9 de Outubro de 2020, Sexta-feira: Quem não está comigo, está contra mim. E quem não recolhe comigo, dispersa (v. 23).

27ª Semana do Tempo Comum 

Leitura: Gl 3,7-14

Depois das perguntas veementes aos gálatas (3,1-5, leitura de ontem), Paulo argumenta combinando textos em torno de um tema, para criar ou recriar um contexto de significado, iluminado pela ressurreição de Cristo e pela experiência cristã, e colocado em novo horizonte de compreensão. Embora as comunidades da Galácia não fossem compostas de judeus, Paulo argumenta com fatos da Escritura judaica que também os adversários “judaizantes” conhecem. Os judaizantes são judeus convertidos ao cristianismo que queriam manter a circuncisão e a observância da Lei de Moisés.

Paulo não considera ultrapassado o Antigo Testamento enquanto Escritura inspirada; só que o interpreta sob nova luz (cf. 2Cor 3,15s). O modo de argumentar não é moderno, de uma exegese crítica, e sim o rabínico da época que supõe bom conhecimento da Escrita no autor e nos destinatários. É terreno comum de encontro para dialogar ou discutir: também os judaizantes reconhecem Cristo, também Paulo reconhece as Escrituras antigas.

Através das Escrituras, o apóstolo quer provar sua convicção: o homem não é justificado pela lei (e suas obras, ex. circuncisão), mas pela fé (em Cristo, cf. 2,16-20). A figura exemplar da fé é Abraão cujo nome é mencionado cinco vezes neste trecho, nos vv. 6.7.9.14. Abraão viveu antes da Lei de Moisés; apesar da sua velhice e sua esposa estéril, demonstrou fé na promessa de Deus que teria ainda um filho, Isaac (Gn 15; 18). Nossa liturgia omitiu o v. 6, uma citação de Gn 15,6: ”Foi assim que Abraão creu em Deus e isto lhe foi levado em conta da justiça”.

Esta primeira aplicação da Escritura mostra que Abraão foi justificado através da fé, e não da Lei, pois ele é anterior à Lei mosaica. As pessoas se tornam filhas de Abraão, portanto, não pelo cumprimento da Lei, mas pela partilha da fé (v. 7). Se Paulo evoca a figura de Abraão (cf. Rm 4), é por ser ele o pai do povo eleito e nele já se manifestar o desígnio de Deus, cuja finalidade é a salvação universal (v. 8) e cuja realização tem por condição única a fé (v. 9).

Ficai pois cientes que os que crêem é que são verdadeiros filhos de Abraão. E a Escritura, prevendo que Deus justificaria as nações pagãs pela fé, anunciou, muito antes, a Abraão: “em ti serão abençoadas todas as nações” (vv. 7-8).

A promessa feita a Abraão tem alcance universal: “Em ti serão abençoadas todas as nações” (Gn 12,3; cf. 18,18). Quem repete a atitude da fé de Abraão liga-se com ele, é seu descendente, ainda que seja de outra raça ou povo. O mérito (“justiça”) de Abraão consistiu em crer em Deus, crendo naquilo que lhe prometia; por isso foi-lhe antecipada uma espécie de “evangelho” (boa notícia) ou promessa de paternidade universal. Paulo se sente chamado para evangelizar “as nações pagãs” (gentios, não judeus, cf. 1,16; 2,7; At 26,15-18; cf. 9,15; 22,21; Mt 28,19; Lc 24,17 etc.).

Portanto, os crentes são abençoados com o crente Abraão. Aliás, todos os que põem sua confiança na prática da Lei estão ameaçados pela maldição, porque está escrito: “Maldito quem não cumprir perseverantemente tudo o que está escrito no livro da Lei”. Pela Lei ninguém se justifica perante Deus, isso é evidente porque o justo vive da fé. E a Lei não se funda na fé, mas no cumprimento: “Aquele que cumpre a Lei, por ela viverá” (vv. 9-12).

Enquanto os que crêem, “são abençoados”, os outros que se apóiam na lei “estão ameaçados pela maldição”. Paulo cita Dt 27,26 em v. 10 e  Lv 18,5 em v. 12. A lei, com efeito, supõe uma prática, e uma prática total (v. 10 e 5,3; cf. Tg 2,10), que ela, por si mesma, não é capaz de assegurar (cf. At 15,10; Rm 7,7s). Para alguém ser justificado através da Lei, teria de praticá-la integralmente, o que é humanamente impossível. Portanto, a Lei só pode trazer a maldição do seu cumprimento.

“A Lei não se funda na fé” (lit. não provém da fé). A mútua relação destas duas etapas da historia da salvação será esclarecida por Paulo nos vv. 19ss. A lei acarreta benção apenas para o cumprimento, maldição para a transgressão (Dt 27-28).

“Pela Lei ninguém se justifica perante Deus, isso é evidente porque o justo vive da fé” (cf. 2,16). O regime de fé, inaugurado antes da lei de Moisés em Abraão (v. 6 cita Gn 15,6), é confirmado em Hab 2,4, citado em neste v. 11: “o justo vive pela fé”. Esta citação favorita é como um resumo do evangelho de Paulo (Rm 1,17; cf. Hb 10,38): a “fé” abre o homem à vida que está em Cristo: a “lei” o tranca no pecado e abandona à maldição (cf. 3,10.12.23).

Cristo resgatou-nos da maldição da Lei, fazendo-se maldição por nós, pois está escrito: “Maldito todo aquele que é suspenso no madeiro”. Assim a bênção de Abraão se estendeu aos pagãos em Cristo Jesus e pela fé recebemos a promessa do Espírito (vv. 13-14).

Jesus Cristo, porém, assumiu essa maldição da Lei para transformá-la em benção para quem crê (Rm 8,3; 2Cor 5,21). Jesus se torna “maldição” segundo a Lei de Dt 27,26.

Para libertar os homens da maldição divina que a violação da lei fazia pesar sobre eles, Cristo se fez solidário desta mesma maldição (cf. Rm 8,3; 2Cor 5,21; Cl 2,14). A analogia bastante distante entre Cristo crucificado e o condenado do Dt 21,23 não passa de uma ilustração desta doutrina. Ele aceitou passar como tal aos olhos dos judeus, como o “Servo” de Is 53. Sobre o tema da redenção, cf. Rm 3,24s.

No v. 10. Paulo lembrou a maldição dos pecadores pela lei (Dt 27,26). Se evoca aqui o madeira onde o maldito é exposto aos olhos de todos (Dt 21,23), é que Cristo aceitou esta morte de maldito para nos livrar do pecado que a causa.

Ele pagou com a vida a nossa libertação (2,20-21). Este preço não é pago a ninguém: só manifesta o amor de Deus pelos pecadores (cf. Rm 5,8; Ef 2,4-5). Cristo, carregando a maldição, livra-nos dela e aplica e estende a todos a “benção” prometida a Abraão, a qual se condensa no dom do Espírito, a “promessa” ou “a benção do Espírito”.

A Bíblia do Peregrino (p. 2796) comenta: Cristo, embora inocente, submete-se uma “maldição” específica da lei (Dt 21,23), ser suspenso a um madeiro, para invalidar o regime da lei (cf. 4,4s). Uma lei, segundo a qual um inocente é condenado (Jo 19,7), não ficará em vigor. Cristo morre para restaurar o regime da benção e da promessa, que só exige aceitação e acolhida com fé (Is 7,7; 28,16; 30,15).

 

Evangelho: Lc 11,15-26

O evangelho de hoje apresenta a reação negativa depois de uma cura e uma acusação absurda à qual Jesus responde. Lc copia aqui do evangelho mais velho (Mc 3,22-27) e da fonte de palavras Q (Mt 9,32; 12,22-32.43-45).

(Naquele tempo, Jesus estava expulsando um demônio), mas alguns disseram: “É por Belzebu, o príncipe dos demônios, que ele expulsa os demônios.” Outros, para tentar Jesus, pediam-lhe um sinal do céu (vv. 15-16).

Na introdução (“Naquele tempo, Jesus estava expulsando um demônio”), nossa liturgia resume o versículo anterior com a cura de um mudo endemoninhado e a e admiração da multidão (v. 14). Como a sua fonte Q (cf. Mt 9,32-34), Lc atribuiu a doença do mudo ao próprio demônio, como em 13,11.16 (cf. 4,39) e não ao possesso.

A Bíblia do Peregrino (p. 2494) comenta:

Um exorcismo público serve para introduzir em contraste a admiração popular e as reservas de alguns em dois pontos: a origem do poder de Jesus (vv. 17-26), a necessidade de um sinal particular (vv. 16.29-32). A mudez é atribuída à possessão diabólica que impede a comunicação. A de Ezequiel foi induzida por Deus como sinal (Ez 3,22-27), a de Zacarias foi castigo por sua falta de fé (Lc 1,20.62-64). Jesus expulsa o demônio, liberta o mudo e o restitui a comunidade humana normal.

A admiração dos presentes é resultado frequente nos milagres e ainda não significa fé messiânica. Alguns, para desacreditar Jesus ou para justificar sua rejeição, atribuem o êxito do exorcismo a um pacto com o “chefe dos demônios”. Dão-lhe o nome de “Belzebu”, o deus da cidade fenícia de Acaron, a quem o rei de Israel Ocozias queria consultar (2Rs 1,2). Isaias fala de pacto com a divindade infernal Xeol (Is 28,15).

Outros pensam que o êxito do exorcismo não basta para acreditar no Messias, pois outros exorcistas têm poderes semelhantes. Um sinal celeste, nos astros ou nos meteoros, será uma garantia (para o limite máximo dos sinais, cf. Is 7,1)

O julgamento é puro preconceito: será verdade que Jesus exibe poder sobre um demônio? É poder delegado do chefe dos demônios? Seu poder pode ser autêntico? Não nos é suficiente. Exigimos um sinal “do céu”.

“Belzebu” é um dos nomes tradicionais do diabo (tomado do deus de Acaron em 2Rs 1, onde o nome Beel-Zebul, “senhor príncipe”, é transformado maliciosamente em Baal Zebub, “senhor das moscas”).

Para os judeus , o “céu” é uma das maneiras de designar Deus sem pronunciar o seu nome inefável (Dn 4,23; 1Mc 3,18 etc.). Reencontra-se este uso em 15,7.18.21; 20,4. Este versículo prepara os vv. 29-32 (resposta de Jesus à exigência do sinal; evangelho da próxima segunda-feira).

Mas, conhecendo seus pensamentos, Jesus disse-lhes: “Todo reino dividido contra si mesmo será destruído; e cairá uma casa por cima da outra. Ora, se até Satanás está dividido contra si mesmo, como poderá sobreviver o seu reino? (vv. 17-18a).

Jesus responde com dupla comparação: a unidade de um reino e de uma casa/família. Satanás tem seus agentes, seus instrumentos, sua morada e seus seguidores; insinua-se uma oposição ao reino de Deus e a casa ou a família de Deus. Os demônios lutam contra outros, não entre si. Uma “casa” dividida desmoronará em ruínas. Lc pensa em edifícios que caem em ruínas. No paralelo de Mt 12,25 pode-se entender “casa” no sentido de família.

Vós dizeis que é por Belzebu que eu expulso os demônios. Se é por meio de Belzebu que eu expulso demônios, vossos filhos os expulsam por meio de quem? Por isso, eles mesmos serão vossos juízes. Mas, se é pelo dedo de Deus que eu expulso os demônios, então chegou para vós o Reino de Deus (vv. 18a-20).

Esta parte não estava em Mc, é da fonte Q (ou estava inserida numa segunda edição de Mc, Deuteromarcos, cf. Mt 12,27s). Se alguns dizem que Jesus é agente de Belzebu, tem de dizer o mesmo dos filhos deles, e estes se voltarão para condená-los. “Vossos filhos”, em Mt trata-se dos discípulos dos fariseus, em Lc dos judeus em geral (cf. Mt 12,27); Lc menciona exorcistas judeus em Éfeso, em At 19,13. Como discípulos que também praticam exorcismos, eles têm direito de condenar seus mestres que se mostram intolerante com Jesus.

A Bíblia do Peregrino (p. 2494) comenta a expressão própria de Lc: A consequência é que na ação de Deus se mostra “o dedo de Deus” (Ex 8,15). O confronto de Moises com os magos do Egito é atraído mentalmente por tal expressão: quando pela terceira vez suas artes mágicas fracassaram, tiveram de reconhecer nos milagres de Moisés a ação da divindade.

Jesus é o novo Moises que expulsa os demônios por seu próprio poder. Em Mt 12,28, ele os expulsa pelo “Espírito de Deus”. Da comparação desta passagem com o paralelo Mt 12,28, deriva o apelativo dado ao Espírito Santo de “dedo da direita do Pai” (dedo de Jesus sentado a direita do Pai).

Quando um homem forte e bem armado guarda a própria casa, seus bens estão seguros. Mas, quando chega um homem mais forte do que ele, vence-o, arranca-lhe a armadura na qual ele confiava, e reparte o que roubou (vv. 21-22).

Não é que uma facção do reino de satanás esteja lutando contra outra, o ataque vem de fora, de um mais forte que ele, que o amarrará e saqueará sua casa (Jesus já enfrentou satanás com sucesso no deserto, cf. 4,1-13p). Quando satanás for amarrado, também o domínio da morte o será (cf. Lc 10,18; Hb 2,14; Ap 20,1.10). Lc é o único a mencionar aqui um homem “mais forte”, termo que João Batista deu ao Messias em 3,16p.

A Bíblia do Peregrino (p. 2494) comenta: A luta com Satanás é travada desde o princípio (Gn 3,15). Com suas armas domina os homens, despojo conquistado, e está seguro: “Mas pode-se tirar a presa de um soldado, escapa um prisioneiro de um tirano?” (Is 49,24). Sim, porque Jesus é mais forte como o veio demonstrando, e está tirando-lhe em que confiava. Seu despojo são os homens libertados (cf. Is 53,11-12).

Quem não está comigo, está contra mim. E quem não recolhe comigo, dispersa (v. 23).

As expressões evocam o comportamento do pastor (cf. Mc 14,27p; Jo 10,12; 11,52; 16,32; como proceder do próprio Deus, cf. Is 40,11; 49,18; Ez 34,13.16) e do ceifador em sua labuta (19,21p; Mt 3,12;13,30).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p.2000) comenta: Esta sentença, que se torna a incorporar em Mt 12,30, é mais severa que a de Lc 9,50, paralela a Mc 9,40. Essa dureza corresponde ao contexto polêmico em que a situam Mt e Lc.

Lc transferiu para 12,10 (no contexto do testemunho sem medo) a frase conclusiva de Mc 3,28s sobre o pecado contra Espírito Santo (imperdoável também no mundo futuro, Mt 12,32).

Quando o espírito mau sai de um homem, fica vagando em lugares desertos, à procura de repouso; não o encontrando, ele diz: “Vou voltar para minha casa de onde saí”. Quando ele chega, encontra a casa varrida e arrumada. Então ele vai, e traz consigo outros sete espíritos piores do que ele. E, entrando, instalam-se aí. No fim, esse homem fica em condição pior do que antes (vv. 24-26).

Os que foram libertados do poder do mal não devem abdicar da vigilância, porque a hostilidade continua e o inimigo pode retornar com mais força e maior prejuízo que antes.

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2000) comenta: Sob as representações demoníacas do judaísmo de seu tempo, Jesus descreve a triste sorte de quem recai em poder de Satanás depois de ser libertado dele. Ele está demais persuadido da sua vitória sobre o Mau para ver nisto algo fatal (cf. 10,18; 11,20), mas adverte os convertidos do perigo que os ameaça (Mt 12,43-45 aplica estes vv. a “esta geração má”).

Nos povos semíticos e no AT, o “deserto” é habitação de seres demoníacos (Lv 16,10; Is 13,21; 34,12.14; Tb 8,3; Br 4,35; cf. Lc 4,1p). A ideia de ser possuído por vários demônios já apareceu em 8,2 (em Maria Madalena ”sete”, número que significa plenitude) e 8,30p (“legião”). Jesus, o bom pastor, procura a alma perdida, como a mulher em 15,8-10 que “varre a casa”.

O site da CNBB comenta: O reino de Deus chegou até nós com toda a sua força contra o mal e suas conseqüências. Mas porque é que sempre temos a impressão que o mal está vencendo o bem e que as coisas estão sempre piorando? A verdade é que vemos a realidade em si sem sermos capazes de interpretar os sinais dos tempos que se apresentam a nós. Assim sendo, até mesmo as coisas boas que Deus realiza no meio de nós são interpretadas como coisas más e, por isso, nós bloqueamos até mesmo as coisas boas que Deus realiza, vendo nelas, por motivos egoístas e por dureza de coração, coisas más, como fizeram os judeus.

 

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