8 de Setembro 2019, Domingo – Natividade de Nossa Senhora: Tudo isso aconteceu para se cumprir o que o Senhor havia dito pelo profeta: “Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho. Ele será chamado pelo nome de Emanuel, que significa: Deus está conosco.” (vv. 22-23).

23º Domingo – Natividade de Nossa Senhora

Hoje é a festa da Natividade de Nossa Senhora. A Bíblia não nos diz nada sobre o nascimento de Maria, só de Jesus; como então podemos celebrar o nascimento de Maria hoje?

Não se sabe o porquê desta data (08/09) foi escolhida, poderia ser a data da dedicação de uma igreja edificada no séc. V em Jerusalém no lugar que a tradição sustentava ter existido a casa de Joaquim e Ana. Ou o nascimento de Maria, aurora do tempo da salvação, é celebrada justamente no mês que abre o ano litúrgico no oriente. Eu suponho ainda que tem a ver com o signo astral da “virgem” no mês de setembro naquela época. Só hoje não é mais, porque em dois milênios de anos, os signos “migraram” (na verdade, é o eixo da terra que se desloca ao passar dos séculos). A astronomia mostra que hoje em 08/09, o sol não está mais no signo da virgem, mas no do leão (www.calsky.com).

Não temos nenhuma notícia na Bíblia a respeito dos dias nos quais Jesus ou Maria nasceram. Apenas Lc 2,8 diz que era “noite” quando Jesus nasceu, portanto, a Igreja definiu como data de Natal a noite mais longa do inverno setentrional (na época era 24/25 de dezembro, hoje é 21/12), substituindo assim a festa pagã do deus sol invictus (o sol não vencido pelas trevas) em Roma pelo nascimento de Cristo, “luz do mundo” (Jo 8,12). Como a data de Natal é apenas simbólica (não significa uma consagração da astrologia), pode-se entender a data da festa da Natividade de Nossa Senhora como homenagem à sua virgindade. Exatamente nove meses antes do nascimento (08/09) celebramos a Imaculada Conceição da Virgem Maria em 08 de dezembro, festa muito mais conhecida e celebrada na devoção popular do que a festa de hoje, devido também à ênfase dada pelo dogma de 1854 (confirmada pela aparição em Lourdes em 1858), distintivo católico contra os protestantes que não aceitam a Imaculada Conceição (mas poderiam aceitar a festa de hoje, como a maioria das igrejas celebram a festa de Natal).

O que sabemos do nascimento de Maria sabemos através de escritos apócrifos, ou seja, escritos antigos que não foram mais acolhidos oficialmente no cânone (régua, norma) da Bíblia, geralmente devido a diferenças de doutrina. Foram escolhidos somente os 27 escritos do Novo Testamento (NT), considerados autênticos na doutrina dos apóstolos e inspirados pelo Espírito Santo. O apócrifo “Proto-evangelho de Tiago” não tem uma doutrina diferente, mas uma narrativa exagerada, como um conto de fadas, por ex.: quando Jesus nasceu, os pássaros pararam no meio do voo e toda natureza ficou parada por um momento (cap. 18); depois a parteira contou a outra mulher sobre a virgindade de Maria, mas esta duvidou (como Tomé em Jo 20) e colocou o dedo em Maria. Sua mão ficou atingida pelo fogo, mas, à ordem do anjo do Senhor, ela tomou o menino no braço e ficou curada (caps. 19-20).

É chamado “Proto-Evangelho”, porque apresenta a história “antes” dos Evangelhos, ou seja, antes do anúncio da Boa Nova por Jesus adulto: começa com a história do nascimento de Maria e termina com o assassinato de Zacarias (cf. Lc 11,51), o pai de João Batista, pelos soldados de Herodes que estavam procurando o messias recém-nascido. Seu cargo de sacerdote foi substituído pelo velho Simeão (Lc 2,25). Convém lembrar que o nome “Proto-Evangelho” é usado também no AT para as palavras de Deus contra a serpente no paraíso, primeiro anúncio da salvação após o pecado (Gn 3,15; cf. 1ª leitura na festa da Imaculada Conceição em 08/12). Apesar dos exageros no evangelho apócrifo de Tiago, deve-se a ele o conhecimento dos nomes dos pais de Maria (“Joaquim e Ana”; festa: dia 26/07), a “apresentação” da pequena Maria no templo (festa em 22/11), e o detalhe do nascimento de Jesus numa “gruta”, além de valiosas realizações artísticas na pintura (cf. imagens de Natal) inspiradas neste livro.

O autor é desconhecido, provavelmente um judeu-cristão em Alexandria no final do século II. Por ficção literária e certamente para valorizar o conteúdo, adotou o nome de Tiago. Como havia dois apóstolos do mesmo nome, a atribuição é feita a Tiago menor, (filho ou irmão) de Alfeu (Mc 3,18p), que às vezes é identificado com Tiago, “irmão” de Jesus (Mc 6,3p), personagem tal importante da Igreja de Jerusalém (cf. Gl 1,19; 2,9.12; At 12,17; 15,13-21; 21,18-25). O livro foi escrito em grego, aceito pelas Igrejas ortodoxas e orientais, e foi redescoberto no ocidente somente no século XVI. Um dos motivos da rejeição deve ter sido o fato de apresentar José como viúvo, de idade avançada e pai de diversos filhos. Os “irmãos de Jesus”, mencionados nos evangelhos (Mc 6,3p; Jo 7,2-10), seriam os filhos do casamento anterior de Jose. Esta opinião foi bem recebida na antiguidade (por ex. por Orígenes e Clemente de Alexandria, Ambrósio e Agostinho), mas no ocidente foi superada pela explicação de São Jerônimo: a palavra “irmãos”, de acordo com seu correspondente hebraico, abrange não só os irmãos de sangue, filhos dos mesmos pais, como também os parentes ligados por laços mais ou menos estritos da consanguinidade ou afinidade. Assim também a Tradição Ecumênica da Bíblia afirma no rodapé de Mt 12,46: Na Bíblia, como ainda hoje no Oriente, a palavra “irmãos” pode designar tanto os filhos da mesma mãe, como os parentes próximos (cf. Gn 13,8; 14,16; 29,15; Lv 10,4; 1Cr 23,22).

A respeito do nascimento de Maria, o Proto-evangelho nos apresenta Joaquim como homem rico, generoso e piedoso, mas triste por não ter descendência, e Ana, sua mulher, chorando sua esterilidade. O episódio tem semelhança com Ana, mãe de Samuel: a humilhação por causa da esterilidade, a súplica ao Senhor, a promessa da consagração, o atendimento e o cântico de ação de graças, considerado uma das fontes do Magnificat (1Sm 1-2; cf. Lc 1-2).

Joaquim fez um retiro de quarenta dias no deserto (1,4). Um anjo do Senhor apareceu a Ana dizendo: “Ana, Ana, … conceberás e darás à luz, e em toda a terra se falará da tua descendência“ (4,1)… Completaram-se para Ana os meses de gestação. No nono mês deu à luz. Ela perguntou à parteira: “A quem dei à luz?” – A parteira respondeu: “Uma filha!” – Ana exclamou: “Hoje minha alma foi enaltecida.” E deitou a criança. Quando se completaram os dias prescritos pela lei, Ana fez as purificações pelo parto, deu o peito a criança e pôs lhe o nome de Maria (5,2).

Embora seja o nome mais célebre e difundido dos nomes femininos, não se sabe bem sua origem nem seu significado. Aparece pela primeira vez em Ex 15,21 uma Miriam (palavra hebraica traduzida para grego, latim e português como “Maria”), sendo irmã de Moisés e Aarão (cf. Ex 2; Nm 12), ali denominada profetisa. Por isso, a origem do nome pode ser egípcia (como Moisés; cf. nomes de faraós Tut-Mosés, Ra-Msés), pois Miriam, assim como seus irmãos, nasceu no Egito (Ex 2). Seria composto de Mir ou Meri (amado, amada) mais a terminação hebraica ya, yam, abreviatura de Javé (Yhwh). Significaria, portanto, “amada de Javé, amada do Senhor”. A Igreja celebra o “santíssimo nome de Maria” numa memória facultativa no dia 12 de setembro.

 

Leitura: Mq 5,1-4a

A leitura de hoje salienta a origem humilde do messias (Cristo) através de uma profecia de Miqueias, conterrâneo e contemporâneo de Isaias (cf. Is 7,14; 9,1-6; 11,1-9). O profeta (e depois Mt 2) opõe o orgulho da capital fortificada (Jerusalém) à condição humilde de Belém-Éfrata, de onde virá a salvação a partir da origem humilde da dinastia de Davi.

Depois de destruir o reino do norte (Israel) em 722 a.C., o exército assírio invade o reino do sul (Judá) e chega duas vezes às portas de Jerusalém (em 711 e 701 a.C.). Os falsos profetas anunciavam a Sião (a colina do templo) triunfo e poderio, mas Mq critica a injustiça social e a corrupção em Jerusalém que levarão a sua ruína: “Por vossa causa, Sião será um campo arado, Jerusalém será uma ruína, o monte do templo, um morro de matas” (3,12) e no versículo que antecede nossa leitura: “Faze agora, incisões, filha bandoleira, colocaram uma cerca (sítio) contra nós. Com a vara batem no juiz (rei, governante?) de Israel.”

Como os outros escritos proféticos, o texto de Mq também recebeu acréscimos no pós-exílio, alternando ameaças e promessas, entre as quais está também nossa leitura de hoje.

(Assim diz o Senhor:) Tu, Belém de Éfrata, pequenina entre os mil povoados de Judá, de ti há de sair aquele que dominará em Israel; sua origem vem de tempos remotos, desde os dias da eternidade (v. 1).

A humilhação de Jerusalém é definitiva. Mas Deus não deixa acabar tudo no caos. Só que a dinastia tem de resgatar humildes começos: não Sião, “mas tu Belém” (nossa liturgia omitiu “mas”), chamada também “Éfrata” (1Sm 17,12; Sl 136,6). Versão grega: “Belém, casa de Efrata”; cf. Mt 2,6: “Belém, terra de Judá. Tu não és de forma alguma a menor das capitais-de-distrito de Judá”.

O profeta parece dar o sentido etimológico de Éfrata, “fecunda”, em relação com o nascimento do Messias. Éfrata designou inicialmente um clã (da tribo de Benjamim) aliado a Caleb da tribo de Judá (Nm 14,6s.10s; 1Cr 2,19.24.50) e instalado na região de Belém (1Sm 17,12; Rt 1,2). O nome passou em seguida à cidade (Gn 35,19; 48,7; Js 15,59; Rt 4,11).

Como Belém é a cidade de origem de Davi (cf. 1Sm 16,1-13; 17,12; 20,6; Rt 4,11.17.18-22), o novo dirigente é descendente desse grande rei. Os evangelistas Mt e Lc reconhecerão em Belém (de Éfrata) a designação do lugar do nascimento do Messias (cf. Jo 7,41s).

Quando Mateus aplica este versículo ao nascimento do messias (Cristo), muda ou lê “não és a menor” (Mt 2,6), sem contradizer o que implica o original (grego: “pequena”, hebraico: “a menor”).

“Sua origem vem de tempos remotos, desde os dias da eternidade (pré-história)”, Mq pode retomar à genealogia no final do livro de Rute que termina com Davi (Rt 4,18-22), cujo reino foi visto por todos os judeus como conclusão de uma longa história de salvação. Mas a tradição cristã, prolongando a sugestão de Mateus (Mt 2,6 cita apenas Mq 5,1), leu neste versículo a “origem eterna” do messias (sua pré-existência em Jo 1,1.14; Hb 1,2s; Fl 2,6; Cl 1,15-17).

As tradições judaica e cristã sempre viram neste oráculo uma profecia messiânica a anunciar a vinda de um personagem futuro, encarregado de governar Israel. Suas origens são as da família real de Judá. Pois, nascido em Belém, o pastor do rebanho messiânico aparece como novo Davi (cf. 1Sm 16; 2Sm 5,2; 7,8). Mq e Is anunciam esperança através de um nascimento de um messias da dinastia de Davi, mas não o chamam de “rei” nem “messias” (=ungido; só o segundo e terceiro Isaías o chamam assim, cf. Is 42,1; 61,1): “de ti há de sair para mim aquele que dominará em Israel” (nossa liturgia omite: para mim); provavelmente é o Senhor quem fala aqui; sua causa identifica-se com a de Israel. Mt 2,6 esclarece: “de ti sairá o chefe, que apascentará Israel, meu povo”, mesclando assim Mq 5,1 (cf. v. 3) com 2Sm 5,2.

Na Vida Pastoral (2015), Maria de Lourdes Corrêa Lima comenta: O novo chefe não é chamado de “rei”, mas de “dominador”. Com isso, embora filho de Davi, distancia-se dos reis daquela dinastia, tantas vezes infiéis ao Senhor. A relação desse chefe com Deus aparece na expressão “para mim”, que muitas vezes indica submissão. Ele obedecerá ao Senhor, realizará seu desígnio. O novo chefe governará em nome de Deus, com seu poder; será seu representante.

Deus deixará seu povo ao abandono, até ao tempo em que uma mãe der à luz; e o resto de seus irmãos se voltará para os filhos de Israel (v. 2).

A restauração tem um momento previsto, que o profeta só pode anunciar num enigma com duas peças que se referem ao crescimento do povo: porque as mulheres voltam a dar à luz, e porque os exilados (“o resto”) voltam a reunir-se com seus irmãos (cf. Is 7,14; 9,5; 10,21s).

Talvez o autor pense no célebre oráculo pronunciado por Isaías uns trinta anos antes de Miqueias: “A jovem (esposa do rei) concebeu e dará à luz um filho que será chamado de Emanuel” (Is 7,14; a versão grega traduz: “virgem”; cf. Mt 1,23). Mas aqui em Mq, “aquela que dá à luz” é qualquer mulher judia, e também a capital personificada como matrona que Deus não deixará “abandonada” para sempre (cf. Is 54). Os que “voltarão” podem ser os israelitas do reino do Norte ou os judeus (do reino do Sul) depois do exílio. “Mãe” e “irmãos” dão a esta profecia um tom familiar.

Na Vida Pastoral (2015), Maria de Lourdes Corrêa Lima comenta: A restauração pertence a um futuro indeterminado, advirá após um tempo de provação, quando o povo eleito ficará entregue às suas próprias forças e decisões (v. 2). A mudança de situação ocorrerá quando uma parturiente der à luz (v. 2). Mq 4,10-11 chama Jerusalém de “parturiente”, que sofre dores de parto ao ir cativa para Babilônia; depois ela retornará. Se a parturiente de 5,2 é a cidade de Jerusalém, então primeiro os judeus serão de lá libertados, para depois terem lugar a promessa do novo chefe davídico e a reunião dos exilados com os judeus que ficaram na terra (ou a reunião do antigo reino do Norte com o reino de Judá). Outra interpretação entende que a parturiente é a mãe do chefe prometido, descendente de Davi. O texto estaria relendo a profecia do Emanuel (cf. Is 7,14) e aplicando-a a um tempo posterior. A tradição cristã viu nas características desse chefe prometido e na missão que lhe é outorgada a figura de Jesus (cf. Mt 2,6; Jo 7,42). Identificou, assim, a parturiente com sua Mãe. É nesse sentido cristológico que o texto tem lugar na liturgia de hoje.

Ele não recuará, apascentará com a força do Senhor e com a majestade do nome do Senhor seu Deus; os homens viverão em paz, pois ele agora estenderá o poder até aos confins da terra, e ele mesmo será a Paz (vv. 3-4a).

Na Vida Pastoral (2015), Maria de Lourdes Corrêa Lima comenta: Seu poder será universal, de acordo com as expectativas para o reinado do filho de Davi (cf. Sl 2,8; 71/72,8). Por intermédio dele, o povo se estabelecerá estavelmente no país, vivendo em segurança e bem-estar. Ele é o instrumento de Deus para trazer a paz, a plena realização, ao povo eleito (cf. Is 9,6; Zc 9,10) (v. 3).

Davi e seu sucessor recebem de Deus o “poder (força) do Senhor” e em seu nome o exercem. O messias e seu governo (pastoreio) trarão paz e prosperidade, incluindo os pobres e oprimidos (cf. Sl 72). Ele representa a paz, “ele mesmo será a paz” (cf. Is 9,1-6; 11). Paz (shalom) na Bíblia significa também bem-estar, prosperidade, saúde etc. (cf. Nm 6,27).

Os falsos profetas rejeitam a visão humilde de Miqueias (aplicando o esquema de Is 14,24-27). Na boca dos falsos profetas, exalta o tom otimista e triunfal da sua mensagem da paz para o presente (3,5). Na boca de Miqueias, projeta para um futuro indefinido as promessas davídicas (2Sm 7,9).

Este fragmento (cuja continuação nos vv. 4b-5 é omitida pela nossa liturgia) anuncia uma vitória futura sobre a Assíria. Ele a atribui ao filho de Davi (começo do v. 4, fim do v. 5) e aos chefes de Judá (vv. 4b-5a, elemento primitivo reempregado). Os pastores serão capitães, a vitória será obtida pelas armas e a Assíria será submetida à vassalagem, mesmo que encarne o legendário Nemrod (cf. v. 5). Nemrod era caçador e guerreiro, “o primeiro valente na terra” (Gn 10,8-12). Recorde-se aqui a vitória de Davi sobre Golias, sem espada, apenas com uma pedra e uma funda de pastor.

A Nova Bíblia Pastoral (p. 1143) comenta 4,14-5,5: “Aquele que deve governar Israel” não sairá de Jerusalém, a cidade de Davi, capital e sede da casa real, mas de Belém-Éfrata, o menor entre os clãs de Judá (cf. Gn 35,19: Raquel, grande matriarca, segundo a tradição tribal, foi enterrada no caminho de Éfrata). Ele, como “juiz-pastor” e não como “rei”, defenderá seu povo das nações opressoras, como a Assíria e a Babilônia (= terra de Nemrod). Este é o sonho do resto do povo sofrido que rejeita a monarquia militarista (cf. 4,1-5) e deseja voltar ao tempo dos juízes. Nas memórias antigas da história pré-monárquica, Saul e Davi não são chamados de “rei”, mas de “juiz” (cf. 1Sm 9,16; 10,1; 2Sm 5,2; 6,21). As comunidades judaicas e cristãs compreenderam este oráculo como anúncio da chegada de um novo juiz messias (cf. Mt 2,5-6). 

Evangelho: Mt 1,1-16.18-23 (versão breve: vv. 18-23)

O evangelho de hoje nos apresenta o início do Evangelho de Mateus com a genealogia de Jesus, desde Abraão, incluindo cinco mulheres, três estrangeiras e uma quarta que era casada com um estrangeiro (Urias); a quinta mulher é “Maria, da qual nasceu Jesus, que é chamado o Cristo.” (1,16). A genealogia de Mt, embora sublinhe influências estrangeiras do lado feminino (vv. 3.5.6) limita-se à ascendência israelita de Cristo. Ela tem por objetivo relacioná-lo com os principais depositários das promessas messiânicas, Abraão e Davi, e com os descendentes reais deste último (2Sm 7; Is 7,14). A genealogia de Lc, mais universalista, remonta a Adão, cabeça (início) de toda a humanidade (Lc 3,23-38). Esta diferença explica-se pelo fato de Mt escrever para judeu-cristãos que participavam da expectativa específica de um messias prometido ao seu próprio povo, enquanto Lc escreveu para cristãos vindos de outros povos.

Livro da origem de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abraão (v. 1).

Mateus começa sua história imitando as genealogias dos livros Gênesis (Gn 5; 10; 11; 36) e Crônicas (cf. 1 Cr 1-3). “Gênesis” é palavra grega que significa “origem, geração”. Mt troca o tradicional plural “gerações” (ex. descendência dos filhos de Noé; cf. Gn 10,1) pelo singular (que o grego usa em Gn 2,4 e 5,1), porque vai concentrar-se numa geração especial e culminante, a de Jesus, apresentado com o título de Cristo (Messias; cf. Mc 1,1). A benção genesíaca, que era expansiva, “crescei e multiplicai-vos” (Gn 1,22.28; 8,17; 9,1), aqui se torna linear, em progressão ininterrupta até a plenitude histórica do Messias.

Usando o termo “Gênesis”, Mt sugere que Jesus, iniciando o livro de uma nova gênese, toma o lugar de Adão (cf. Lc 3,23-38; Rm 5,12-21; 1Cor 15,22; Jo 19,5.34; 20,15.22). Contudo, a história aqui relatada não é a da sua descendência, mas da sua ascendência: em Jesus, a história passada encontra seu sentido.

Abraão gerou Isaac; Isaac gerou Jacó; Jacó gerou Judá e seus irmãos. Judá gerou Farés e Zara, cuja mãe era Tamar. Farés gerou Esrom; Esrom gerou Aram; Aram gerou Aminadab; Aminadab gerou Naasson; Naasson Gerou Salmon; Salmon gerou Booz, cuja mãe era Raab. Booz gerou Obed, cuja mãe era Rute. Obed gerou Jessé. Jessé gerou o rei Davi. Davi gerou Salomão, daquela que tinha sido a mulher de Urias (vv. 2-7).

Mt menciona quatro mães (a quinta será Maria em v. 16): Tamar, nora de Judá que o engana e seduz (Gn 38), Raab, a prostituta que escondeu os espiões em Jericó (Js 2), Rute, a estrangeira moabita, e Betsabéia, a adúltera mãe de Salomão (2Sm 11); Tamar, Raab e Rute são mulheres estrangeiras e Betsabeia era casada com Urias que era mercenário estrangeiro (“heteu”, 2Sm 11,3; cf. Dt 7,1), não israelita. Com isso, Mt demonstra que na genealogia do messias já havia presença estrangeira como haverá no novo povo de Deus, na Igreja (lição da universalidade, cf. Mt 2,1-12; 28,19s) e prepara as circunstâncias irregulares em que nascerá Jesus, não gerado por José, mas nascido da virgem Maria (lição da graça).

Salomão gerou Roboão; Roboão gerou Abias; Abias gerou Asa; Asa gerou Josafá; Josafá gerou Jorão; Jorão gerou Ozias; Ozias gerou Joatão; Joatão gerou Acaz; Acaz gerou Ezequias; Ezequias gerou Manassés; Manassés gerou Amon; Amon gerou Josias. Josias gerou Jeconias e seus irmãos, no tempo do exílio na Babilônia.

De Davi a José, as duas listas de Mt e Lc diferem bastante: só têm dois nomes em comum. Essa divergência pode explicar-se, seja pelo fato de Mt ter preferido a sucessão dinástica à descendência natural, seja por admitir-se a equivalência entre a descendência legal (lei do levirato, Dt 25,5) e a descendência natural. Por outro lado, o caráter sistemático da genealogia de Mt é realçado pela distribuição dos antepassados de Cristo em três séries de quatorze (v. 17), ou seja, duas vezes sete nomes (cf. a preferência de Mt pelo número sagrado “sete” vemos nos sete pedidos do Pai nosso em 6,9-13; cf. os cinco pedidos em Lc 11,2-4), o que leva à omissão de três nomes entre Jorão e Ozias e à contagem de Jeconias (vv. 11.12), como dois (esse nome grego pode traduzir dois nomes hebraicos lehoiaqim e Iehoiakin, muito semelhantes entre si).

Depois do exílio na Babilônia, Jeconias gerou Salatiel; Salatiel gerou Zorobabel; Zorobabel gerou Abiud; Abiud gerou Eliaquim; Eliaquim gerou Azor; Azor gerou Sadoc; Sadoc gerou Aquim; Aquim gerou Eliud; Eliud gerou Eleazar; Eleazar gerou Matã; Matã gerou Jacó. Jacó gerou José, o esposo de Maria, da qual nasceu Jesus, que é chamado o Cristo (vv. 8-16).

As duas listas de Mt e Lc terminam com José, que é apenas o pai legal de Jesus: a razão está em que, aos olhos dos antigos, a paternidade legal (por adoção, levirato etc.) bastava para conferir todos os direitos hereditários, aqui os da linhagem davídica. Naturalmente não se está excluindo a possibilidade de Maria também ter pertencido a essa linhagem (cf. o apócrifo “Protoevangelho de Tiago”, 10,1), embora os evangelistas da Bíblia não o afirmem. Não chama Maria a esposa de José, mas sim ao contrário, José “o esposo de Maria” (Gn 4,4 diz “nascido de mulher”). A geração está interrompida. Se José não gerou Jesus, então quem é que o gerou? A narrativa seguinte esclarecerá logo (vv. 18-25).

“É chamado o Cristo” pode se traduzir também: “cujo título é o Messias” (cristo é tradução grega do hebraico messias, em português “ungido”, cf. crisma, o óleo da unção).

A nossa liturgia omite o v. 17 sobre as três vezes quatorze gerações nesta genealogia, quatorze é valor numérico do nome de Davi, ou seja, suas letras DaViD (em hebraico não se escreve vogais, o D final não tem no português do Brasil): 4+6+4=14.

Está claro e explicito o desejo de Mt de estilizar a série, pela divisão em três segmentos e pelo número de dois setenários (14) para cada etapa. Com tal artifício, o nascimento de Jesus fica inserido e enquadrado na história da humanidade, na história de um povo.  Abraão é o pai dos crentes, nele serão abençoados todos os povos (cf. Gn 12,3; Mt 28,19; Rm 4), e Davi o fundador de uma dinastia real; ambos, beneficiários de promessas divinas. Jesus é filho da história humana e da promessa divina, tem suas raízes no povo eleito, mas como ressuscitado está presente no meio de nós, ultrapassando as fronteiras do tempo e do espaço (cf. Mt 28,20).

A origem de Jesus Cristo foi assim: (v. 18a).

Lit.”Ora, de Jesus Cristo, a gênese foi assim”. A palavra grega “gênesis” significa “origem, geração” (cf. 1,1; Gn 2,4; 5,1 etc.). Na genealogia de Jesus, o evangelista Mt começou assim: “Abraão gerou Isaac, Isaac gerou Jacó, Jacó gerou Judá,…”, mas termina assim: “Jacó gerou José, o esposo de Maria, da qual nasceu Jesus, que é chamado Cristo” (v. 18), quer dizer quer José não gerou Jesus, mas é o pai legal. Com uma narrativa, Mt dá agora resposta a questão levantada pela genealogia: eis o modo pelo qual Jesus, embora sendo filho de uma virgem (cf. Lc 1,26-38), foi “filho (descendente) de Davi” (1,1).

Maria, sua mãe, estava prometida em casamento a José, e, antes de viverem juntos, ela ficou grávida pela ação do Espírito Santo (v. 18b).

Antes mesmo de levarem uma vida comum, os jovens judeus (como Maria e José) que se comprometeram em casamento são considerados “esposos”: Só o repúdio legal podia desligá-los do seu vínculo.

José, seu marido, era justo e, não querendo denunciá-la, resolveu abandonar Maria, em segredo (v. 19).

José é apresentado como “justo”, mas em que sentido? É honrado, ou inocente no assunto? A legislação Dt 22,20-29 prevê apedrejamento em caso de adultério (cf. Jo 8,1-11). Para Mt, a “justiça maior” não é abolir, sim cumprir a lei (5,17-20), mas a “lei maior” é o amor a Deus e o amor ao próximo (22,34-40; cf. 7,12). Nenhum texto do AT, porém, pode justificar o caráter secreto deste repúdio “privadamente”; para ser legal, ele deve ser autenticado por um certificado oficial (Dt 24,1).

Enquanto José pensava nisso, eis que o anjo do Senhor apareceu-lhe, em sonho, e lhe disse: “José, Filho de Davi, não tenhas medo de receber Maria como tua esposa, porque ela concebeu pela ação do Espírito Santo. Ela dará à luz um filho, e tu lhe darás o nome de Jesus, pois ele vai salvar o seu povo dos seus pecados” (vv. 20-21).

O “anjo do Senhor” designa a intervenção do próprio Javé Deus (Gn 16,7.13; Ex 3,2; Mt 28,2), não se deve confundi-lo com os outros anjos. A visão em sonhos recorda os sonhos de outro José (Gn 37-50) que salvou seu povo no Egito (cf. Mt 2,13.19). O anjo chama enfaticamente “José, filho de Davi” e repete a afirmação que Maria concebeu “pela ação do Espírito Santo” (duas vezes em vv. 18.20), mas também a José cabe um papel capital a desempenhar: se José impõe o nome de Jesus, é porque age como pai legal (cf. Zacarias em Lc 1,13.62-63) e confere esta criança a filiação davídica.

O nome do menino, Jesus, em aramaico Yeshua (o mesmo que em hebraico Yehoshua = Josué, e parecido com Oseias) anuncia o destino: Jesus significa “Javé (o Senhor) salva”. Mt interpreta “salvar o seu povo dos seus pecados” (v. 21). Como um rei, Jesus salvará seu povo, mas não como Davi através da guerra derramando o sangue dos outros, mas derramando seu próprio sangue “por muitos pela remissão dos pecados” (o acréscimo de Mt em 26,28, nas palavras da última ceia; cf. Is 53,12), doando sua vida na cruz.

Tudo isso aconteceu para se cumprir o que o Senhor havia dito pelo profeta: “Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho. Ele será chamado pelo nome de Emanuel, que significa: Deus está conosco.” (vv. 22-23).

Esta citação de Is 7,14 é a primeira das citações de comprimento das escrituras, mediante os quais Mt interpreta os acontecimentos mais marcantes da vida de Jesus (1,22; 2,6.15.23; 4,14; 8,17; 13,35; 21,4; 27,9).

Em Is 7,14, no texto original, o sinal dado pelo próprio Senhor (na boca do profeta) é o nascimento de um menino de uma mulher jovem. A palavra hebraica ‘Imh significa simplesmente “jovem, moça”, provavelmente a esposa jovem do rei Acaz (736-716 a.C., cf. 2 Rs 16) que conceberá. Esse menino que está para nascer é sinal de que Deus permanece no meio do seu povo (Emanuel = Deus conosco) apesar da situação crítica da cidade de Jerusalém cercada pelos inimigos. Seu nome “Emanuel” significa “Deus está conosco” (v. 14; 8,9s; 41,10). Deus está com seu povo e seus líderes (Dt 20,1; 1Rs 8,57; Gn 26,3; 18,15; 29,32 Ex 3,12; Dt 21,23; Js 1,5; Jr 6,12; 1Sm 16,18; 18,14; 2Sm 7,9; 2Rs 18,7; Jr 1,8). Deus não abandonará, mas dará a vitória a Judá e a dinastia de Davi. O menino herdeiro é Ezequias (2Rs 18-20), que assegura a continuidade da dinastia.

Na tradução grega do AT na cidade de Alexandria, começada no século III a.C. por setenta sábios (LXX), usa-se a palavra grega párthenos, “virgem” em vez de “jovem, moça”; assim passa para a tradição cristã, que aplica a frase à “virgem” Maria (Mt 1,23). Mt vê o nascimento de Jesus, “concebido pelo Espírito Santo e nascido da virgem Maria” (Credo), correspondendo às profecias antigas sobre a origem do messias. É possível que estivesse intenção apologética (defesa) contra boatos que começavam a difundir-se sobre o nascimento de Jesus (p. ex. numa coleção de textos judaicos do Talmud do séc. VI d.C. afirma-se que Jesus teria nascido do adultério de Maria com um soldado romano).

Obs.: O uso da tradição grega (LXX) dos escritos hebraicos do Antigo Testamento por Mt 1,23 demonstra que os próprios evangelistas consideravam esta tradução como Sagrada Escritura. Na época, ainda não havia uma norma (cânone) definindo quais escritos faziam parte da Escritura e quais não. Havia discussão entre fariseus e saduceus (cf. At 23,8). Os saduceus só consideravam os primeiros cinco livros (Pentateuco, ou seja, Lei (Torá) de Moisés) como sagrados. No sínodo de Jâmnia no ano 90 d.C., as autoridades judaicas que restavam depois da guerra judaica eram os rabinos do partido dos fariseus que declararam como Bíblia Sagrada os escritos em hebraico (Bíblia Hebraica), mas isso foi depois de Cristo e alguns anos depois de Mt. Não há motivo, portanto, porque as Igrejas protestantes (“evangélicas”, a partir de Martinho Lutero em 1517) reconheçam apenas a Bíblia Hebraica como legítima, quando os próprios evangelistas usaram também a tradição grega (como se vê claramente em Mt 1,23).  Os protestantes rejeitam sete livrinhos que se encontram também nesta tradução grega (LXX) e sempre faziam parte da Bíblia católica (Tb, Jd, 1-2Mc, Sb, Eclo, Br). Para os protestantes, são livros apócrifos, para as católicos, são deuterocanônicos (entraram no cânone pela segunda via, a Bíblia grega).

Jesus não é apenas mais um filho da história dos homens, é o próprio Filho de Deus, o “Deus (que está) conosco” no início de evangelho de Mt (1,23), no meio, “onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome” (18,20) e no final: “Estarei convosco até o fim dos tempos” (28,20).

O site da CNBB comenta: Jesus se insere na história da humanidade e, ao fazê-lo, também passa a ter uma história. Ele é verdadeiramente homem e assume em tudo a condição humana, menos o pecado. Ao comemorarmos o nascimento da Virgem Maria, estamos comemorando um fato da história do próprio Cristo, pois o seu nascimento está condicionado ao dela, uma vez que ele é seu descendente, já que ela é sua mãe. Com isso, podemos perceber o Senhor da história se inserindo e agindo na própria história da humanidade, para nela realizar o seu plano de amor e salvação.

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