9 de Novembro de 2020, Segunda-feira – Festa da Dedicação da Basílica do Latrão: “Destruí este Templo, e em três dias o levantarei”.

Festa da Dedicação da Basílica do Latrão (Catedral de Roma)

A “Basílica do Latrão” é San Giovanni in Laterano (Laterano é um bairro em Roma). Esta igreja é considerada a “mãe de todas as igrejas”, porque era a sede do papa desde a época do imperador Constantino que deu liberdade religiosa aos cristãos em 313 d.C. e promoveu a construção das primeiras igrejas. A basílica permaneceu sede papal até o exílio dos papas em Avignon na França (1309). Voltando para Roma em 1377, o papa Urbano V transferiu a residência papal para outra área, o Vaticano, mas a Basílica de S. João do Latrão continua ser uma das quatro igrejas mais importantes de Roma (além de S. Pedro no Vaticano, S. Paulo fora dos muros e St.ª Maria Maggiore).

Leitura: Ez 47,1-2.8-9.12

Em 573 a.C., quatorze anos após a queda de Jerusalém (40,1), o sacerdote e profeta Ezequiel recebeu outra visão no seu exílio na Babilônia. Agora sonha com uma cidade renovada e uma nação revigorada. O centro desta nova Jerusalém é o novo Templo de onde sai uma fonte que se tornará um rio sarando a terra. A visão final deste livro (caps. 40-48) alimentou o simbolismo do Apocalipse, e tal simbolismo influiu secularmente na arquitetura cristã.

O homem fez-me voltar até a entrada do Templo e eis que saía água da sua parte subterrânea na direção leste, porque o Templo estava voltado para o oriente; a água corria do lado direito do Templo, a sul do altar. Ele fez-me sair pela porta que dá para o norte, e fez-me dar uma volta por fora, até à porta que dá para o leste, onde eu vi a água jorrando do lado direito (vv. 1-2).

Um anjo (lit. “homem”), “cujo aspecto era como o de bronze”, guia e explica ao profeta a sua visão (40,3). O papel de intérprete, devolvido aos anjos, é um traço do profetismo tardio (cf. Dn 8,16. 9,21; Zc 1,8s; Ap 1,1; 10,1-11, etc.). Depois de mostrar o novo templo, para onde a glória de Deus voltará (caps. 40-43), se passa a seus efeitos vivificantes (cf. caps. 36-37: vento-espírito e água, duplo princípio da nova vida).

Jerusalém precisa de abastecimento seguro de água. O rei Ezequiel mandou cavar na rocha um túnel da fonte Gion (1Rs 1,33; 2Rs 20,20) fora dos muros para uma piscina dentro da cidade (o reservatório de Is 22,11 e Eclo 48,17; chamada de Siloé em Jo 9,7). Este canal subterrâneo substituiu um outro, mais antigo, cavado em parte a céu aberto no lado oriental do monte Sião, e que levava a água a uma outra piscina, situada um pouco abaixo que a de Siloé (Is 7,3; 2Rs 18,17 = Is 36,2; 22,9). Na visão de Ez, esta água nasce do Templo.

Os vv. 1-12 devem ser aproximados de 43,1s: esse rio maravilhoso que sai do templo manifesta a bênção trazida à terra pela morada renovada de Deus no meio do seu povo. A imagem será retomada por Ap 22,1-2: “mostrou-me um rio de água brilhante como cristal, que saiu do trono de Deus e do Cordeiro…” (uma passagem trinitária, porque as águas vivas e vivificantes significam o Espírito; cf. Jo 4; 7,37-39).

O anjo conduziu o profeta e o fez ver “que saia água… do lado direito do Templo, a sul do altar” (v. 1). Nós estamos acostumados contemplar mapas se orientadas para o norte (“norteados”), mas o homem da Bíblia costumava se orientar olhando ao leste para o sol nascente (“oriente”), nesta posição, o seu lado direito aponta ao sul.

A água avança “na direção leste” (v. 3), talvez por ser a região mais árida, talvez imaginando uma localização oriental do paraíso (cf. Gn 13,10). “O Templo estava voltado para o oriente”; as igrejas cristãs orientavam-se ao oriente, celebrando o culto em direção ao “sol nascente” (cf. Ml 1,11; 3,20; Mc 16,2p; Lc 1,78), ou seja, ao Cristo ressuscitado que vem.

Olhando para leste, a direção sul fica à direita: “a água corria do lado direito do Templo, a sul do altar”. O evangelho de João faz uma alusão ao corpo de Jesus crucificado como novo templo (Jo 2,20-22): “Um soldado abriu o lado com a lança, e imediatamente jorrou sangue e água” (Jo 19,35).

Então ele me disse: “Estas águas correm para a região oriental, descem para o vale do Jordão, desembocam nas águas salgadas do mar, e elas se tornarão saudáveis. Onde o rio chegar, todos os animais que ali se movem poderão viver. Haverá peixes em quantidade, pois ali desembocam as águas que trazem saúde; e haverá vida aonde chegar o rio” (vv. 8-9).

Por este rio, o deserto de Judá se transforma em paraíso (cf. Is 35,7; 41,18s; 43,20). O rio desce para o vale baixo do Jordão.

O mar é o mar Morto, símbolo de maldição por ter água com tanta concentração de sal que não há vida nele (cf. Gn 19,23-26), por este rio que sai do santuário e se junta ao rio Jordão, as águas deste mar vão ser tornadas salubres, “saudáveis” (lit. “curadas”; cf. 2Rs 2,21s; Ex 15,23-25). A água doce (Apsu) vence a água salgada (Tehom).

“Haverá peixes em quantidade, haverá vida aonde chegar o rio” (v. 9). Renasce prodigiosamente a vida, como em nova criação: Gn 1,20s. A bênção desta fonte inicialmente pequena se dá por causa da sua origem: “as águas… saem do santuário” (v. 12). Nos vv. 10-11 (omitidos) mencionam-se pescadores e umas reservas de sal que serão preservadas.

“Nas margens junto ao rio, de ambos os lados, crescerá toda espécie de árvores frutíferas; suas folhas não murcharão e seus frutos jamais se acabarão: cada mês darão novos frutos, pois as águas que banham as árvores saem do santuário. Seus frutos servirão de alimento e suas folhas serão remédio” (v. 12).

A região se transforma em paraíso. Os frutos de todas as suas arvores serão comestíveis; as folhas medicinais afastarão a morte (cf. Ap 22,2).

No NT, o rio Jordão e o batismo cristão representam nova criação (cf. 2Rs 5; Mt 3p; Rm 6,4; 2Cor 5,17). Vemos a influência desta visão nos escritos joaninos: há “água” que é “viva” e “jorra para vida eterna” (Jo 4,10-14; 7,37-38) e que sai do lado do corpo de Jesus na cruz (19,34). Lembrando que o Corpo de Cristo é o novo Templo (cf. Jo 2,21), isso pode ser uma alusão a esta visão de Ezequiel. Na cidade celeste de Jerusalém, onde não há mais templo, porque “o seu templo é o próprio Senhor” (Ap 21,22), um “anjo” (Ap 21,9) mostra ao vidente um “rio de água vivificante… que brotava do trono de Deus e do Cordeiro… em ambas as partes do rio cresce a árvore de vida. Frutificando doze vezes por ano, produzindo cada mês o seu fruto, e suas folhas servem para curar as nações. Já não haverá maldição alguma” (Ap 22,1-3a; cf. 21,6; 22,17).

A Bíblia do Peregrino (p. 2122) comenta:

Água como no paraíso (Gn 2,10-14): em vez de quatro rios, quatro etapas crescentes. Água na cidade santa (Is 30,25; JI 4,18; Zc 14,8): o templo está na plataforma superior, sobre as plataformas do átrio interno, do externo e do terreno circundante. Água derramada pelo Senhor (Sl 65,10). Água que transforma o deserto (Is 35). Porque o Senhor é “fonte de água viva” (Jr 2,13; 17,13). 

Água de vida: contínua, crescente, invasora, comunicada. Comunica-se às plantas, produzindo um parque maravilhoso; comunica-se aos animais, fazendo com que o mar Morto pulule de seres vivos; comunica-se aos homens em forma de alimento e remédio. O profeta sentirá no corpo o poder da água: o resto o escuta dos lábios do acompanhante.

 

Evangelho: Jo 2,13-22

Com relação aos evangelistas sinóticos (Mt, Mc, Lc), João antecipa o episódio da purificação do templo, já que o carrega de sentido simbólico referindo-se à morte (cf. 1,29.36) e ressurreição.

Estava próxima a Páscoa dos judeus e Jesus subiu a Jerusalém. No Templo, encontrou os vendedores de bois, ovelhas e pombas e os cambistas que estavam aí sentados (vv. 13-14).

Nos evangelhos sinóticos, Jesus começa sua pregação na Galileia e termina na Páscoa em Jerusalém, no período de apenas um ano. Em João, Jesus atua três anos viajando várias vezes a Jerusalém, na ocasião das grandes festas.

A Bíblia do Peregrino (p. 2551) comenta: No plano realista, João é generoso em detalhes. A celebração da Páscoa consumia grande quantidade de reses, bois, ovelhas e pombas; com licença das autoridades do templo, um átrio se convertia praticamente em estábulo ou mercado. Além disso, para o tributo do templo ou para oferendas voluntárias, o povo que vinha de outros países tinha de trocar dinheiro. Os cambistas prestavam esse serviço e faziam seus negócios.

Fez então um chicote de cordas e expulsou todos do Templo, junto com as ovelhas e os bois; espalhou as moedas e derrubou as mesas dos cambistas. E disse aos que vendiam pombas: “Tirai isto daqui! Não façais da casa de meu Pai uma casa de comércio!” (vv. 15-16).

Contra o abuso da área sagrada, Jesus executa uma ação simbólica (gesto profético; cf. Jr 13; 18; Is 20; Ez 4; 12; 24,15s etc.), que explica e amplia numa ordem decisiva na qual o “comércio” lembra o final do profeta Zacarias: “e já não haverá mercadores no Templo do Senhor dos exércitos, naquele dia” (14,21).

Seus discípulos lembraram-se, mais tarde, que a Escritura diz: “O zelo por tua casa me consumirá” (v. 17).

Os discípulos esclarecem o significado lembrando-se de um versículo de um salmo bastante usado, de um inocente perseguido (Sl 69,10; nos sinóticos, a citação é de Is 56 e Jr 7). A Igreja primitiva percebeu o caráter messiânico desse gesto e ouviu aqui um anúncio da paixão (como sugerem o verbo grego no futuro, “consumirá”, e o contexto).

A Bíblia do Peregrino (p. 2551) comenta a citação do salmo: Ao fazê-lo seu, Jesus demonstra interesse pela instituição do Templo de Jerusalém. Se num princípio o templo foi construção e responsabilidade do rei (1Rs 7-8 par.), no tempo de Jesus era o centro espiritual de todos os judeus da Palestina e da diáspora (judeus dispersos em outros países). O modo de alegar o versículo é exemplar, porque apresenta a compreensão que os discípulos adquirem depois da ressurreição.

Então os judeus perguntaram a Jesus: “Que sinal nos mostras para agir assim?” Ele respondeu: “Destruí este Templo, e em três dias o levantarei”. Os judeus disseram: “Quarenta e seis anos foram precisos para a construção deste santuário e tu o levantarás em três dias?” (vv. 18-20).

Muitas vezes, quando o quarto evangelho emprega o termo “os judeus”, não significa o povo ou a etnia, mas os representantes deste povo daquela época, as elites hostis a Jesus, e depois, na época do evangelista, as autoridades judaicas que excluíram os cristãos da sinagoga (cf. 9,22; 16,2), oficialmente no sínodo de Jâmnia em 90 d.C..

Uma reconstrução do Templo, na verdade uma grande reforma, havia começado por Herodes Grande no ano 19 a.C., o que situa a cena com Jesus na Páscoa do ano 28 (“quarenta e seis anos”). A ação de Jesus, um tanto violenta, provoca a reação das autoridades; quem age dessa maneira tem de comprovar sua autoridade com algum “sinal” (cf. v. 11) atestador, um ato prodigioso (cf. Mc 8,11; Mt 12,38; 16,1; Lc 11,16.29-30; 1Cor 1,22).

O sinal que Jesus oferece é condicional e tem por objeto o próprio Templo que acaba de purificar. Aqui, Jesus utiliza uma palavra em grego que se diferencia do edifício Templo, naós, isto é, santuário, o lugar onde o Santo habita.

Da frase sobre o Templo existem duas versões: a das falsas testemunhas no julgamento do sinédrio (Mc 14,58; Mt 26,61), repetidas nas zombarias na crucifixão (Mc 15,29; Mt 27,40), que tem Jesus como sujeito: “Eu destruirei…, eu edificarei outro”; e a presente de Jo, que é como um desafio para os judeus atuarem: “Destruí (=destruam vocês) …, eu reconstruirei”.

Na verdade, são os próprios judeus que vão causar a destruição do templo por sua revolta contra os romanos na Guerra Judaica de 66 a 73. Os romanos destroem a cidade de Jerusalém, saqueiam e incendiam o Templo no ano 70.

Jesus teria a capacidade de reerguê-lo num curto espaço de tempo? Depois da destruição em 70, o templo nunca mais foi reconstruído; um santuário muçulmano está no lugar hoje; para os judeus restou só o muro das lamentações.

Os judeus tomam a resposta de Jesus ao pé da letra, por falta de penetração, um recurso favorito de João. A Bíblia de Jerusalém (p. 1989) comenta: O Cristo joanino costuma usar palavras que, além do seu sentido natural (o único compreendido por seus interlocutores) são capazes de manifestar, um outro, sobrenatural ou figurado: cf. 2,21 (Templo); 3,4 (renascimento); 4,5 (água viva); 6,34 (pão vivo); 7,35 (partir); 8,33 (escravidão), 11,11s (acordar); 12,34 (elevar); 13,9 (lavar); 13,36s (partir); 14,22 (manifestar-se). Surge daí um mal-entendido, que dá a Cristo a oportunidade de desenvolver o seu ensinamento (cf. 3,11).

Mas Jesus estava falando do Templo do seu corpo. Quando Jesus ressuscitou, os discípulos lembraram-se do que ele tinha dito e acreditaram na Escritura e na palavra dele (vv. 21-22).

O narrador dá a interpretação correta (cf. 1Cor 6,19; 3,16; Ap 21,22) apelando de novo para a compreensão do fato à luz da ressurreição. Os leitores do evangelho conheciam a ressurreição de Jesus e a destruição do Templo em 70 d.C. (o quarto evangelho foi concluído por volta de 90 a 100 d. C.). Só em função da ressurreição de Jesus e do dom do Espírito, os discípulos podem compreender plenamente os acontecimentos e as palavras da vida terrena de Jesus (12,16; 14,26; 15,26).

O corpo de Cristo ressuscitado é o lugar da presença divina (1,14), o centro do culto “em espírito e verdade” (4,21s), o templo espiritual de onde mana a fonte de “água viva” (4,10-14; 7,37-39; 19,34; cf. Ez 47,1-12, leitura de hoje). Trata-se de um dos principais símbolos (cf. ainda Ap 21,22 e Paulo em 1Cor 12,12; Rm 12,5; Ef 1,22; 4,12-16; Cl 1,18). É em função da ressurreição de Jesus e do dom do Espírito que os discípulos compreendem plenamente os acontecimentos e as palavras da vida terrena de Jesus (12,16; 14,26; 15,26).

A presença de Deus não está mais num lugar único, fixado e escolhido em Jerusalém (cf. Dt 12), mas onipresente, ou seja, “onde dois ou três se reúnem” para celebrar o corpo de Cristo, a Eucaristia (Mt 18,20; Lc 24,13-35) e praticam a “caridade” (cf. Mt 25,31-46; 1Cor 13; Jo 6,56; 13,34; 14,21-23).

O site da CNBB comenta: O templo deve nos levar à reflexão sobre a realidade da morada de Deus entre os homens e a importância dessa morada. É claro que reconhecemos a presença de Deus nos nossos templos e sempre nos encontramos com ele, seja na visita ao Santíssimo Sacramento ou na participação nas diversas celebrações litúrgicas. Mas também devemos nos lembrar que o verdadeiro templo de Deus é aquele formado de pedras vivas e que tem como alicerce o próprio Jesus. Portanto, de nada adiante para nós uma religião que valoriza a presença de Deus nos templos materiais construídos por mãos humanas, construção essa muitas vezes marcadas pelo pecado e pela iniquidade, e não valorizarmos os verdadeiros templos, ou seja, os nossos irmãos e irmãs.

Voltar