8 de Outubro de 2020, Quinta-feira: Portanto, eu vos digo: pedi e recebereis; procurai e encontrareis; batei e vos será aberto.

27ª Semana do Tempo Comum 

Leitura: Gl 3,1-5

Depois da parte histórica na qual Paulo se referiu à sua vocação (revelação) e sua censura de Pedro no conflito de Antioquia, Paulo prova sua tese – a salvação pela fé em Cristo e não pelas obras da Lei (cf. 2,16-21) – com argumentos da Escritura (3,6-4,31), que servem para rebater as pretensões dos “judaizantes” que se infiltraram na Galácia. Para Paulo, o batismo (sinal da fé em Jesus) e o Espírito substituem a circuncisão e a Lei mosaica (cf. 4,4-6; 2Cor 3; At 15).

Ó gálatas insensatos, quem é que vos fascinou? Diante de vossos olhos, não foi acaso representado, como que ao vivo, Jesus Cristo crucificado? (v. 1).

Nossa leitura de hoje serve de introdução ao debate, estranhamente agressiva e apelando à experiência dos gálatas, que são pagãos convertidos e não conheciam a religião judaica. “Gálatas insensatos” poderia traduzir-se como estúpidos, sem juízo ou idiotas. As perguntas em seguida comprovam essa falta de juízo. Se antes não cumpriam a Lei, por não seguirem o judaísmo, por que teriam de cumprir agora? A atitude é comparada a uma sedução de feitiçaria.

Paulo acaba de evocar a cruz do Cristo (cf. 5,11) e a atitude dos que a tornam inútil pretendendo justificar-se pela prática da lei, pretendendo excluir da salvação os que não praticam a lei. O apóstolo vai mostrar que tal atitude é insustentável; ela o é do ponto de vista dos gálatas que deveriam ter sido esclarecidos pela própria experiência (3,1-5). Aceitaram a mensagem da cruz (insensatez para os pagãos, 1Cor 1,23) e receberam o Espírito e os carismas que o manifestavam (vv. 2.5). A doutrina da redenção pela morte e ressurreição de Cristo constitui a base da catequese paulina (cf. 1,1-4; 6,14; 1Cor 1,17-25; 2,2; 15,1-4; 1Ts 1,9-10; At 13,26-39).

Só isto quero saber de vós: Recebestes o Espírito pela prática da Lei ou pela fé através da pregação? (v. 2).

 “Através da pregação”, lit. “em razão da escuta da fé”. A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2256) comenta: Pode-se equiparar esta expressão a Rm 10,16, que cita Is 53,1. Ela evoca o acontecimento da salvação, que é o conteúdo da mensagem a ser crida, e significa a atitude de fé, que é o acolhimento pelo homem da salvação, obra de Deus por meio do Cristo. Nos vv. 1-5, Paulo mostra aos gálatas que é graças a essa atitude de fé diante do acontecimento da salvação, diante do Cristo crucificado exposto a seus olhos por Paulo (v. 1), que eles se abriram ao dom do Espírito (v. 2), e que o poder do Espírito continua a exercer-se neles (v. 5); portanto é uma loucura (vv. 1 e 3) não compreender o sentido dessas experiências; o que foi o começo da sua salvação fica sendo a fonte da sua perfeição. Como podem eles pretender atingir esta perfeição pelas obras? Tal atitude é a do homem carnal (v. 3).

Sois assim tão insensatos? A ponto de, depois de terdes começado pelo espírito, quererdes terminar pela carne? (v. 3).

A “insensatez” consiste em descer da esfera do Espírito, dom divino, à do instinto ou carne. Aqui parece abranger também o instinto de conservação egoísta, traduzido em apegar-se à segurança por meio de obras, observâncias e ritos corporais como a circuncisão. Se retornarem a uma religiosidade de obras, podem perder o Espírito e ficar na invalidade mortal da “carne”, da condição humana não vitalizada pelo Espírito de Deus.

“Terminar pela carne” (o verbo grego comporta a nuança de perfeição-acabamento) é uma alusão à circuncisão que os pregadores judaizantes enalteciam. Com a palavra “carne” Paulo designa, com muitas vezes no AT, a pessoa humana, cumulada de bens por seu Criador, mas sempre caracterizada como frágil e mortal (Is 40,6; Rm 1,3; 9,5). Nenhuma carne, isto é, nenhum ser humano pode ser justificado pela prática das obras legais (Gl 2,16; Rm 3,20). A carne designa também o corpo sofredor de Cristo e do apóstolo (Gl 4,13s; Fl 1,22-24; 2Cor 12,7; Cl 1,22-24). A carne na qual o homem não pode confiar, é também o homem religioso que se orgulha das suas mais altas disciplinas; ao fariseu que era, Paulo opõe os que, a seu exemplo, põem sua confiança não na carne, isto é em seu bom êxito religioso, mas em Jesus Cristo (Fl 3,3-7). A carne é fraca, dominada e desqualificada pelo pecado e a morte (Rm 7), mas pelo Espírito a carne é libertada (Rm 8). A condenação do pecado (não da carne) na carne do Crucificado (Rm 8,3) e a ressurreição de Jesus em seu corpo (Rm 8,11) inauguraram uma nova era em que os frutos da carne devem ceder lugar aos frutos do Espírito (Gl 5,31-25).

“Espírito” ou “espírito” (cf. vv. 2.3.5)? Este termo é empregado em quatro sentidos principais nas cartas paulinas: o espírito de Deus ou Espírito Santo (aqui e na maioria das vezes em Paulo), o espírito do homem (uma quinzena de vezes nas cartas paulinas), o espírito do mundo, ou do mal, sob diversas formas (Rm 11,8; 1Cor 2,12; Ef 2,2; 2Tm 1,7), o sopro destruidor do Senhor (2Ts 2,8 citando Is 11,4). Às vezes é difícil discernir se tais textos pertencem à primeira ou à segunda categoria. O embaraço dos tradutores se manifesta no uso desordenado que fazem da maiúscula ou da minúscula na palavra espírito/Espírito. Na carta aos Romanos, Paulo apresenta os mesmos temas de Gl, mas com mais reflexão e sofisticação (a respeito do Espírito cf. Rm 1,9; 8,4.11.14-16.23; 14,17).

Foi acaso em vão que sofrestes tanto? Se é que foi mesmo em vão! Aquele que vos dá generosamente o Espírito e realiza milagres entre vós, faz isso porque praticais a Lei ou porque crestes, através da pregação? (vv. 4-5).

“Foi acaso em vão que sofrestes tanto?” ou “Foi em vão que experimentastes tão grandes coisas?” Essas experiências sãos as da ação do Espírito na vida da comunidade (cf. 1Cor 12,4-11). Decair da graça é pior, no juízo de Deus, do que não tê-la recebido. “Se é que foi mesmo em vão” traduz-se também: “se todavia é em vão”, fórmula que exprimiria a mesma confiança que 5,10.

Tampouco no Antigo Testamento, o dom do “espírito” depende de obras ou méritos precedentes, antes pelo contrário: pede-o um orante numa oração penitencial (Sl 51,12-14), promete-o um profeta, assegurando “não o faço por vós, mas por meu santo nome” (Ez 36,22-28). Assim, mesmo do ponto de vista da lei, os judaizantes deveriam compreender que a salvação só depende da fé no Cristo e é oferecida a todos os que crêem (3,6-4,7). Com efeito, o Cristo crucificado, cumprindo a promessa de benção feita a Abraão (3,8.14.18), une judeus e pagãos (3,26-29), põe fim à maldição que a lei atraía sobre os pecadores (3,10.13.22; 4,5), e dá o Espírito que liberta o homem do jugo dos poderes deste mundo, fazendo-o filho de Deus (4,3-9).

Evangelho: Lc 11,5-13

O contexto desta parábola (vv. 5-8) e a aplicação, que Lc lhe acrescenta nos vv. 9-13, indicam que se trata de um convite à oração. No evangelho de Lc, Jesus está subindo para Jerusalém e aproveita para instruir os seus discípulos também sobre a oração (no evangelho de ontem sobre a do Pai Nosso). Hoje ouvimos do amigo inoportuno e o ensinamento a respeito do pai que sabe dar boas coisas para os seus filhos. As duas imagens, do amigo e do pai, ilustram na oração o caráter de relação pessoal.

Se um de vós tiver um amigo e for procurá-lo à meia-noite e lhe disser: “Amigo, empresta-me três pães, porque um amigo meu chegou de viagem e nada tenho para lhe oferecer” e se o outro responder lá de dentro: “Não me incomoda! Já tranquei a porta, e meus filhos e eu já estamos deitados; não me posso levantar para te dar os pães”; eu vos declaro: mesmo que o outro não se levante para dá-los porque é seu amigo, vai levantar-se ao menos por causa da impertinência dele e lhe dará quanto for necessário” (vv. 5-8).

“Se um de vós tiver um amigo”, lit. “Qual dentre vós terá uma amigo…”. Os inícios interrogativos são frequentes na parábola de Lc (14,28-31; 15,4,8; 17,7; cf. 11,11; 12,25-26; 14,5). Este método corresponde a pedagogia de Jesus (cf. 10,26; 24,17 etc.).

A Bíblia do Peregrino (p. 2494) comenta: A primeira parábola pode desconcertar o leitor: Um Deus que atende aos pedidos para que o deixe em paz? Jesus conhece o Pai (11,22) e pode permitir-se esse ato de condescendência, ou seja, pode humanizar ao máximo a situação. Por contraste, pode se recordar a caçoada que Elias faz dos profetas de Baal que importunaram um Deus surdo (1Rs 18,27). A parábola supõe uma situação de emergência e que o pedinte seja movido por obrigação de hospitalidade. Não é por capricho ou por puro interesse pessoal. Desenvolve-se em regime de amizade, nas condições culturais da época: o pão é assado em cada a cada dia, todos dormem num único cômodo, a porta está trancada com uma barra. Um breve salmo repete quatro vezes no pedido “até quando?” (Sl 13).

A parábola nos vv. 5-8 apresenta vários traços comuns com a de 18,2-5 (o juiz injusto e a viúva), a qual Lc dá um sentido análogo (18,1). A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 1999) comenta: É provável que na origem essas duas parábolas formassem um par (como 5,36-38; 13,18-21; 14,28-32; 15,4-10; cf. 13,1-5)… O amigo não cede por amizade, mas para ter paz, como o juiz sem justiça de 18,4-5. Ambos fazem sobressair a atitude maior de Deus, que concede porque é justo e Pai.

Portanto, eu vos digo: pedi e recebereis; procurai e encontrareis; batei e vos será aberto. Pois quem pede, recebe; quem procura, encontra; e, para quem bate, se abrirá (vv. 9-10).

“Portanto, eu vos digo”, esta fórmula de Lc (cf. 16,9) serve aqui para acrescentar as palavras seguintes com as quais faz a aplicação da parábola. “Recebereis”, lit. “ser-vos-á dado”, a forma passiva é um modo discreto de indicar a ação de Deus sem mencioná-lo (passivo divino); ela é empregada do mesmo modo no terceiro verbo da frase.

A Bíblia do Peregrino (p. 2494) comenta: Em forma de aforismo recolhe o ensinamento. Isto é o contrário de uma resignação fatalista aos acontecimentos, como se fossem a vontade de Deus. A iniciativa de Deus, em imperativos, quer provocar a iniciativa dos seres humanos: “estarão ainda falando e eu os terei escutado” (Is 55,6; 65,24). Quem pede, confessa-se necessitado; quem insiste, não procura outro remédio, bate à porta de quem sabe que irá responder.

Será que algum de vós que é pai, se o filho pedir um peixe, lhe dará uma cobra? Ou ainda, se pedir um ovo, lhe dará um escorpião? Ora, se vós que sois maus, sabeis dar coisas boas aos vossos filhos, quanto mais o Pai do Céu dará o Espírito Santo aos que o pedirem! (vv. 11-13).

A imagem do pai é mais expressiva. Jesus, o Filho “quer revelar o Pai” e nos revela também o Espírito Santo (10,22). Os homens, mesmo os pais, são “maus” (egoístas); contudo, o amor paterno se sobrepõe. Deus é o doador (Sl 136,25; 144,10; 146,7), seu dom máximo é o Espírito Santo (Jo 14,17; At 2,4.33; 5,32; Ef 1,17).

“Se vós que sois maus”; este adjetivo, “maus”, é exigido literariamente pela oposição entre as coisas boas que os pais da terra dão e a bondade do pai do Céu. Não é primordialmente um julgamento moral sobre a corrupção do homem.

Um grande número de testemunhos literários introduz aqui (seguindo Mt 7,9): “um pão, será que ele lhe apresentará uma pedra, ou…”. A antítese entre o ovo e o escorpião é própria de Lc e substitui, em Lc a de Mt 7,9, entre o pão e a pedra. É possível que o texto de Lc se inspire na menção das serpentes e escorpiões em 10,9. Isto dá a sua antítese uma força maior do que em Mt. O paralelo Mt 7,11 fala apenas das “coisas boas”; Lc introduz o “Espírito Santo”, que é para ele o “dom” por excelência (At 3,38 etc.), tantas vezes concedido na história relatada em seu segundo livro, os Atos dos Apóstolos.

Santo Agostinho faz o seguinte comentário ao trecho de hoje: Jesus “nos estimula ardentemente a pedir, buscar, chamar até conseguir o que pedimos… Deus está mais disposto a dar do que nós a receber. Ele ganha mais fazendo-nos misericórdia que nós de sermos livres. Se ele não nos liberta, nós ficaremos miseráveis; se nos exorta, o faz para nosso bem”.

O site da CNBB comenta (citando Tg 4,3): A oração é uma busca constante de viver na presença de Deus e procurar estar em diálogo com ele para que ele nos ajude em nossas necessidades, mas devemos nos lembrar das palavras de São Tiago: “Pedis sim, mas pedis mal, pois não sabeis o que pedir.” Muitas vezes pedimos, e pedimos muito, mas não pedimos o que deveríamos, nossos pedidos são mesquinhos, materialistas e visam simplesmente a satisfação de interesses pessoais e imediatos, não sabemos pedir os verdadeiros valores, que são eternos, não pedimos a salvação, o perdão dos pecados nossos e dos outros, não pedimos pela ação evangelizadora da Igreja, pela superação das injustiças que causam guerras e tantos sofrimentos, mas principalmente, não pedimos a ação do Espírito Santo em nossas vidas.

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