9 de Março de 2020, Segunda-feira – Quaresma: Sede misericordiosos, como também o vosso Pai é misericordioso (v. 36).

2ª Semana da Quaresma  

Leitura: Dn 9,4b-10

A leitura do dia é uma oração penitencial (cf. v. 3), que pertence a um tipo bem conhecido do qual são exemplos Esd 9; Ne 9; Dn 3,25-45 e cujo antecedente é Sl 51(50). Em Br 1,15-3,8 esta oração de Dn 9,4b-19 encontra-se mais desenvolvida. Trata-se de um processo bilateral entre duas partes unidas por um compromisso (aliança). Uma parte reprova a outra o descumprimento, até que esta o reconheça e peça perdão.

Estas orações penitenciais brotam em tempos de calamidades para o povo: no exílio babilônico (séc. VI a.C.) que é a situação do personagem Daniel, ou sob a perseguição de Antíoco IV Epífanes (séc. II a.C.) que é a situação do autor de Dn (cf. 1Mc 1).

Eu te suplico, Senhor, Deus grande e terrível, que preservas a aliança e a benevolência aos que te amam e cumprem teus mandamentos; temos pecado, temos praticado a injustiça e a impiedade, temos sido rebeldes, afastando-nos de teus mandamentos e de tua lei. Não temos prestado ouvidos a teus servos, os profetas, que, em teu nome, falaram a nossos reis e príncipes, a nossos antepassados e a todo o povo do país (vv. 4b-6).

Em v. 4b invoca-se o “Senhor, Deus grande e terrível” (Dt 7,21; Ne 1,5), a ciência da religião descreve o fenômeno sagrado nas diversas religiões com esses dois aspectos: “fascinante e terrível” (R. Otto). Assim Deus se manifestou também na Antiga Aliança no monte Sinai (Ex 19,16-20; 20,18-21; 24).

“Preservas a aliança e a benevolência aos que te amam” (cf. Ex 20,6; 34,6; Dt 7,1-12). Os mandamentos desta aliança, porém, foram quebrados pelos “reis e príncipes”, “antepassados” e “todo povo” do passado (v. 6) com o qual Dn se solidariza: “Temos pecado…” (v. 5; cf. 1Rs 8,47; Br 1,15-17; Nc 9,34).

“Não temos prestados ouvidos a teus servos profetas” (v. 6; cf. v. 10: “a voz do Senhor”), especialmente a Jeremias (Jr 7,25; 25,4; 26,5; 29,19; 35,15; 44,4; cf. 2 Cor 33,10; 36,16). O autor de Dn é um sábio (na Bíblia hebraica, Dn faz parte dos livros sapienciais) comentando um profeta que anunciava a destruição de Jerusalém e falou de 70 anos que duraria o exílio (Jr 25,11). Os judeus leram com atenção seus livros sagrados e tentaram atualizá-las (vv. 2.24-27). No fim desta oração está o pedido de reconstruir o templo (v. 17), ou seja, para o autor, a esperança do fim da opressão e abominação atual (cf. v. 27; cf. Mc 13,14).

A ti, Senhor, convém a justiça; e a nós, hoje, resta-nos ter vergonha no rosto: seja ao homem de Judá, aos habitantes de Jerusalém e a todo Israel, seja aos que moram perto e aos que moram longe, de todos os países, para onde os escorraçaste por causa das infidelidades cometidas contra ti. A nós, Senhor, resta-nos ter vergonha no rosto: a nossos reis e príncipes, e a nossos antepassados, pois que pecamos contra ti; mas a ti, Senhor, nosso Deus, cabe misericórdia e perdão, pois nos temos rebelado contra ti, e não ouvimos a voz do Senhor, nosso Deus, indicando-nos o caminho de sua lei, que nos propôs mediante seus servos, os profetas (vv. 7-10).

A culpa do que aconteceu não é de Deus, mas do povo, aconteceu por seus pecados: “A ti, Senhor, convém a justiça, e a nós, hoje, resta ter vergonha no rosto” (v. 7). O autor não reza por seus problemas pessoais, mas intercede, porque está comprometido profundamente com seu povo e solidário com seus pecados históricos. Interceder que não é um estímulo para dentro; é uma tentativa de mobilizar a compaixão de Deus para que mude o curso da história determinado pelos pecados, “mas a ti, Senhor, cabe misericórdia e perdão, pois nos temos rebelado contra ti” (v. 9).

 

Evangelho: Lc 6,36-38

O terceiro evangelista também apresenta um sermão de Jesus, mas este não é proferido na montanha como em Mt 5-7, mas na planície (Lc 6,17). Ambos os evangelistas se baseiam numa coleção de palavras de Jesus (chamada “Q” que se perdeu na história, mas pode ser reconstruída a partir destes dois evangelhos).

Sede misericordiosos, como também o vosso Pai é misericordioso (v. 36).

Enquanto Mt 6,48 conclui a sexta antítese sobre o amor aos inimigos com a frase: “Sede perfeitos com o nosso Pai celeste é perfeito”, Lc conclui o mesmo assunto com uma palavra diferente: “Sede misericordiosos como também o vosso Pai é misericordioso”. A frase de Lc deve ser mais original, porque combina com a bondade de Deus mencionada na frase anterior (v. 35), como também introduz os próximos vv. 37-38. Mt, porém, mudou para “perfeitos” para salientar a justiça dos cristãos, que deve ser maior do que a dos fariseus (cf. Mt 5,20). Com esse mesmo intuito, Mt não continua com a sentença sobre não julgar (Mt 7,1-3), como aqui em Lc 6,37, mas insere antes sua recomendação dos três exercícios espirituais (Mt 6 com a oração do Pai Nosso no centro do sermão, cf. o evangelho de 4ª feira de cinzas).

No AT, Lv 19,2 e outros textos convidam para imitar a “santidade” de Deus. Em Lc deve-se imitar a misericórdia, porque Deus é “compassivo”, “misericordioso” (tradicional fórmula litúrgica: Ex 34,6; Dt 4,31; Jl 2,13; Jn 4,2; Sl 78,38; 86,15; 103,8; 136; 145,8). Agora é atribuído ao “vosso Pai” (cf. Sl 103,13; Eclo 4,10), porque os cristãos batizados são filhos de Deus (Rm 8,14-16; Gl 4,6-7), portanto, devem imitar seu Pai. Em todo seu evangelho, Lc apresenta Jesus misericordioso e compassivo para com os pobres e pecadores (cf. Lc 15,23.34.43; etc.).

Não julgueis e não sereis julgados; não condeneis e não sereis condenados; perdoai, e sereis perdoados. Dai e vos será dado. Uma boa medida, calcada, sacudida, transbordante será colocada no vosso colo; porque com a mesma medida com que medirdes os outros, vós também sereis medidos (vv. 37-38).

Em vv. 37-38 seguem-se quatro sentenças paralelas, duas negativas e duas positivas. Embora a formulação de três seja forense, seu alcance se entende a qualquer campo de vida. Jesus não proíbe avaliar as coisas com objetividade, e mas quem condena os outros está usurpando de Deus sua autoridade exclusiva de juiz (cf. Sl 50,6; Rm 14,10). O cristão não deve erigir-se em juiz do próximo, não deve condenar sem razão, sim ser indulgente. Isso não suspende o juízo dos valores que faz parte do sentido moral. Não se deve confundir com impunidade, mas exercer a justiça objetiva, sem preconceitos, crueldade ou vingança. No judiciário é necessário sentenciar para não compactar com o crime e sinalizar que crime não compensa. Mas a execução da pena deve servir para humanizar, recuperar o delinquente e inseri-lo na sociedade novamente.

Nessas frases, os verbos na voz passiva (“não sereis julgado … não sereis condenados, … sereis perdoados, … vos será dado”), exprimem o julgamento de Deus. A “medida” de recompensa (v. 38; cf. Mc 4,24) refere-se a um recipiente de medir cereais que ao ser sacudido contém mais, e ao qual depois não se passa a vassoura. Como medimos aos outros, assim seremos medidos.

Deus é compassivo e recompensa a quem se mostrou misericordioso e generoso no perdão e nas esmolas (cf. 12,33s; Mt 5,7; 25,31-46; Pr 19,17).

O site da CNBB comenta: A justiça de Deus é muito diferente da justiça dos homens. A justiça dos homens parte de dois pressupostos: o primeiro diz que a cada um deve ser dado o que lhe pertence, e o segundo afirma que cada pessoa deve receber os méritos pelo bem que promove e os castigos pelos males que causa. A justiça divina é aquela que distribui gratuitamente todos os bens e dá todas as condições para que o homem possa ser feliz e ter uma vida digna e é por isso que Deus criou todas as coisas e as deu gratuitamente para os homens que não viveram a gratuidade e se apossaram do mundo segundo seus interesses. A justiça divina é aquela que não nos trata segundo as nossas faltas, mas age com misericórdia e nos convida a fazer o mesmo.

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