural como um termo impessoal que designa Deus, evitando mencioná-lo (cf. 6,38; 12,20; 16,22). Combina melhor com a hora da morte do que com o juízo final, mas a perspectiva é escatológica (cf. Sf 1,18: “Nem sua prata nem seu ouro poderão salvá-los no dia da cólera do Senhor”).

“Nas moradas eternas”, lit. nas tendas eternas. Esta expressão deve inspirar-se no repertório de imagens da festa das Tendas (ou tabernáculos, cf. Lv 23,42s), que se considerava, então, uma prefiguração da era da salvação (Zc 14,16-21; cf. Mc 9,5; Mc 15,16; Ap 7,15; 21,3). Aqui talvez seja um contraste às “casas” dos cúmplices do administrador (v. 4: “me receberão nas suas casas”; cf. o contraste em 2Cor 5,1). Todo o v. 9 está construído segundo o modelo da parábola no v. 4. Ele é um convite a “acumular tesouros no céu” (cf. 12,16-21; 12,33; 18,22) por meio da “esmola” (tema caro a Lc, próprio em 11,41; 12,33; 16,9; At 9,36; 10,2.4.31; 11,29; 24,17 e em paralelo com Mc e Mt, em 6,30; 18,22; 21,1-4).

Quem é fiel nas pequenas coisas também é fiel nas grandes, e quem é injusto nas pequenas também é injusto nas grandes. Por isso, se vós não sois fiéis no uso do dinheiro injusto, quem vos confiará o verdadeiro bem? (vv. 10-11).

Seguem-se algumas sentenças aparentadas com o tema (cf. as parábolas parecidas das minas em Lc 19,17-26 e dos talentos em Mt 25,14-30). “O que se requer do administrador é que seja fiel” (1Cor 4,2). O primeiro aforismo é geral: o “pouco” (pequenas coisas) e o “muito” (grandes) admitem muitas identificações. No contexto presente, o pouco são os bens deste mundo, o muito são os bens do céu ou do reino de Deus, o “verdadeiro bem” (cf. 11,13: o Espirito Santo; cf. a palavra da verdade em 2Tm 2,15; Tg 1,18). A quem é infiel na administração dos bens da Igreja, muito menos pode se confiar a verdade cristã (12,42; 1Pd 4,10).

“Fiel” ou: digno de confiança. “Injusto” ou: deshonesto (v. 8)

E se não sois fiéis no que é dos outros, quem vos dará aquilo que é vosso? (v. 12).

Mais difícil é a segunda sentença. “No que é dos outros”, quer dizer, de um bem alheio, exterior ao homem: a riqueza que fica fora e passa. “Aquilo que é vosso” (variação de texto: “nosso”), são os próprios bens que Deus entrega ao fiel, os bens espirituais que podem pertencer ao homem. Trata-se do bem do Reino (e provavelmente, na variante, do bem da Igreja). Os bens de dentro orientam e regulam o uso é aplicado do primeiro. Nos vv. 10-12, o dinheiro é, portanto, o teste de fidelidade dos discípulos.

Ninguém pode servir a dois senhores. Porque ou odiará um e amará o outro, ou se apegará a um e desprezará o outro. Vós não podeis servir a Deus e ao dinheiro” (vv. 13).

Esta sentença é da fonte Q (coleção de palavras que Lc tem em comum com Mt, cf. Mt 6,24). A Tradução Ecumênica das Bíblia (p. 2013) comenta: Aqui, “servir” tem o sentido cultual, corrente na Bíblia. Em face de Deus, o Dinheiro é um falso deus. Segundo este v. o dinheiro é, portanto, um perigo muito mais grave do que nos vv. precedentes: pode-se fazer dele um ídolo.

A terceira sentença é aplicação do primeiro mandamento: o Deus verdadeiro não admite rivais. A Bíblia do Peregrino (p. 2510) comenta: “Mamon”, deus das riquezas, quer ser servido como rival ou competidor de Deus (cf. Is 65,11). O dinheiro é para ser administrado como meio de fazer o bem, não como sujeição a ele (Mt 6,24). “Quem ama o dinheiro será por ele extraviado… Feliz o homem que se conserva íntegro e não se perverte com a riqueza” (Eclo 31,5.8).

Os fariseus, que eram amigos do dinheiro, ouviam tudo isso e riam de Jesus (v. 14). 

Os fariseus, que já criticaram Jesus em 15,2, reaparecem. Em lugar de objeção ou comentário, como é seu costume outras vezes, Lucas faz intervir a zombaria dos fariseus, desta vez como tipos de amor ao dinheiro, e por isso identificáveis com muitos outros. Segundo eles, a riqueza é benção de Deus, prêmio pela observância. Da mesma maneira se prega a “teologia da prosperidade” em muitas Igrejas fundamentalistas da atualidade. Omite-se nesta teologia a crítica profética e a valorização de Jesus pelas coisas pequenas e pessoas humildes (cf. Lc 6,20 etc.).

Os vv. 14-18 têm um objetivo comum: procurar definir a posição de Jesus em face do judaísmo e da Lei e preparar também a conclusão da parábola seguinte (v. 31). Os fariseus aparecem aqui como representantes do pensamento judaico. Jesus dirigirá uma censura semelhante aos escribas em 20,47. Seria injusto aplicá-la a todos os fariseus. Os vv. 14-15 parecem ser uma transição entre os vv. 9-13, sobre o dinheiro, e as sentenças que se lhe seguem (vv. 16-18, omitidos pela nossa liturgia).

Então, Jesus lhes disse: ”Vós gostais de parecer justos diante dos homens, mas Deus conhece vossos corações. Com efeito, o que é importante para os homens, é detestável para Deus” (v. 15).

Além do amor ao dinheiro, outra forma de cobiça: acumular obras de observâncias pensando que com elas se adquirem direitos sobre Deus, ou direito à recompensa de Deus e à estima dos homens, “parecer justos diante dos homens (cf. 10,29; 18,9-14; 20,20; Mt 6,1-6.16-18). É a altivez que Deus detesta: “O Senhor detesta o arrogante” (Pr 16,5; Is 2,9-18; 5,14-16; Lc 1,51s; Mt 18,1-4) e “conhece os corações”, tema bíblico (1Sm 16,7; 1Cr 28,9; Pr 15,11; 16,5; 24,12) empregado por Lc em At 1,24; 15,8.

O site da CNBB comenta: Devemos usar do dinheiro da injustiça para conquistar os bens eternos. De fato, o dinheiro é sempre uma realidade injusta, independentemente da forma como foi conquistado, porque vai sempre significar separação, apossamento, divisões e condições de vida diferentes, gerando oportunidades diferentes e privilégios, além de uma concorrência sempre injusta com os nossos irmãos e irmãs. Por isso, Jesus diz que ninguém pode servir a Deus e ao dinheiro. Usar do dinheiro da injustiça para conquistar os bens eternos significa usar de tudo o que o dinheiro nos concede, tanto em termos de bens materiais como pessoais, como por exemplo a formação profissional, para a construção do Reino e a promoção da dignidade de todos.  

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