9 de Agosto de 2020, Domingo – 19º Domingo do Tempo Comum: Jesus logo estendeu a mão, segurou Pedro, e lhe disse: “Homem fraco na fé, por que duvidaste?” (vv. 28-31).

19º Domingo do Tempo Comum  

1ª Leitura: 1Rs 19,9a.11-13

A 1ª leitura foi escolhida em vista do evangelho de hoje em que os discípulos têm que enfrentar a ausência do Senhor, mas Jesus mostra sua presença divina.

No séc. IX a.C., o rei de Israel Acab casou-se com uma princesa fenícia, Jezabel, que introduziu o culto ao deus fenício Baal. O profeta Elias desafiou os profetas do Baal e venceu a disputa (1Sm 18,20-40). Por isso a rainha Jezabel começou perseguir Elias, o profeta do verdadeiro Deus de Israel, Javé (19,1-3.10.18).

Elias tinha que fugir e fez uma espécie de peregrinação, de retorno ao monte Sinai, chamado também de Horeb (Ex 3,1; 19,2.18; 24,16; Dt 1,6; 4,10-13; 5,2 etc.; cf. Eclo 48,7) como voltando ao passado de Moisés e do êxodo (“saída” da escravidão, libertação). Com Elias, algo de Israel volta à origem autêntica do povo, a sua aliança com Javé Deus. Começa como fuga, empurrado pela ira de Jezabel; deixa a cidade, o reino do Norte, passa pelo reino do Sul (Judá) e a cidade de Bersabeia no limite entre civilização e deserto. Sua fuga se torna peregrinação, seu retiro físico torna-se um retiro espiritual. Não é a força da rainha que o afasta, mas a força de Deus que o atrai. No limite urbano da cultura, um mensageiro (anjo) de Deus lhe faz compreender o sentido da marcha (vv. 4-7). Antes do deserto, a fuga quis desembocar na morte; a partir do deserto, a nova comida milagrosa preparada pelo anjo o transporta à experiência da caminhada do povo antigo no deserto. “Levantou-se, comeu e bebeu, e depois, sustentado por aquela comida, caminhou quarenta dias e quarenta notes até a montanha de Deus, o Horeb” (v. 8). No cume do Horeb culmina a vida de Elias.

A Bíblia de Jerusalém (p. 541) comenta: Querendo salvaguardar a aliança e restabelecer a pureza da fé, Elias irá ao lugar onde o verdadeiro Deus se revelou (Ex 3 e 33,18-34,9) e onde a aliança foi concluída (Ex 19; 24; 34,10-28): une diretamente sua obra com a de Moisés. Relacionados pela teofania do Horeb, Moisés e Elias o estarão também na Transfiguração de Cristo, teofania do NT (Mt 17,1-9p).

(Naqueles dias, ao chegar a Horeb, o monte de Deus,) o profeta Elias entrou numa gruta, onde passou a noite. E eis que a palavra do Senhor lhe foi dirigida nestes termos: “Sai e permanece sobre o monte diante do Senhor, porque o Senhor vai passar” (vv. 9a.11).

Esta “gruta” no monte Horeb-Sinai é uma caverna bem determinada pela tradição, aquela onde se pensava que o próprio Moises habitara, ou seja a “fenda do rochedo” onde se refugiou Moisés durante a aparição divina (Ex 33,22).

Nossa liturgia saltou o diálogo de vv. 9b-10, porque se repete em vv. 13s: a pergunta do Senhor convida Elias a tomar consciência da sua atividade, a desabafar confiante. Interpelado por Deus, Elias se confessa. A ordem de sair e permanecer – “porque o Senhor vai passar” – lembra a passagem do Senhor em Ex 12,12; 33,19.22; 34,6.

Antes do Senhor, porém, veio um vento impetuoso e forte, que desfazia as montanhas e quebrava os rochedos. Mas o Senhor não estava no vento. Depois do vento houve um terremoto. Mas o Senhor não estava no terremoto. Passado o terremoto, veio um fogo. Mas o Senhor não estava no fogo (vv. 11b-12a).

Normalmente, uma teofania (aparição do Divino) se cerca de fenômenos extraordinários da natureza que mostra o poder soberano e a beleza do Deus criador (cf. Is 30,27; Sl 18,8-16). O pesquisador das religiões, Rudolf Otto, chamou a experiência do fenômeno do Sagrado “fascinante e terrível”, ao mesmo tempo.

E depois do fogo ouviu-se um murmúrio de uma leve brisa. Ouvindo isto, Elias cobriu o rosto com o manto, saiu e pôs-se à entrada da gruta (vv. 12b-13a).

A Elias, Deus não se mostra nesses fenômenos extraordinários do Sinai de antigamente (cf. Ex 19,16-19), mas no silêncio, no “murmúrio de uma leve brisa”. Nisso, Elias reconhece a presença do Senhor e “cobriu o rosto com o manto” antes de sair da gruta, porque nenhuma criatura pode ver Deus face-a-face; deve, por tanto, ocultar o rosto diante dele (Ex 33,20-23; Is 6,5; cf. Jo 1,18; 6,46; 1Jo 4,12 e a exceção de Ex 33,11 e Nm 12,8). Por isso, os judeus têm o costume de cobrir a cabeça com um chapéu ou a kippa para rezar.

A Bíblia Tradição Ecumênica (p. 534) comenta sobre o “murmúrio de uma leve brisa”, lit. ruído (voz) de um silêncio tênue: Para Elias, este silêncio devia ser tão inquietante e cheio de significado quanto o vento, o terremoto ou o fogo. Mas se estes anunciavam uma ação negativa, destruidora da parte de Deus (cf. vv. 15-17), o “sussurrar de um sopro tênue” deve ser posto em relação com ação positiva, criadora ou salvífica do Senhor, que manteve no seu povo e para ele um remanescente vivo e crente, os sete mil homens de que o v. 18 falará. O silêncio que envolve a vinda do Senhor talvez seja também uma nota antibaalista, já que Baal era o deus da tempestade.

A Bíblia do Peregrino (p. 653) comenta: A revelação do Senhor, simples passagem, é um momento capital que deve ser comparada com a que Moisés recebeu, segundo Ex 33,18-23. Furação, terremoto e fogo são elementos comuns da teofania (entre muitos outros textos, ver Sl 50,3; 97,3-5); neles o homem pode perceber uma presença de poder que transforma e consome o mais forte e estável. Vento e fogo estão particularmente ligados à vida do profeta. Mas Elias, o fogoso e impetuoso, descobre o Senhor numa brisa tênue, num sussurro que mal se ouve. Primeiro, teve de afastar-se da cidade, atravessar o deserto, subir a solidão da montanha; depois, teve de descobrir a ausência de Deus nos elementos barulhentos; finalmente, calado o tumulto, a voz cessada traz presença que surpreende.

Nossa liturgia não nos transmite mais o diálogo seguinte (vv. 13b-14) e a ordem de Deus (vv. 15-16). O que esta voz tênua anuncia é a mudança do poder político (cf. Eclo 48,6-8). Estas missões serão na realidade cumpridas pelo discípulo de Elias, Eliseu (cf. vv. 19-21): ungir os reis que farão guerra contra a casa de Acab e Jezabel (cf. 2Rs 8-10).

A Bíblia de Jerusalém (p. 541) comenta: Furacão, terremoto, raios, que manifestavam em Ex 19 a presença de Iahweh, aqui não são mais sinais precursores de sua passagem; o murmúrio de um vento tranquilo simboliza a intimidade do seu trato com os seus profetas, mas não suavidade da sua ação: as ordens terríveis dos vv. 15-17 provam a falsidade dessa interpretação, que, no entanto, é comum.

Nosso texto litúrgico omite no final a mensagem divina (cf. também a omissão litúrgica da mensagem na vocação de Samuel em 1Sm 3,11-18), porque não seria compreendida sem o contexto histórico e não diz mais respeito ao evangelho de hoje.

 

2ª Leitura: Rm 9,1-5

No cap. 9 começa um tema novo, o destino de Israel (Rm 9-11). À primeira vista, esse bloco se insere sem transição: depois de um final entusiasta e vibrante do cap. anterior (8,38), vem um juramento solene (v. 1). A quem Paulo se dirige, aos judeu-cristãos ou aos cristãos que vêm do paganismo (gregos, romanos …)?

A Bíblia do Peregrino (p. 2723) comenta:

É verdade que não há transição explícita; mas o tema de Israel tem preocupado o autor desde o começo, em seu repetido binômio “judeus e gregos”, na ampla seção dedicada aos judeus (Rm 2-3). Seria universal uma salvação por Jesus Cristo que excluísse o povo judeu? Aqui surge o enigma: os judeus, depois de esperar o Messias durante séculos, não acolheram à sua chegada. Podemos pensar que a presente seção pretende resolver o problema. Podemos tomá-la como ilustração da doutrina e ao mesmo tempo resposta a objeções contra ela. Também podemos pensar que Paulo interpela os cristãos de Roma convertidos do paganismo. Isso implica uma resposta sobre os destinatários: O fato de Paulo se dirigir polemicamente a judeus fechados ao evangelho e começar captando-lhes a benevolência (9,1-5), não explica a colocação, nem muitos dados do texto. Mais provável é pensar que Paulo se dirige aos cristãos de Roma, em sua maioria procedentes do paganismo, para corrigir sua atitude frente aos judeus que recusam o evangelho.

Segundo essa opinião, Paulo descobre naqueles cristãos o perigo da autossuficiência, a preocupação de justificar-se num julgamento comparativo com Israel, segundo o esquema de Ez 16,52 em seu contexto. A igreja não pode nem por comparação justificar-se frente à graça de Deus. Ela não pode romper com a história de Israel, que é sua história. A misericórdia de Deus é grande arco que abrange a história.

A Nova Bíblia Pastoral (p. 1378) discorda a respeito dos destinatários:

Paulo levanta a grande questão que ocupará as próximas páginas (caps. 9-11). Como é que os seus irmãos, privilegiados por Deus, agora ficam fora da salvação? O Apóstolo busca argumentos da própria Bíblia Hebraica, e discute, em tom familiar, para convencer seus parentes de sangue. Após o desabafo pessoal, elenca as sete dádivas que Deus concedeu a Israel (vv. 4-5) e, acima de tudo, ao Cristo (Ef 2,12-13).

(Irmãos) Não estou mentindo, mas, em Cristo, digo a verdade, apoiado no testemunho do Espírito Santo e da minha consciência (v. 1).

Começa com um testemunho solene. A fórmula poderia ser interpretada como juramento: “juro por Cristo” que “digo a verdade”, acima de nacionalismo ou partidarismo. Ao testemunho de Paulo (“da minha consciência”) se acrescenta o “do Espírito”: duas testemunhas, como pede a lei judaica (Dt 19,15). Essa introdução vale para os três capitulos; o final terá tom de hino (11,33-36; leitura do 21º Domingo).

Tenho no coração uma grande tristeza e uma dor contínua, a ponto de desejar ser eu mesmo segregado por Cristo em favor de meus irmãos, os de minha raça (vv. 2-3).

Paulo fala dos seus sentimentos pessoais (cf. sua dor em 2Cor 12,7). É apóstolo dos pagãos (Gl 2,7), mas é também irmão dos judeus; se fala como cristão, em suas palavras vibra um afeto intenso de família. Não existe vontade de desforra (cf. At 28,19), embora o tenham perseguido; há sentimento de pena e um gesto de solidariedade.

“Desejar ser eu mesmo segregado por Cristo em favor de meus irmãos”; como o sentimento de Moisés no monte quando tratava com Deus depois do pecado do bezerro do ouro: “Cancela-me do teu registro” (Ex 32,32), tal é o alcance do ser “mesmo segregado por Cristo”, a exclusão da pertença ao Messias; lit. anátema, ser objeto de maldição (cf. Js 6,17; Lv 27,28). Esta palavra aparecerá como fórmula final em muitos dogmas da igreja: “Quem não acredita em …, anátema sit (seja excluído, maldito)”.

Eles são israelitas. A eles pertencem a filiação adotiva, a glória, as alianças, as leis, o culto, as promessas e também os patriarcas. Deles é que descende, quanto à sua humanidade, Cristo, o qual está acima de todos, Deus bendito para sempre! Amém! (vv. 4-5).

Paulo alista sete privilégios dos judeus: são “israelitas”, é nome genérico, tradicional, que se prende ao neto de Abraão, Jacó, que recebeu o apelido Israel (Gn 32,29; 35,10); deste privilégio decorrem os outros: a adoção filial deste povo como “filho de Deus” (Ex 4,22s; cf. Dt 7,6); eles possuem a “glória”, ou seja, a presença luminosa de Deus na nuvem (Ex 24,16s; 40,34s; cf. Mc 9,7p; At 1,9), que habita no meio do povo (Ex 25,8; Dt 4,7; cf. Jo 1,14); “as alianças”, no plural, talvez englobando as patriarcais e a de Moisés (com Noé em Gn 9; com Abraão em Gn 15 e 17; com Jacó-Israel em Gn 32,29; com Moisés em Ex 24,7s); o “culto” prestado ao único Deus verdadeiro (Ex e Lv); as “leis”, expressão da sua vontade; as “promessas”, patriarcais e davídicas; o último e máximo privilégio é que da sua estirpe “descende, quanto a sua humanidade (lit. carne), o Cristo (Messias)” (cf. 2Sm 7; Rm 1,3). O filho dá brilho a toda a árvore genealógica (cf. Lc 3,23-38).

“Cristo, o qual está acima de todos, Deus bendito para sempre”; Paulo raramente chama Jesus de “Deus” (cf. Tt 2,13), mas lhe dá muitas vezes o título “Senhor” (kýrios) que é nada menos que o título atribuído a Javé Deus no AT (Rm 10,9.13; Fl 2,10s; etc.), considera-o preexistente (cf. Fl 2,5; 1Cor 1,24.30; 2Cor 4,4; 8,9 etc.) e o associa na fórmula trinitária (2Cor 13,13).

Evangelho: Mt 14,22-33

Nos evangelhos destes domingos, Mt segue o roteiro de Mc. Depois do banquete da morte (o martírio de João Batista no aniversário de Herodes, lido no dia 29 de agosto), Mc apresentou o banquete da vida, ou seja, a multiplicação dos pães para o povo (lida no 18º domingo do Ano A). A liturgia de hoje apresenta o trecho seguinte: a caminhada de Jesus sobre a água. Enquanto o evangelista com investigação histórica, Lucas (cf. Lc 1,1-4), omitiu esta narrativa simbólica de Mc 6,45-52, Mateus acrescentou outro simbolismo: a tentativa de Pedro de caminhar sobre as águas.

(Depois da multiplicação dos pães,) Jesus mandou que os discípulos entrassem na barca e seguissem, à sua frente, para o outro lado do mar, enquanto ele despediria as multidões. Depois de despedi-las, Jesus subiu ao monte, para orar a sós. A noite chegou, e Jesus continuava ali, sozinho (vv. 22-23).

Depois da multiplicação dos pães, Jesus queria estar só para rezar (cf. Jo 6,15) e “mandou que os discípulos entrassem na barca e seguissem, à sua frente, para o outro lado do mar” (cf. 8,18.23-28, onde “Jesus entrou na barca e os discípulos o seguiram”). Envia-os ao meio do mar e os deixa sós, enquanto ele “subiu ao monte para orar a sós”. O monte é lugar próximo do céu, ou seja, de Deus (cf. 17,1-8p e os montes em 5,1; 24,3p; 26,30p; 28,16). Mt reforça a lembrança de Moisés e Elias no monte Sinai que assistiram uma teofania (Ex 19; 24; 33-34; 1Rs 19); Jesus fará sua manifestação (epifania, cristofania) em ação e palavra.

A barca, porém, já longe da terra, era agitada pelas ondas, pois o vento era contrário (v. 24).

Em 8,23-27p, Jesus estava com os discípulos na barca durante a tempestade e acalmou o mar e o vento. Outra vez, os discípulos têm que experimentar a oposição dos elementos, água e vento, e mais ainda a ausência do Senhor (cf. 1Rs 19,11). A palavra grega “agitada” é usada mais para pessoas, pode-se imaginar a comunidade (“barca”) dos discípulos como aflita, atormentada, perseguida. Água, vento tempestuoso e noite são metáforas por tribulações, medo e morte (água: Sl 18,16s; 32,6; 69,2s.15; noite: Sl 91,5; 107,10-12; tempestade: Sl 107,23-32; Jn 1-2).

Pelas três horas da manhã, Jesus veio até os discípulos, andando sobre o mar (v. 25).

Aproxima-se a aurora, hora do auxílio divino (cf. Ex 14,24.27; 2Rs 19,35; Sl. 90,14) por volta da “quarta vigília da noite” (lit., traduzido: entre 03 e 06h da manhã; cf. Mc 13,35); para os cristãos é a hora da ressurreição de Jesus (28,1).

Nesta hora, Jesus foi até eles “andando sobre o mar”. Em Mc 6,48, Jesus queria “passar na frente deles” (cf. Lc 24,28), oferecendo as costas ao olhar (cf. a passagem da glória de Deus diante de Moisés e Elias no monte Sinai/Horeb em Ex 33,18-23; 34,6; 1Rs 19,11). Conforme seu costume, Mt resumiu mais e tirou este detalhe.

Não se trata de uma passagem pelo mar a pé enxuto (Ex 14), nem pelos fundos do mar (Jó 38,16; Eclo 24,5), mas é um andar “sobre as águas”. Um sonho da antiguidade, não só dos judeus, mas de muitas culturas (cf. a epopeia mesopotâmica de Gilgamesh 10,71-77: o deus solar pode correr sobre as águas). É próprio de Deus caminhar sobre as alturas do mar (Jó 9,8; cf. Sl 77,20) e dominá-lo (cf. 4,41; Sl 65,8; 77,17; 89,10; 107,29; Eclo 24,5s).

Quando os discípulos o avistaram, andando sobre o mar, ficaram apavorados, e disseram: “É um fantasma”. E gritaram de medo. Jesus, porém, logo lhes disse: “Coragem! Sou eu. Não tenhais medo!” (vv. 26-27).

Os discípulos não são capazes ainda de reconhecê-lo (detalhe comum nas aparições do ressuscitado, cf. Lc 24,16.31; Jo 20,15; 21,4). Então Jesus se identifica: “Sou eu”. Refere-se, à primeira vista, ao lado humano de Jesus que os discípulos já conhecem. Mas é também a clássica frase da auto-apresentação de Deus: em grego, o nome Yhwh (Javé) de Ex 3,14 e traduzido por “Eu sou aquele que sou” (cf. Dt 32,39; Is 41,4; 43,10.13; 45,18s; 48,12; 51,12) e depois por “Senhor”. Da mesma maneira, Jesus apresenta-se em Jo 8,24.28.58 (cf. Jo 18,5s). Mt (como já Mc) compreende esta narrativa como manifestação do ser secreto de Jesus, “Filho de Deus” (cf. 2,15; 3,17p; 4,3.5p; 8,29p; 11,27p; 14,33; 16,16; 17,5p; 21,37-39p; 22,2; 26,63; 27,40.43.53p; 28,19), daí a costumeira recomendação nos relatos de revelação sobrenatural: “Não tenhais medo” (cf. 1,20; 17,7; 28,5.10; Mc 16,6p; Lc 1,13.30; 2,10; At 18,9; 23,11; Gn 15,1; 21,17; 26,14; 38,13; 46,3; Is 41,13; cf. 10; 43,1.3).

Então Pedro lhe disse: “Senhor, se és tu, manda-me ir ao teu encontro, caminhando sobre a água.” E Jesus respondeu: “Vem!” Pedro desceu da barca e começou a andar sobre a água, em direção a Jesus. Mas, quando sentiu o vento, ficou com medo e começando a afundar, gritou: “Senhor, salva-me!” Jesus logo estendeu a mão, segurou Pedro, e lhe disse: “Homem fraco na fé, por que duvidaste?” (vv. 28-31).

Jesus ainda não acalma a tempestade, mas Pedro lhe responde. Para os leitores, ele é o primeiro dos que foram chamados por Jesus (4,18; 10,2). Agora o homem quer fazer o que Deus faz; coisa tal impossível como transportar montanhas (21,21p). Mas o pedido de Pedro mostra sua fé no impossível, a sua confiança naquele que tem toda autoridade (todo poder) sobre o céu e a terra (cf. 28,18). Pedro não age por impulso próprio nem tenta fazer o papel de mágico, mas age apenas por ordem do Senhor: “Vem”. Tem coragem de atender ao chamado de Jesus, mas depois teve medo, não mais o medo de um fantasma sobrenatural, mas o medo de afundar. Como em Sl 69,2s.15, ele pede socorro: “Senhor, salve-me” (cf. o grito dos discípulos em 8,25). Nele, o leitor reconhece seu próprio medo diante das ameaças: morte, insegurança, descrença, inimizade, doença, culpa. Mas Jesus “estendeu a mão” (como já o fez em 12,49 sobre seus discípulos, sua nova família), se aproxima e o salva no meio das dúvidas e fraquezas na fé (cf. 8,26; 16,8; 17,19s; 28,17).

Estes vv. 28-31 são próprios de Mt, mas podem se basear numa tradição como a aparição do ressuscitado diante de Pedro no mar (cf. Jo 21,7s, onde Pedro se atira no mar, enquanto os outros discípulos ficam no barco). Nesta cena de coragem e fracasso em seguida, o narrador antecipa o comportamento de Pedro na paixão de Cristo (26,33-35.69-75p). Mt destaca o papel de Pedro também em 16,17-19; 17,24-27. O evangelista já sabe do martírio de Pedro (entre 65 e 67 d.C.) que se arriscou em Roma, seguindo Jesus no perigo e na morte da cruz,

Assim que subiram na barca, o vento se acalmou. Os que estavam no barco, prostraram-se diante dele, dizendo: “Verdadeiramente, tu és o Filho de Deus!” (vv. 32-33).

Jesus subiu com Pedro na barca e “o vento se acalmou” (cf. 8,26). Em Mc, apesar da manifestação procedente dos pães, os discípulos continuam sem entender (Mc 6,52, cf. 8,17-21). Mas em Mt, eles “prostraram-se diante dele”. Este gesto, os judeus devem fazer diante de Deus (cf. os magos em 2,11), não diante de homens (cf. Est 3,1-6). Antecipando as profissões de Pedro em 16,16 e do centurião em 27,54, os discípulos o confessam “Filho de Deus”.

Mc assimilou a epifania dos pães à do mar porque em Jesus se manifesta o poder libertador de Deus, que já no êxodo saciou seu povo no deserto (Ex 16) e dominou o vento e o mar (Ex 14). A barca simboliza a Igreja, a comunidade que se sente pequena e ameaçada na ausência de Jesus (depois da sua ascensão ao céu). Mt, porém, destaca o papel de Pedro e convida o leitor para “transcendência”, superar seus limites, seus medos e sair da barca, arriscando-se ao seguir “em direção de Jesus”, com “fé” no poder salvador do “Filho de Deus”. Apesar de dificuldades, ventos, ondas contrários e da aparente ausência do Senhor, ele continua, como ressuscitado, presente no meio de nós e nos salva: Jesus é o “Deus conosco”, o Emanuel, (cf. 1,23; 18,20; 28,20).

Obs.: O paralelo mais próximo é uma história budista de um irmão leigo que queria visitar um mestre e chegou à beira de um rio; mas não havia balsa nem barca: Impulsionado por pensamentos alegres em Buda, o irmão andou sobre a água. Mas no meio do rio, reparou as ondas; seus pensamentos em Buda se enfraqueceram e seus pés começaram afundar. Mas ele reforçou seu pensamento em Buda e continuou andando na superfície d’água (Jataka 190).

As religiões hinduísta e budista têm uma tradição rica que fala em levitação na meditação ou voar sobre rios. É possível uma influência indireta desta tradição pré-cristã ao nosso texto bíblico, ou é uma simples convergência de experiências transcendentais? O diferencial cristão, porém, é o contexto: Para Mt, Jesus é o Filho de Deus que caminha em obediência ao Pai “à outra margem do rio” (para o “além”; cf. Elias e Eliseu em 2Rs 2). Não é qualquer caminho, mas o do amor e da obediência. O que segura na água, é a madeira da cruz.

O site da CNBB resume: O fato de Jesus caminhar sobre as águas é causa de assombro para os seus discípulos, principalmente porque, segundo o livro de Jó, somente Deus caminha sobre o mar, de modo que este fato revela aos discípulos que estão diante do verdadeiro Deus que se fez homem e está no meio de nós, mas inicialmente a surpresa é tão grande que gera dúvida em seus corações que, depois de serem iluminados pela fé, os levam ao reconhecimento da pessoa divina que está diante dele. Assim também nós, que recebemos muitas graças de Deus, só o reconheceremos quando nossos corações forem iluminados pela fé, de modo que possamos superar o nosso assombro inicial.

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